A Mulher e o Direito de Amamentar: As Condições Sociais para o Exercício desta Função
Womens Right to Breastfeed: The Social Condition for Performance of This Function
El Derecho de la Mujer de Amantar: Las Condiciones Sociales para el Ejercicio de esta Función
Resumo
Amamentar revela lacunas e distorções. Embora considerada como direito da mulher e da criança, não são oferecidos condições e suportes necessários. Procuramos compreender as relações de significados que as nutrizes estabelecem entre amamentar e as atividades produtivas e não produtivas do seu cotidiano. Entrevistamos 22 nutrizes, após consentimento, sobre suas experiências de amamentar. Análise dos dados fundamentou-se nas relações sociais de gênero. A mulher se coloca em função do outro (filho, marido); o aleitamento é assumido prioritariamente, e as outras atividades a título “provisório”. Exigindo de si mesma, a mulher tem ilusória percepção de onipotência e onipresença gerando conflitos no seu meio relacional.
Palavras-chaves: Aleitamento Materno; Saúde da Mulher; Nutriz; Maternidade; Trabalho Feminino; Relações de Gênero
A peculiaridade do corpo feminino para as funções reprodutivas acaba por construir socialmente a mulher para a maternidade, como garantia de sobrevivência da espécie e de manutenção da prole.
A institucionalização da maternidade como ideal feminino definiu a mulher como ser social. A amamentação como um dos atributos do ser mãe expressa-se como produto da ?natureza das coisas?, isto é, como ?vocação natural?. Em outras palavras, poderíamos dizer que a maternidade é para a mulher uma necessidade, ou uma fatalidade inevitável, devendo ser assumida como função primordial perante as outras atribuições.
No acoplamento da amamentação às demais atribuições sociais, a mulher acaba por sobrecarregar-se, gerando vivência de situações conflitivas que a colocam diante do impasse de escolher entre o êxito profissional ou o êxito na vida familiar. O conflito de tais papéis pode levá-la a abandonar o trabalho ou a ocultar a maternidade na sua vida profissional(1).
Em épocas passadas, a combinação destes papéis realizava-se de forma mais harmônica, a criança acompanhava a mãe no seu trabalho, como as índias ainda o fazem carregando seus filhos em tipóias.
Com a modernização e a industrialização, os padrões de maternidade e de trabalho tornaram-se menos integrados(2). Com o capitalismo, a produção é expropriada do espaço reprodutivo. A casa, que antes era espaço produtivo e reprodutivo, compartilhado por homens e mulheres, transforma-se predominantemente em espaço feminino de reprodução humana. O processo de produção passa a ser sexuado, geralmente a favor do homem, enquanto a reprodução se torna incumbência quase exclusiva da mulher. Assim, institui-se para a mulher a condição de responsável pelo cuidado e pela educação dos filhos, como sendo de sua natureza e destino, além de ser considerada o suporte e a sustentação da unidade familiar. O trabalho e a administração doméstica, a criação e a educação dos filhos são atividades consideradas como primordiais e percebidas como não produtivas, o que dificulta a visibilidade desse trabalho, bem como a auto- emancipação e auto-estima da mulher.
O patriarcalismo coloca o homem como provedor da família e a mulher como trabalhadora complementar, tendo na reprodução da família seu principal campo de atividade e construção de sua identidade.3
A inserção da mulher no mercado de trabalho se oportuniza como uma necessidade social, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial(4). Ao incorporar-se ao espaço público, a mulher teve de adequar-se às estruturas delineadas sob as bases de territórios masculinos, sem considerar as especificidades do feminino. As sobreposições de funções acabam sendo percebidas como fator de discriminação da mulher no mercado de trabalho, por resultar em um trabalho feminino caracterizado predominantemente com descontínuo, freqüentemente em tempo parcial, marcado pela diversidade e pela intermitência de entradas e saídas no mercado, devido à fragilidade de equilíbrio entre as atividades produtivas e reprodutivas.
