Sociedade de Pediatria viola
“Código = NBCAL” com o apoio das indústrias
Manual para médicos omite diretrizes oficiais do país para amamentação e introdução alimentar, e faz parte de um combo de cursos, materiais e até vídeos apoiados pela corporação suíça
A ofensiva da indústria de alimentos ultraprocessados para criar uma narrativa conveniente aos seus interesses e minar políticas públicas ganhou um novo capítulo com a publicação de um manual lançado em maio pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Direcionado aos 25 mil pediatras associados, “Temas da Atualidade em Nutrologia Pediátrica” é uma compilação de orientações aos médicos sobre diversos assuntos relacionados à alimentação de crianças e adolescentes.
Além de não adotar a classificação NOVA, que divide os alimentos pelo grau e o propósito de processamento e que criou o conceito de ultraprocessados, o manual lançado pela SBP ignora e contraria as duas diretrizes oficiais do país nessa seara: o Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado em 2014, e especialmente a nova versão do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos, de 2019.
A campanha também incluiu a revista Pais e Filhos, que publicou o texto “Composto lácteo: entenda o que é e conheça os benefícios para a nutrição do seu filho”, cujo título é autoexplicativo. Nesse exemplo fica ainda mais difícil para o leitor identificar que se trata de um especial publicitário da linha Ninho Fort+, e não um conteúdo editorial da revista.
Valeu a pena o investimento. No Brasil, duas linhas de produtos lácteos pediátricos contribuíram para o resultado recorde em vendas. “O Brasil registrou crescimento de dois dígitos com forte demanda ampliada, especialmente para Ninho, NAN…”, afirma comunicado disponível no site da Nestlé.
Outro lado
Segundo a pediatra Virgínia Weffort, organizadora da publicação da SBP e presidente do Departamento de Nutrologia Pediátrica, o conceito de ultraprocessados não foi adotado “provavelmente porque não tinha onde incluir esta classificação”.
Em resposta por escrito, ela elogia o Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos: “Excelente para informação sobre a amamentação. São várias páginas bem documentadas sobre o leite humano”. Mas aponta a contrariedade a respeito do consumo do leite de vaca e do sal como justificativa para desconsiderar toda a abordagem do instrumento oficial de segurança alimentar do Brasil.
“Indicam o leite de vaca integral antes de 12 meses, o que o departamento científico de Nutrologia da SBP e as sociedades internacionais não recomendam”, afirma. “O guia também libera o uso do sal no primeiro ano, o que não é adequado de acordo com órgãos científicos nacionais e internacionais. O DC Nutrologia/SBP fez um documento com as inadequações do guia, que estão no site da SBP.”
Segundo o guia, nos casos em que não é possível amamentar, a fórmula é o alimento recomendado. Embora não seja considerado o ideal, o consumo do leite de vaca é admitido desde que sob orientação do profissional de saúde e apenas nos casos em que a família não tem recursos para comprar a fórmula.
Em relação ao sal, enquanto o guia recomenda que a comida da criança seja a mesma da família, desde que seja saudável e faça um uso mínimo de sal, a SBP só recomenda o consumo a partir dos 12 meses.
Weffort faz uma defesa dos compostos lácteos para crianças de 1 a 3 anos de idade com o argumento da seletividade alimentar. “É melhor que leite de vaca integral, que não tem micronutrientes e ômega 3 e tem excesso de proteína (predispõe a obesidade), excesso de sódio (pode predispor a insuficiência renal e hipertensão arterial e a obesidade), excesso de gordura saturada (predispõe a obesidade e doença cardiovascular)”, explica.
Embora afirme que o médico deve orientar o que é melhor para a criança de acordo com a avaliação individual, a presidente do Departamento de Nutrologia diz que os compostos são uma boa estratégia para uma alimentação balanceada em crianças de 1 a 3 anos. “Nessa faixa podem apresentar seletividade alimentar, comer menos e preferir os alimentos doces (que são normais nessa faixa etária), portanto, se não estão ingerindo todos os nutrientes necessários, é importante que o pediatra oriente a oferta do que falta para evitar deficiência de micronutrientes com as repercussões de baixo ganho em estatura e aumento do peso”, acrescenta.
Sobre a presença de maltodextrina, Weffort não vê problema no consumo desse aditivo em crianças de até 2 anos: “A maltodextrina é um açúcar que, em quantidades adequadas, oferece calorias que a criança precisa para seu crescimento”. E informa que o Departamento de Nutrologia não recomenda o uso de adoçantes, “a não ser para o diabético”, embora essa recomendação não apareça no manual apoiado pela Nestlé. Os adoçantes estão presentes em diversos alimentos ultraprocessados, como gelatinas, bolos e sucos, por exemplo.
O manual da SBP traz ainda capítulos inteiros dedicados a temas aleatórios ou controversos em nutrição, como dietas sem glúten e sem lactose para crianças, utilidades do kefir na saúde e um tira-dúvidas sobre o selênio. Segundo a SBP, os temas foram escolhidos “pela frequência de perguntas pelos pediatras, nos congressos e no site”. Por fim, Weffort afirma que o apoio da Nestlé se limitou à diagramação e impressão do manual de atualidades “sem contato com os autores”. E que o material será distribuído no próximo congresso da SBP.
O aleitamento.com defende o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno que completa 40 anos esse ano e sua versão brasileira – a NBCAL, Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos Infantis que são temas da SMAM 2021: proteger a amamentação.
Parabenizamos o “Joio e o Trigo – Jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder”.