Redução da maioridade penal:
jeitinho brasileiro
Jornal Correio Braziliense – 10/4/2015
» DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR
Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria e representante da SBP no Global Pediatric Education Consortium (GPEC)
» EDUARDO DA SILVA VAZ
Médico, pediatra e presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
O país precisa criar juízo. A cultura do imediatismo vantajoso é o jeitinho brasileiro. Não leva a nada. Só provoca estragos, já de longa data. Como o de agora que, em profundidade e extensão, devasta a sociedade. Se não cair a ficha do cidadão, o faz de conta continuará predominando em todas as camadas sociais.
Pensar, refletir, analisar, conscientizar, criticar são verbos que necessitam ser conjugados nas entranhas da mente, antes de decisões a serem tomadas. Não apenas com a correção gramatical, mas na essência do real significado. É procedimento que se pratica cada vez menos no Brasil. Quase tudo vai no embalo dos componentes emocionais que ocultam as relações de causa e efeito subjacentes. A verdade dos fatos perde dimensão. As discussões sobre os temas primordiais não saem da superficialidade. Usam a lógica dos jargões que, no fundo, revelam o desconhecimento sobre o assunto.
Um exemplo síntese de toda essa desastrada cultura é a tentativa de reduzir a maioridade penal do adolescente. Um projeto desprovido da mínima fundamentação lógica e científica. O adolescente não é adulto. Tratá-lo como tal é ignorar as transformações anatômicas, fisiológicas, psíquicas e sociais que modelam o amadurecimento do ser humano.
O adulto não nasce na adolescência. Vem da concepção, do que se passa com ele na vida intrauterina e na primeira infância, isto é, nos seis primeiros anos de vida. É nesse período da existência que se plasma o perfil comportamental das pessoas. O que elas são na adolescência é o que aprenderam a ser na infância. Ademais, não vieram ao mundo por decisão própria. Para vivenciar o cenário de carências, precariedades e segregações, que acometem a maioria dos nascidos no Brasil, certamente não aceitariam nascer por aqui. Prefeririam restar no nada. Cumprem, portanto, a pena de vida indigna desde que deixaram o útero materno, sem terem cometido qualquer ato ilícito. Uma injustiça real, concreta, completamente banalizada pela sociedade.
Se há adolescentes que vivem em conflito com a lei é porque a sociedade vive em conflito com as responsabilidades que lhe cabem de cuidar do ser humano em formação. Não as cumpre. Nega, a criaturas que nela desabrocham, as condições indispensáveis à maturação da personalidade, fenômeno essencial que requer berço não de madeira ou cimento, mas de afeto, afago, carinho, doçura, estímulo, calor humano, além de segurança e proteção contra agressão, privação parental, relações desumanas, ambiente discriminante, preconceitos e vulnerabilidades físicas e mentais.
O país tornou-se um dos maiores produtores da desigualdade que afeta a infância, destituindo-a do sagrado direito ao percurso evolutivo, sem o qual não ocorrerá o primor de sua maturidade ao longo da vida. Somos, por isso mesmo, uma das nações mais desleixadas para com as crianças e os adolescentes. Abusos e negligências, perpetrados contra o ser humano na fase de vida em que é dependente dos adultos, podem lesar definitivamente o seu cérebro em construção. São geradores da iniquidade que segrega as classes sociais cuja propalada ascensão não passa do faz de conta. Daí brota, inevitavelmente, a violência. Não por outro motivo, o Brasil é um dos países com os mais altos índices de criminalidade no mundo.
Atribuir tão vergonhosa situação ao perfil de um adolescente infrator, como se fosse característica constitucional com a qual veio ao mundo para crescer em conflito com a lei, é grave erro interpretativo, totalmente distante das evidências científicas que o desmentem. As pesquisas comprovam sobejamente que o estresse crônico, iniciado na vida intrauterina, desvia o novo ser do seu desenvolvimento normal; que grande número de adultos com quadros psicóticos foram vítimas de abusos na infância e na adolescência; que a pobreza é um dos principais fatores estressantes desse ciclo de vida; e que a educação desqualificada vulnerabiliza, degenera e desestrutura as vítimas da desigualdade. O julgador só deveria condenar um infrator que, como ele, tenha tido acesso à plenitude de vida saudável durante a infância e a adolescência.
A redução da maioridade penal é, pois, um infundado ato imediatista próprio do jeitinho brasileiro. É manobra para aumentar, ainda mais, a maioria penalizada nos dantescos presídios, filhos da pobreza e da discriminação. Uma estratégia para perpetuar o segregacionismo. Não desmonta a fábrica da violência. Só infantiliza a maioridade penal, cometendo enorme desrespeito aos direitos da criança e do adolescente.