A modernização permitiu um movimento de aproximação entre os mundos, estando as mulheres também presentes no território masculino, guardando, entretanto, raízes no território feminino o que as deixa divididas. Cabe à mulher adequar-se aos territórios estruturados sob domínio masculino, em que pesem as dificuldades de se organizar e o risco de comprometer aquilo que sempre lhe foi precioso, ou seja, o papel materno e a condição de rainha do lar.
Os direitos e a proteção legal conquistados pelas mulheres perante o exercício da maternidade, como licença maternidade, horários concedidos para amamentação, creches, acabam por constituir-se em mais uma forma de discriminar a mulher na força de trabalho.
As leis trabalhistas são bastante falhas e dissociadas, na medida em que não garantem os 120 dias de licença para o aleitamento materno, e ao final da mesma, a mulher se vê sem condições reais de continuar amamentando devido à ausência de creches perto do local de trabalho, tornando difícil usufruir os 2 (dois) intervalos de meia hora para amamentação previstos por lei. Mesmo no gozo deste direito a mulher é discriminada e sente-se cobrada no desempenho produtivo, cobrança essa advém, muitas vezes, de colegas de trabalho do próprio gênero. Em vez de sentimentos de solidariedade, impera a competitividade, e a nutriz trabalhadora acaba sendo considerada um ônus para o serviço, em função da sobrecarga que transfere às demais trabalhadoras na compensação da ausência temporária para amamentação.
As leis criadas para proteção e preservação do ato de amamentar têm por finalidade resguardar a força de trabalho, estando longe de atender os requisitos necessários satisfatórios ao processo de amamentar, na medida em que fixam arbitrariamente o número de intervalos e duração da amamentação durante o expediente de trabalho, até que a criança complete uma certa idade e prevê a existência de locais para amamentação sem contudo especificá-los(5).
Nesse sentido, a ?praxis? da amamentação pelas mulheres revela lacunas e distorções uma vez que se configura a amamentação como um direito da mulher e da criança e ao mesmo tempo se identifica a falta de compromisso social em oferecer condições e suporte adequados para que o aleitamento materno se concretize, sem sobrecarga e desgaste biopsicossocial do gênero feminino nesse processo.
Diante das controvérsias e contradições da condição social feminina para o exercício da amamentação, procuramos neste estudo compreender, sob a ótica das nutrizes, as relações de significados que elas estabelecem entre o amamentar e as demais atividades consideradas produtivas e não produtivas do seu cotidiano.
Metodologia
Os sujeitos desta investigação foram 22 (vinte e duas) mulheres que estavam vivenciando pela primeira vez a amamentação, com idade da criança entre 1 mês a 12 meses, que consentiram falar sobre essa vivência.
O local selecionado para identificação das nutrizes foi uma Unidade Básica de Saúde localizada num dos bairros mais antigos da cidade de Ribeirão Preto, sendo o projeto aprovado pela Comissão de Ética do Serviço.
A coleta de dados foi realizada no domicílio, após consentimento das informantes, em horário e dia pré-determinados por elas. Utilizamos a entrevista semi-estruturada: as falas foram gravadas e posteriormente transcritas e digitadas para serem submetidas à análise.
Utilizamos a técnica de análise de conteúdo, mais especificamente a análise temática, que se constitui em descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença, ou freqüência de aparição, pode significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido(6).
A discussão dos dados está fundamentada na teoria das relações sociais de gênero, entendendo-se por gênero mais que uma identidade aprendida ou uma aprendizagem de papéis. O gênero é constituído e instituído pelas múltiplas instâncias e relações sociais, pelas instituições, símbolos, formas de organização social, discursos e doutrinas(7).
Resultados
Traçando um perfil biográfico das 22 (vinte e duas) nutrizes entrevistadas, foi possível apreender alguns traços comuns a todas.
Quanto ao nível de instrução, a maioria das nutrizes iniciou o 1ºgrau, sendo que algumas chegaram a concluí-lo e entre as que começaram o 2º grau, a maioria o concluiu. Quanto ao nível superior de instrução apenas uma o alcançou.
