Chega de padecer no paraíso
Flávia Oliveira – O Globo
Está na hora de dividir as responsabilidades com a casa e os filhos. No Brasil, até as políticas públicas reforçam o vínculo da mulher com o lar.
Pelas bandas da Holanda, país top five no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, um arranjo social instituiu o Dia do Papai. Funciona assim: toda semana, por 24 horas, as crianças, sem aula, ficam sob inteira responsabilidade dos homens. Desobrigadas dos afazeres domésticos, as mães usam o tempo livre em proveito próprio. Não é lei, mas vale, conta Nilcéa Freire, representante no Brasil da Fundação Ford. É acordo possível, explica, numa sociedade com mercado de trabalho em horário flexível e avançada em igualdade de gêneros. Aqui, estudo de 2009 do IBGE e da Secretaria de Políticas para Mulheres, que Nilcéa comandou até quatro anos atrás, mostrou que elas dedicam três horas e meia por dia às atividades do lar; eles, uma hora e 14 minutos.
“O acerto holandês não parece viável no Brasil de hoje, onde a mulher ainda está presa à tradição de cuidar da casa, dos filhos, dos idosos, dos doentes”, completa a ex-ministra. Mas, já que o domingo é das mães, podemos sonhar?
Esse utópico dia, começaria com mamãe desobrigada de levantar na madrugada para trocar fralda ou dar mamadeira. Passaria pelo café da manhã que desse na telha: caneca na mão, debruçada na bancada da cozinha; ou bandeja na cama, meio papaya, torrada e geleia. Seguiria com livro na rede; filme ou série de TV largada no sofá; manicure; papo com amigas; bons drinks; cineminha; teatrão. Livre escolha.
Mas não rola. No Brasil, as mulheres são 52% da força de trabalho, mas continuam responsáveis pela casa e a família. A vinculação é intensa a ponto de influenciar escolhas profissionais. Quatro em dez graduadas estão em carreiras relacionadas a educação, saúde e bem-estar. Traduzindo: são professoras, enfermeiras, assistentes sociais.
Até as políticas públicas ratificam a sina. Na América Latina, todos os programas de combate à pobreza implementados nos anos 1990 e 2000 priorizam a titularidade feminina. No Minha Casa Minha Vida, contratos são assinados preferencialmente por elas. O Bolsa Família também é assim.
Mulheres estão à frente de nove em dez benefícios; são 14,1 milhões de famílias. Até quando têm cônjuges (44% dos lares são chefiados por homens), elas mandam. “As mulheres recebem os cartões, porque gerenciam a renda olhando as necessidades de cada familiar. É evidente a melhora do bem-estar”, defende Leticia Bartholo, secretária-adjunta de Renda de Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social.
Sim, Letícia concorda que a titularidade feminina reforça o vínculo da mulher com o lar e, de quebra, a velha desigualdade de gênero. Por outro lado, argumenta, é impossível ignorar os benefícios da escolha: a mortalidade infantil caiu 19% num intervalo de cinco anos do Bolsa Família; os óbitos por desnutrição, 58%. E dinheiro na mão, sublinha, aumenta a autonomia com os gastos e reduz a dependência dos parceiros.
O pecado das políticas é perpetuar o modelo familiar de séculos atrás, aquele em que o marido é provedor e a esposa, mãe e dona de casa, diz Cássia Maria Carloto, professora da Universidade de Londrina (PR):
“A mulher fica presa à maternidade, especialmente na baixa renda. Não se pensa em construir a autonomia econômica e social delas. Não temos creches, educação em horário integral, equidade salarial. Não se fala em compartilhar responsabilidades”.
Falta a base do tal arranjo holandês. Assim, enquanto o Dia do Papai não chega ao patropi, o jeito é padecer no paraíso. Feliz Dia das Mães!
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