Campanha “Madrinhas da Amamentação”
No discurso visual em prol do aleitamento materno, reflexões sobre o linguajar dos cartazes nacionais da SMAM
Cristine Nogueira Nunes
Há pelo menos duas décadas, imagens de bebês mamando no seio de suas mães têm presença maciça nas campanhas pró-amamentação do Ministério da Saúde, e desde 1999 essas mães são atrizes de televisão, modelos ou cantoras. Este recurso vem concedendo identidade comunicativa à campanha “Madrinhas da Amamentação”, parceria entre o Ministério e a Sociedade Brasileira de Pediatria na produção de material de divulgação das ênfases propostas pela aliança internacional em prol do aleitamento materno, da qual o Brasil é signatário.
A suave atmosfera do material gráfico brasileiro contrasta com a séria problemática que é sua tarefa auxiliar a transformar, constituindo a face divulgada de uma luta contra a cultura do consumo de leites artificiais e mamadeiras, liderada pela OMS há quase 40 anos.
Este artigo se propõe a tecer um paralelo –por intermédio de uma breve análise gráfica e textual- entre os cartazes da campanha nacional e as diretrizes mundiais que oficialmente a norteiam.
Notas sobre os caminhos da amamentação no Brasil
Para abordar o assunto, é essencial regressarmos à época do descobrimento, quando o aleitamento mercenário era corriqueiro em Lisboa e as famílias brasileiras mais abastadas, para quem a amamentação era tarefa indigna para uma dama (Almeida, 1999: 30), a princípio entregaram as crianças aos seios de índias cunhãs, depois substituídos pelos das escravas (a quem era imposto o desmame dos próprios filhos em favor do aleitamento de crianças brancas), balizando um comportamento social de elite copiado pelas camadas menos privilegiadas da população, em seu desejo de distinguir-se socialmente.
A chegada da família real ao Brasil e a movimentação política que a acompanhou vieram a promover a reversão deste quadro, por intermédio de uma aliança firmada entre a medicina e o Estado, em prol da edificação premente do sentido de nação, para a qual a vida das crianças da elite assumiria importância prioritária. Fundava-se então o paradigma higienista, que transformou o escravo “de animal útil ao patrimônio, em animal nocivo à saúde” (J. F. Costa, in Almeida, 1999, p:33), condenando as amas-de-leite e entregando às mulheres brancas a total responsabilidade pela saúde de seus filhos, num discurso oficial que tendia a culpabilizá-las em caso deste objetivo não ser alcançado.
Porém, diante da alegação, por parte muitas mulheres, de dificuldades em levar a termo tal compromisso, os higienistas – segundo João Aprígio Almeida, fundaram a figura biológica do “leite fraco”, a ser remediada pelo retorno da ama-de-leite, desta vez branca e pobre, cuja saúde – tantas vezes precária, começou a ser regulada em 1901.
A mudança operada na economia brasileira em inícios do século XX, propiciadora da passagem do sistema de produção agro-exportador para o urbano-industrial, ascenderia a burguesia, marcando o desenvolvimento da sociedade de consumo, para a qual a mamadeira tornou-se um dos símbolos de modernidade e urbanismo. Em 1912 chegavam ao Brasil as primeiras remessas de leite condensado e farinha láctea da Suíça (Nestlé), promovendo a mamadeira de leite industrializado como alternativa para o “leite fraco”, denominado cientificamente hipogalactia, agora uma patologia institucionalizada (Almeida, 1999, p:39).
A indústria se envolveu em todas as esferas relacionadas com o desempenho profissional dos trabalhadores da saúde: serviços assistenciais dos hospitais-escola, reuniões científicas, patrocínio a cursos de atualização e congressos, contribuição para o sustento das revistas científicas com permanente publicação de anúncios, contato individual de seus representantes com a classe médica para fornecimento de amostras grátis, folhetos de alta qualidade gráfica e variados brindes (Goldenberg, 1989, p:122).
Esta estratégia de marketing foi se intensificando dos anos de 1940 a 1970, tal a reciprocidade de interesses entre a indústria e a classe médica, pois enquanto a primeira expandia seus lucros, a segunda realizava a aquisição e manutenção de sua autoridade perante seus pacientes, vencendo a influência de leigos e parteiras.
O PNIAM –Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, foi lançado no Brasil em 1981, em resposta à reviravolta mundial provocada pelo livro “The Baby Killer”. Publicado em 1974, de autoria do jornalista inglês Mike Muller, o relatório fora encomendado pela organização caritativa inglesa War on want, e seu conteúdo denunciava que o marketing das indústrias de leite em pó estava elevando a morte de bebês por diarréia e desnutrição na África, Ásia e América Central.