Observamos que, para muitas das mulheres desse grupo, a possibilidade de dar continuidade aos estudos esbarrou na falta de oportunidade devido à necessidade de trabalhar, condição da maioria, e/ou no desinteresse pessoal, uma vez que ainda permanecem em algumas camadas da população alguns estereótipos sobre educação como sendo um terreno de prioridade masculina.
A ideologia que mais é apropriada pelo comportamento feminino da classe trabalhadora e média baixa é a constituição do casamento e da família em primeira instância, e talvez um trabalho em meio período do dia. Assim a expectativa da educação universitária se torna muito distante(8).
No que se refere à ocupação exercida pelas mulheres ouvidas, por ocasião da entrevista, a maioria referiu ser trabalhadora do lar; um pequeno número realizava atividades remuneradas no domicílio, tais como, cabeleireira, costureira, contabilista, vendedora; outras participavam do mercado formal de trabalho.
O envolvimento das mulheres com a atividade produtiva ocorreu para a maioria delas antes da fase adulta, por necessidade financeira da família de origem ou por sua própria motivação.
Analisando a trajetória das mulheres que se envolveram com atividades produtivas em alguma fase da vida, observamos tentativas de articulações dos papéis de esposa, mãe e trabalhadora. Constatamos que quase metade delas interrompera a vida profissional após o casamento por imposição do marido, pela gravidez ou ainda pela chegada do bebê. Tal fato confirma a ilegitimidade do domínio público exercido pela mulher, pois quando esta se defronta com o exercício de outras funções femininas como mãe, esposa e dona de casa acaba por assumi-las como prioritárias.
Ao considerar a remuneração recebida pelo trabalho produtivo, percebemos, através de seus relatos, que a figura masculina desempenha o papel principal de provedor da família. Com salários inferiores aos dos homens, as mulheres assumem o papel de colaboradoras na renda familiar. A renda pessoal das mulheres oscilou entre 1 a 10 salários mínimos, sendo que duas destas assumem integralmente o sustento da família.
As mulheres atuam nos níveis mais baixos da escala ocupacional e sofrem discriminações diretas em razão do sexo, recebendo salário médio que alcança somente 54% do que recebem os homens(9).
Delineando a prática de amamentação realizada pelo grupo de mulheres estudado, por ocasião da primeira entrevista, mais da metade mantinha aleitamento exclusivo, o restante já tinha introduzido a complementação láctea. Após seis meses, realizamos novo contato, verificamos que mais da metade já tinha desmamado totalmente a criança. A introdução da mamadeira ocorreu, de forma geral, antes dos seis meses de vida da criança e entre as razões mais alegadas em ordem decrescente, estão a hipogalactia, leite fraco, volta ao trabalho, opção materna, ordem médica e tempo recomendado.
A mulher, ao justificar-se diante do limite estabelecido para a prática da amamentação, tende a focalizar determinantes que fogem ao seu controle, tais como, a falência da produção e a qualidade láctea. As evidências de dificuldades na articulação das tarefas reprodutivas com as produtivas podem ser observadas nesse grupo, ao se considerar o retorno ao trabalho como obstáculo à manutenção da amamentação.
A esse respeito, pondera-se o fato de que grande parte das mulheres entrevistadas descartou o trabalho feminino como interveniente, direto ou indireto, no processo da amamentação. Isso poderia significar que o trabalho externo como importante fator na duração do aleitamento materno foi subestimado(10).
Na integração das múltiplas atividades, a mulher reforça o caráter social da construção do território feminino de ?ser?, condicionando-o a determinantes alheios a si mesma, ou seja, em função do filho, do marido e da própria unidade familiar.
Identificamos, no grupo estudado, que os atributos maternos são assumidos prioritariamente, colocando as outras atividades produtivas em outros planos, a título ?provisório?:
?eu acho que é difícil ser mãe hoje, a mulher tem que sair para trabalhar e, eu acho que para educar o filho do jeito que eu quero tenho que estar constantemente com ele…filho interfere muito na vida da mulher, tira a liberdade? (E.11)
?a gente tem que abrir mão de algumas coisas, também não vai ser para a vida toda de ficar assim em função do bebê? (E.8).
