Summary
O conceito biocultural da amamentação nos seres humanos. Mas conhecer esse componente é crucial para compreender o quanto o processo de dar de mamar e de desmamar se vê afetado pela nossa cultura.
A amamentação, na nossa sociedade, é considerada apenas uma forma de alimentar a criança. Perdeu-se a concepção da amamentação como relacionamento, como ferramenta para construção e fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê, como um processo mais amplo com repercussões na saúde física e emocional de ambos. A amamentação continuada não é incentivada pelos profissionais da saúde em geral, que sabem muito pouco sobre ela; não é praticada ou vista de forma corriqueira na sociedade, que não a valoriza
Gabrielle Gimenez*
Um dos problemas da cultura da mamadeira é a visão deturpada sobre a amamentação e, consequentemente, sobre o desmame. Uma cultura que desvaloriza a amamentação também não saberá avaliar corretamente as consequências de não amamentar ou as implicações de um desmame precoce ou abrupto, que é tido como algo de menor importância.
Pode parecer chover no molhado repetir uma e outra vez o conceito biocultural da amamentação nos seres humanos. Mas conhecer esse componente é crucial para compreender o quanto o processo de dar de mamar e de desmamar se vê afetado pela nossa cultura.
A amamentação, na nossa sociedade, é considerada apenas uma forma de alimentar a criança. Perdeu-se a concepção da amamentação como relacionamento, como ferramenta para construção e fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê, como um processo mais amplo com repercussões na saúde física e emocional de ambos. A amamentação continuada não é incentivada pelos profissionais da saúde em geral, que sabem muito pouco sobre ela; não é praticada ou vista de forma corriqueira na sociedade, que não a valoriza.
A cultura como fator limitante do tempo de duração da amamentação
O próprio conceito de desmame natural é de difícil compreensão, já que grande parte das crianças usa bicos de forma rotineira. Estima-se que, no Brasil, quase 50% das crianças menores de um ano usem chupeta, e quase 60% usem mamadeira (1). Embora a interferência da chupeta e da mamadeira na sucção causando a chamada confusão de bicos (disfunção motora-oral) não tenha sido totalmente explicada pela ciência, a menor prevalência e a menor duração da amamentação em bebês que usam esses elementos já foi demonstrada (2).
Esse fato estatístico distorce os parâmetros sociais para definir o que seria um desmame natural, pois se confunde o que mais comumente se vê (o desmame precoce) com o normal, não se levando em conta o fator fisiológico livre de interferências externas. Por exemplo, por meio de estudos antropológicos e etológicos, e diferentes testemunhos etnográficos, históricos e culturais, pressupõe-se que a idade do desmame natural na espécie humana do ponto de vista biológico seria entre os dois anos e meio e os sete anos (3). Esse é um interessante parâmetro para se ter em conta.
Os mitos culturais também influenciam no desmame
Para falar de desmame, precisamos inicialmente desconstruir os mitos que o rodeiam. Muitas mulheres continuariam amamentando se não fosse a pressão social e profissional que sofrem sem trégua, se elas não fossem levadas a crer que a amamentação é desnecessária e se torna inútil ou perigosa a partir de determinado momento, que existem janelas para a condução do desmame que se não forem aproveitadas nunca mais acontecem, que a criança nunca largará o peito por si só etc. Talvez o mito de que a amamentação continuada comprometa o desenvolvimento emocional da criança e a deixe mais dependente seja um dos mais prejudiciais na nossa cultura, afetando diretamente o tempo de duração da amamentação e o modo de condução do desmame pelo adulto, muitas vezes com “indicação profissional” incluída.
O desmame deveria ser uma escolha da mãe em consonância com os sinais do seu filho, e não decisão médica ou imposição social. Tal escolha só acontecerá de forma livre e consciente num ambiente de apoio e acesso à informação fidedigna.
É importante que as famílias saibam que a amamentação, como qualquer relacionamento, é dinâmica e muda conforme o amadurecimento das partes envolvidas. À medida que a criança vai crescendo, o peito vai perdendo a preponderância e outras formas de se relacionar vão surgindo: o diálogo, a brincadeira, a contação de histórias, as atividades de presença focada etc. No processo natural de desmame, mãe e filho são sujeitos ativos. A criança dá mostras de autonomia, a mãe vai propondo novos limites, a criança aceita porque está preparada, e tudo evolui de maneira bastante fluida, sem que muitas vezes nos demos conta.
Minha experiência com o desmame natural
Os meus filhos gêmeos, Matias e Beatriz, desmamaram após um processo bastante gradual que eles foram conduzindo e eu fui acompanhando de perto e apoiando. Eles tinham na época 4 anos e 7 meses.
Na imagem que ilustra este artigo, está um registro deles mamando na praia aos 2 anos e 8 meses, uma idade em que a nossa cultura já considera que estão “grandes demais para mamar”. Na época eu sequer imaginava, mas estávamos apenas na metade da nossa trajetória.
No fundo eu sempre soube que o grande desafio desses primeiros anos da maternidade múltipla não era a amamentação em si, como muitos querem nos fazer crer, mas o conjunto da obra. Criar filhos é desafiador em todos os sentidos. Mas quando estamos vivenciando o momento, o cansaço pode nos fazer duvidar das nossas escolhas, e as vozes externas que culpam a amamentação por tudo, fazem eco nos nossos corações e trazem sofrimento e até uma boa dose de ressentimento. A relação mãe e filho fica fragilizada e a amamentação em risco.
Hoje, ao olhar para trás fica ainda mais evidente para mim que nunca foi sobre a amamentação. E se as coisas estão, em alguns aspectos, mais leves agora, não é porque eles já estão desmamados, mas porque estão crescendo e conquistando autonomia. O desmame nada mais foi do que o alcance de um marco no seu desenvolvimento, o sinal de que já estavam maduros nessa área e prontos para dar o próximo passo.
A natureza merece nosso voto de confiança
O desmame natural não é um mito ou uma lenda urbana. Se não o vemos com frequência é porque não permitimos que ele aconteça. Precisamos falar mais sobre isso.
Não existem recomendações científicas em relação ao tempo máximo ideal de amamentação ou a idade certa para o desmame porque eles não existem. A amamentação cumprirá seu importante papel pelo tempo que ela durar. Cabe a cada dupla mãe-bebê decidir o momento do fim. Quanto maior for a sintonia entre ambos, mais suave será o processo.
Se na livre demanda confiamos que quem sabe da sua fome e das suas necessidades é o bebê e não o relógio, em relação ao desmame devemos também confiar que quem sabe do seu tempo é a própria criança e não o calendário.
* @gabicbs é puericultora, mãe de três, editora especial do portal aleitamento.com e autora do livro “Leite Fraco? – Guia prático para uma amamentação sem mitos.
Referências:
(1) Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Aleitamento Materno Continuado Versus Desmame. São Paulo: Departamento Científico de Aleitamento Materno, 2017. Disponível em: https://es.slideshare.net/Marcusrenato/aleitamento-materno-continua-do-x-desmame-sbp-departamento-cientfico-2017
(2) Buccini G, Pérez-Escamilla R, D’Aquino Benicio MH, Justo Giugliani ER, Isoyama Venancio S. Exclusive breastfeeding changes in Brazil attributable to pacifier use. PLoS One. 2018;13(12):e0208261.Published 2018 Dec 19. doi:10.1371/journal.pone.0208261
(3) Dettwyler KA. When to wean: biological versus cultural perspectives. Clin Obstet Gynecol. 2004 Sep;47(3):712-23. doi: 10.1097/01.grf.0000137217.97573.01. PMID: 15326433.
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