Sob a influência desta publicação, a comunidade científica internacional, capitaneada pela Organização Mundial de Saúde, reconheceu unanimemente a superioridade do aleitamento materno no decorrer da segunda metade da década de 1970. No Brasil, o PNIAM liderou ações de sentido plural nos anos 80: alojamento conjunto em maternidades, bancos de leite humano, adesão ao código internacional para controle da comercialização de leites, licença maternidade de 120 dias, direito de amamentação aos filhos de presidiárias, inserção do tema nos currículos escolares, programa de capacitação de recursos humanos, centros de referência, incentivo a grupos de mães que amamentam e a pesquisas e estudos. Diante de tais medidas e da disseminação da nova ideologia pelos meios de comunicação de massa, constatou-se uma redução de 65% no acesso a leites modificados entre 1980 e 1989 (Almeida, 1999,p:42).
A partir de
A WABA
A World Alliance for Breast-Feeding Action é uma organização não-governamental que representa a aliança mundial em prol de ações de promoção, proteção e apoio à amamentação. Resultante de uma reunião de organizações internacionais e representantes de 40 países, dentre eles o Brasil, reunidos em Florença em 1990, foi fundada em 1991 como forma de viabilizar o compromisso assumido na Itália, de “promover o aleitamento materno exclusivo nos primeiros
Sua sede brasileira, localizada no Recife, difunde as diretrizes anuais da matriz (Malásia), determinadas em reuniões com representantes dos diversos países. Com limitações de verba, procura periodicamente traduzir o material (cartazes, action folders etc), distribuindo-o para os profissionais de saúde na montagem da Semana. Quando a data se aproxima, porém, o Ministério da Saúde fornece material produzido em seu setor de Comunicação Social, material este que será amplamente divulgado na esfera pública de saúde durante o evento nacional e que, desde 1999, conta com a parceria da Sociedade Brasileira de Pediatria na campanha denominada “Madrinhas da Amamentação”.
Diante deste processo operacional, a pergunta que surge é: por que não simplesmente financiar a tradução cuidadosa do cartaz da WABA internacional? Será que ao criar uma campanha própria, o Ministério da Saúde estará zelando pela adaptação da mensagem à cultura brasileira? O que parece ocorrer, no entanto, é a repetição constante, e maciça do modelo visual mãe-aleitando-seu-filho (que justifica em parte o conceito “Madrinhas”), enquanto a campanha internacional se esmera em fornecer elementos representativos das problemáticas que pretende abordar.
A campanha “Madrinhas da Amamentação”
A Semana Mundial de Amamentação estabelece, desde 1992, temas mundiais a serem trabalhados pelos países signatários da aliança, e desde 1999 o Brasil se engajou neste esforço, lançando a campanha “Madrinhas da Amamentação”.
Naquela época, havia motivos bastante recentes para justificar a escolha de imagens de modelos e atrizes da TV Globo para figurar os cartazes da campanha nacional, pois a campanha de vacinação contra a poliomielite (lançada pelo Ministério em 1997) alcançara grande sucesso: a imagem de uma criança- sósia do craque Ronaldinho, gozando de plena saúde, era acompanhada da frase “Vacine seu Ronaldinho contra a paralisia infantil” e “Vacine seu futuro campeão”.
A estratégia alcançou efeitos expressivos, tal a importância exercida pelos meios de comunicação de massa e seus personagens sobre a cultura, como observa Canclini sobre a América Latina:
É preciso examinar o que a globalização, o mercado e o consumo têm de cultura. Selecionamos bens, nos apropriamos deles, definimos o que é valioso (…) O público recorre ao rádio e à TV para conseguir o que as instituições cidadãs não proporcionam: serviços, justiça, reparações ou simples atenção. A cena da TV é rápida; a institucional é lenta (Canclini, 2001, p:43-50).
Adaptar esse conceito bem sucedido se mostrou, portanto, muito promissor. Mas, justo naquele ano, o cartaz lançado pela WABA internacional utilizava como imagem a foto da boneca Mariana, concebida por uma artesã de Recife. Confeccionada em tecido, a boneca trazia seu bebê ao seio por intermédio de colchetes de pressão que viabilizavam o encaixe da boca da criança. Além disto, a boneca contava com espaço vago em seu ventre para encaixe do bebê, podendo simular as fases de gestação e parto normal. Segundo Maria Inês Couto de Oliveira (Coordenadora do Grupo Técnico Interinstitucional de Incentivo ao Aleitamento Materno no Estado do Rio de Janeiro, entrevistada por esta pesquisa), a escolha de referências brasileiras para a campanha internacional foi motivo de contentamento para os profissionais engajados na organização dos eventos, lhes fornecendo elementos culturais de alta carga simbólica para a campanha brasileira. No caso da boneca, tratava-se não apenas de uma imagem, mas de um produto nacional, cuja produção em série foi realizada por um grupo de costureiras e exportada para países europeus. Entretanto, embora o lema proposto pela WABA (Amamentar é educar para a vida) tenha sido mantido no cartaz nacional, a boneca foi substituída pela imagem da modelo Luiza Brunet aleitando seu filho.