O gostar ou não do papel materno, amadurecer com ele ou sobreviver a despeito dele, atualizar-se ou destruir-se, tudo depende das renúncias impostas pela maternidade. Para as mulheres entrevistadas, a maternidade tem importância significativa na vida, o que faz com que seu envolvimento com o domínio público se configure como fragilizado, passível de interrupção, tendo em vista a dependência do bebê:
?eu e meu marido tínhamos a intenção de ter logo outro filho pois, já que eu parei mesmo com meu trabalho para ficar cuidando dele, seria melhor já parar uma só vez um tempo maior para não precisar parar de novo. Eu poderia deixá-lo com minha mãe ou minha sogra e ir só para amamentar mas, não tenho coragem. É uma coisa que eu queria é ser mãe é tudo isso..? (E.8)
Os valores construídos para a mulher acerca da maternidade não permitem sua renúncia, sem culpa ou restrições. Neste sentido, a mulher exige mais de si mesma, transferindo-se indefinidamente de uma atividade para outra, tendo a ilusória percepção de ser onipotente e onipresente. Realiza atividades sob constante luta contra o tempo:
?eu estou fazendo comida, eu fico pensando:- ai! tem que dar de mamar; tenho que lavar roupa; tenho que limpar casa, é muita preocupação…não dá tempo de fazer tudo isso, por isso estou emagrecendo…agora eu vou fazendo o que dá primeiro, eu tenho que cuidar dele, aí depois do almoço, a roupa, a casa…agora eu estou me ajeitando, faço cada dia um pouco. Eu penso primeiro nele, eu vou fazendo como o tempo vai dando, eu faço uma coisa por vez, cada dia eu faço uma coisa…?.(E.12)
A queda da qualidade no desempenho dos múltiplos papéis é geradora de sentimentos de incapacidade para a mulher, repercutindo na sua saúde física e mental, além de produzir conflitos nas relações familiares e no trabalho:
?estou exausta, trabalhar no dia seguinte não é fácil, mas estou agüentando. Eu estou no pior mês no meu meio profissional, tem imposto de renda para fazer dos clientes, é uma loucura, eu devia ter me programado melhor, eu estou assim me culpando…as pessoas não têm ?desconfiômetro?, o meu cliente mesmo, eu estava amamentando ele ligou 4 vezes não queria nem saber, acho que ele tinha que ir ao banco e queria que eu o atendesse naquela hora, depois eu tive que ligar para ele e contornar a situação…? (E. 7)
A eqüidade entre os sexos, duramente reivindicada pela mulher nos movimentos que eclodiram nas décadas de 1960/1970, acaba sendo usada contra a própria mulher desconsiderando-se a situação eminentemente feminina em que ela se encontra – o processo de amamentação. O preceito da igualdade como regente das relações sociais é composto pela diversidade e significa que, ao se requerer direitos iguais, deve-se, paralelamente, respeitar as diferenças conforme concepções atuais dos movimentos feministas(12).
As cobranças também são feitas à mulher quanto ao exercício das tarefas domésticas:
?a minha mãe se ela chega aqui em casa e está tudo bagunçado ela começa: é porque você não faz nada e não sei o quê, o que você ficou fazendo até agora? Você ficou vendo televisão? Você não limpou a casa? Eu falo para ela: é porque com criança você trabalha o dia inteiro, eu não vou deixar de cuidar dele para cuidar da casa…? (E.9)
E nesse movimento de resistência da mulher ante a necessidade de tornar visível a multiplicidade de tarefas a desempenhar no seu cotidiano, é possível identificar um contramovimento instituído pelo próprio gênero. Assim, percebemos que o social constrói a mulher para o desempenho de seus papéis biológicos e a própria mulher, na maioria das vezes é quem reproduz e mantém a desigualdade e a discriminação do próprio gênero.
A identificação de conflitos configura-se também na relação marital. O fato de todo o estado gestatório, o parto e a amamentação serem processos vividos fisicamente e exclusivamente pela mulher pode causar dificuldades ao homem para sentir-se incluído nesses processos. Dessa forma, surgem situações de cobrança por uma maior atenção da mulher para com ele, que se sente isolado com a vinda do filho:
?ele se sentiu jogado de lado e falava: você não está dando atenção para mim, você só liga para o serviço, para a criança e com você, não está ligando para mim, você esqueceu-se de mim! Eu falei para ele: não é isso, é que não dá tempo, eu tenho que dar atenção para o nenê, para casa e vendo as coisas para fazer então para mim está muito difícil…tenha paciência comigo, eu acho que vou aprender com o tempo…eu percebi que eu estava errada, eu estava tendo tempo durante o dia enquanto ele (bebê) dormia, então eu pensei em correr nesta hora para dar conta do serviço, e a noite eu dar atenção para ele, quando ele chegasse…? (E.21)
As mulheres assumem para si a culpa de não estarem se ocupando adequadamente do tempo para atender às exigências do filho e do marido e se percebem como fonte inesgotável de sustentação da família.
Na socialização das tarefas a serem executadas por homens e mulheres no domínio público e privado, observamos no grupo das mulheres entrevistadas que, no privado, a participação do homem é tida como ?ajuda?, pela ilegitimidade do mesmo nesse domínio. Tal situação é semelhante para a mulher quando atua no domínio público.
A divisão sexual do trabalho e a distribuição de poder e prestígio estão associadas à legitimação da assimetria sexual no campo das relações concretas, sendo o argumento universal de hierarquização, o sexo, construído socioculturalmente e não biologicamente apenas na diferenciação do gênero. Trata-se, de fato, de papéis sociais sexuais, entendidos como práticas institucionalizadas, como cristalizações de relações sociais.13
Dentre as tarefas que o homem coloca para si ou nas quais é colocado como ajudante, há preferência pelas que se referem a determinados cuidados com a criança:
?ele me ajuda bastante, quando ele está aqui ele sai com o nenê para dar um intervalo maior entre as mamadas, ele troca, faz dormir, só não troca quando ele está evacuado? (E.22)
Observamos que os homens tendem a selecionar, dentre os cuidados com a criança, o que lhes é menos desagradável e mais fácil. As tarefas domésticas tendem a ser desconsideradas pelo homem na partilha das obrigações. Prefere se submeter aos arranjos temporários a ter que executá-las permanentemente e seleciona as de sua preferência:
?logo que eu cheguei em casa meu marido falou: você não precisa ficar preocupada com minha roupa porque você sabe que eu passo a semana inteira, chego do serviço, pego a bermuda, uma camiseta e fico com ela uma semana inteira, não se preocupe com a casa não, eu quero que você cuide do bebê, jantar deixa para fazer quando eu chegar, assim enquanto eu cuido dele para você, você faz a janta, então ele se propôs a me ajudar assim? (E.17)
Da mesma forma, o envolvimento da mulher no domínio público é representado como ?ajuda? ao orçamento familiar, isso porque a mulher foi condicionada para o exercício de atividades domésticas e funções afetivas, atividades socialmente não produtivas:
?eu me sinto pressionada, vejo as dívidas, por isso eu falo, tenho que voltar a trabalhar fora, ou fazer algo em casa como lavar roupa, sempre entra algum dinheiro para ajudar, ficar em casa para cuidar melhor das coisas e dela seria bom, agora ainda não, ela ainda depende de mim para mamar, mas eu quero voltar a trabalhar ficar em casa é muito monótono…trabalhar fora distrai a cabeça?. (E.10)
Por outro lado, as mulheres identificam o trabalho doméstico como ?monótono?, desvalorizando ao mesmo tempo o seu trabalho no domínio público ao considerá-lo como ?distração?, trabalho lúdico.