Algumas considerações
Como havia sido observado anteriormente, o modelo mãe-aleitando-seu-filho se faz presente de maneira maciça na campanha “Madrinhas da Amamentação”, embora a aliança internacional demonstre a busca por imagens e textos que contextualizem o aleitamento materno perante a complexidade do mundo e das problemáticas que envolvem o assunto. As sutis variações de vestuário, nos ambientes e no tratamento gráfico dispensado aos cartazes brasileiros não deixam de constituir sinais de atualização para a mensagem, mas o que se verifica na produção da WABA é a intensiva busca por linguagens permanentemente contemporâneas que consideram a mulher como membro ativo desta realidade em constante transformação.
Desde o início da campanha liderada pela WABA, os textos principais dos cartazes brasileiros – embora adaptados das diretrizes internacionais – tendem para o tom imperativo, parecendo estabelecer que esta é a tarefa de toda mãe, tal e qual pregava aquele discurso higienista que culpabilizava a mulher por eventuais insucessos com a saúde de seus filhos. Apenas a partir de 2004, quando o símbolo da WABA Brasil passou a figurar nos cartazes da campanha, percebem-se alguns sinais de engajamento, ora esclarecedores do real sentido da amamentação exclusiva, ora comunicadores da existência de uma lei de controle ao comércio de leites modificados.
Importante notar também que a partir de 2007, quando o lema da campanha internacional apontava para o alarmante número óbitos anuais de bebês que não são amamentados (Save more tham 1 million babys!), a campanha nacional deixa transparecer um flagrante “apaziguamento” da mensagem, coisa que se repete em 2009, quando “Breastfeeding: a vital emergence response” foi traduzido para “Amamentação em todos os momentos”. No cartaz de 1999, chama a atenção o sub- texto “Se você tem alguma dificuldade em amamentar converse com o pediatra do seu filho”.
Conhecendo um pouco da história da amamentação no Brasil e, portanto, da estratégia de marketing empregada pelas indústrias de leite em pó sobre a área médica, não há como ler as versões deste conjunto de cartazes nacionais sem aventar que o vínculo entre a Sociedade Brasileira de Pediatria e o Ministério da Saúde possa não estar ainda suficientemente refratário às pressões econômicas da indústria, pois também a insistência em um mesmo modelo visual soa incoerente com os evidentes avanços verificáveis em muitas searas da comunicação pública contemporânea.
As alternâncias de conduta no Brasil sobre a questão da amamentação fazem parte da história de nosso país e, como tal, não podem deixar de ser consideradas por iniciativas que se proponham a resgatar a prática do aleitamento materno. Nesse sentido, é primordial que as campanhas tenham, periodicamente, seus resultados avaliados criticamente – em termos de linguagem visual e textual, repercussão junto ao público etc., a fim de que medidas de aprimoramento sejam tomadas para equiparar as campanhas sobre este assunto ao vigor necessário que conduzirá à mudança de conduta da sociedade brasileira quanto à segurança alimentar infantil.
Observação importante: a base analítica deste artigo é composta pelos cartazes das campanhas da WABA e “Madrinhas da Amamentação”. Entretanto, tais imagens não puderam figurar neste documento em função dos limites de tamanho de arquivo.
Referências
ALMEIDA, João Aprígio Guerra de. 1999. Amamentação, um híbrido natureza-cultura, Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.
CANCLINI, Nestor Garcia. 2001. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização, Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
GOLDENBERG, Paulete. 1989. Consumo e reprodução social: o desmame precoce na perspectiva de marketing do leite em pó num país subdesenvolvido, Repensando a desnutrição como questão social, Campinas: Editora Cortez e UNICAMP.
MULLER, Mike. 1995. O matador de bebês, Recife: IMIP.
SIQUEIRA, Siomara Roberta e TOMA, Tereza Setsuko. 2002. As Semanas Mundiais de Aleitamento Materno. In REGO, José Dias (Org). Aleitamento Materno: um guia para pais e familiares, São Paulo: Editora Atheneu.