A maioria das entrevistadas tende a lidar com o domínio público de forma mais instrumental, quando nele atua por injunções de ordem econômica ou como forma de se libertar da dependência masculina.
?eu quero voltar a trabalhar, assim eu tenho como manejar o dinheiro e não depender dele (marido)…ele quer que eu, voltando da licença gestante force para ser mandada embora do emprego?. (E.10)
Há uma predominante contradição entre as mulheres da classe trabalhadora e da classe média baixa, em razão da sua carga de feminilidade (ser submissa, subordinada ao homem, dependente e doméstica) estar em franca desconexão com suas necessidades cotidianas (lutar pela sobrevivência diária). Para muitas mulheres da classe trabalhadora, a contradição manifesta-se na ruptura entre a vontade de seus maridos de que permaneçam em casa e sejam submissas e a necessidade de reconhecimento de sua competência e de preservação da auto- estima(8).
O envolvimento da mulher no domínio público guardando raízes no privado, acaba por ser discriminatório à mulher, dificultando a sua inserção e manutenção no mercado de trabalho. Além disso, os salários são mais baixos, conforme mencionado por essas mulheres:
?discriminação ainda existe em todos os sentidos, como o que aconteceu comigo no meu serviço, se você tem filho eles não pegam para trabalhar preferem homem…? (E.14)
?o que faz o homem, a mulher faz também, mas a sociedade tem essa de que mulher tem que ter salário menor que o homem, pode fazer o mesmo serviço, até melhor mas tem o salário menor, isso está errado?. (E.14)
Enquanto a maternidade acaba sendo fator de discriminação à mulher no domínio público, para o homem a paternidade é fator de estímulo e valorização, fato esse também referenciado pelas mulheres entrevistadas:
?ele vê o trabalho dele hoje com mais importância ele fala:- agora mudou, a gente tem um filho, tem que pensar na educação dele por isso, tenho que trabalhar mais?. (E.8)
A condição social de provedor da família criada para o homem apresenta-se fortalecida no seu envolvimento com a função reprodutiva. A mulher vive a ambigüidade de estar presente ao mesmo tempo na esfera pública e privada, enquanto o homem continua tendo como seu único e principal envolvimento o domínio público.
Assumindo a função materna como prioritária a condição de trabalhadora autônoma apresenta-se para a mulher como mais ajustável à maternidade, por não restringi-la à obrigatoriedade de horários rígidos, utilizando os períodos disponíveis que o exercício da maternidade possa lhe conceder:
?só no sábado mesmo, quando alguém olha ele para mim eu tenho trabalhado de cabeleireira, mas é difícil, ele chora demais, eu já tinha que estar trabalhando?. (E.1)
Os trabalhadores autônomos se inserem em espaços informais e não contribuem para a Previdência, como é caso da maioria das mulheres entrevistadas. Dessa forma, este trabalho é realizado sem proteção de qualquer regulamentação legal. É regido por acordos informais.
As mulheres confirmam que, se desejam continuar no mercado de trabalho, devem ajustar suas funções maternas às exigências externas:
?quando eu voltar para o trabalho, aí vai ter problema, eu pretendo organizar assim, eu dou de mamar de manhã, saio para almoçar em casa, dou de mamar depois à noite. Eu não quero desmamar, tenho certeza que eu voltando a trabalhar vou ter pressa de ir embora, antes eu ficava até o último cliente, não tinha preocupação?. (E.15)
As desigualdades das condições de vida e trabalho impedem e obrigam a mulher a deixar de amamentar. Na luta pela emancipação feminina reivindica-se não só o direito ao exercício da plenitude de suas capacidades intelectuais e emocionais, mas também o direito de ter filhos e ter condições socialmente criadas para amamentá-los, portanto, ?não é a emancipação feminina que impede a mulher de amamentar sua prole?(14).
Convivem as mulheres com o fantasma da culpa ao se envolverem com desejos outros não exclusivos à maternidade, advindos de uma necessidade pessoal de independência e autonomia ou imposição situacional de sobrevivência da família.
Considerações Finais
A amamentação, como prática valorizada e cobrada socialmente, impõe à mulher responsabilidades na determinação presente e futura das condições de bem estar físico e emocional do filho, e à medida que ela contrapõe a amamentação às outras atribuições não menos importantes, a mulher passa a conviver com ambigüidades decorrentes de forças conflitivas.
As dificuldades de acoplamento dos atributos maternos às atividades produtivas e não produtivas são concebidas pelas próprias mulheres como um problema específico da mulher e não de âmbito social, já que o discurso ideológico não lhes permite perceber os desequilíbrios da estrutura social de apoio à maternidade e da desigualdade de divisão sexual na esfera pública e privada.
As mulheres se lançam ao espaço público que aos próprios olhos lhes parece desviante e até mesmo ilegítimo e discriminatório, visto estar estruturado sob as bases masculinas(11). A esse respeito é importante lembrar que qualquer política social que tenha por finalidade beneficiar as trabalhadoras deve não só buscar a igualdade no mercado de trabalho e a proteção às mães trabalhadoras, mas também criar mecanismos que viabilizem uma nova divisão de papéis na família, com todos os seus integrantes partilhando tanto das responsabilidades profissionais como das domésticas e das referentes à maternidade.
A enfermeira, no exercício da prática profissional, deve estar desperta para tais questões. Isso significa apreender que a amamentação ultrapassa a condição biológica de nutriz. Nesse sentido, uma das tarefas mais desafiadoras é fazer com que a enfermeira e demais profissionais da saúde sejam sensibilizados para as questões de gênero, entendendo que a prática da amamentação só será efetiva, se estiver em harmonia com as condições concretas de existência da mulher. Dentro dessa perspectiva, as ações dirigidas à mulher na amamentação devem buscar elevá-la à condição de sujeito do processo, favorecer a aquisição de autoconfiança e o aprimoramento de suas habilidades e capacidades, conduzindo-a para maior liberdade em relação às decisões que afetam o uso de seu corpo. Quando a mulher vivencia conscientemente uma transformação individual, ela pode desejar juntar-se a outras mulheres e mobilizar e elaborar estratégias coletivas no sentido de obter avanços em relação às concepções de justiça social, de forma que os direitos sociais das mulheres tornem-se parte dos direitos da cidadania.
Summary
Breastfeedings shows gaps and problems. Although it is considered a right for the woman and child, the necessary conditions and support is not offered to them. Aiming to understand the meaning of relationship that nursing mothers establish between breast feeding and their productive and not productive activities in daily lives, we interviewed 22 women, with their permission, about their breastfeeding experiences. Data analysis was based on social gender theories. The woman acts in function of the other (child, husband), breastfeeding is assumed as a priority and other activities as ?temporary?. Putting demands on herself, the woman has an illusion of omnipotence and omnipresence causing conflicts in her relationships.
Key-word: breastfeeding, women’s health, nursing mother, maternity, women’s work, social gender theories
Resumen
Amamantar ocasiona ideas vagas y distorciones. Apesar de estar considerado como derecho de la mujer y del niño, no se ofrece condiciones ni soporte necesario.. Intentamos comprender las relaciones significativas que las primerizas establecen entre amantar y las actividades productivas y no productivas de su dia cotidiano. Entrevistamos 22 primerizas, con el debido consentimiento sobre sus experiencias de amamantar. El análisis de los datos se fundamentó en las relaciones sociales del genero. La mujer se coloca a disposición de los otros (hijos, marido); la leche materna es asumida como prioridad, y las otras actividades se quedan con el titulo de “provisorio”. Exigiendo de si misma, la mujer tienes ilusoria percepción de omnipotencia y omnipresencia generado conflictos en su raciocinio.
Unitermos: Leche Materna, Salud de la Mujer, Primeriza, Maternidad, Trabajo Femenino, Relaciones del género
Notas
* Enfermeira. Profª Dra. junto ao Depto. Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP
** Enfermeira. Profª Titular junto ao Depto. Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP
Endereço para correspondência:
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