Manifesto Uterino
14.07.2016
Autor: Bebê – de dentro do útero materno
Mãe, Pai. Tudo bem?
Explico o motivo das minhas constantes reviradas aqui dentro nestas águas quentes e calmas. Não tem a ver, infelizmente, com minha mobilidade em expansão em um espaço cada vez menor para meu tamanho. A temperatura é muito agradável e o seu caminhar mãe, me traz tranquilidade e paz também, porém meus tímpanos recém-formados já tem sido alvo de inúmeras provocações que me fizeram proferir estas palavras antes de seguir meu caminho estreito do canal, assim eu espero.
Esta comunicação se deve às minhas reflexões advindas da escuta que venho fazendo daqui de dentro, entre um sono e outro, das vossas conversas a respeito da minha pessoa. Na verdade, tenho ouvido tudo com muita preocupação. Imaginei que as recentes discussões sobre gênero e toda mobilização feminista no Brasil e no mundo pudesse ter refletido em uma mudança de pensamento e prática de vossas senhorias. Pelo que consigo ouvir, parece não terem compreendido esta efervescência política verbalizada nas centenas de manifestações pelas ruas e também nas mobilizações virtuais, ambas contundentes na luta pela igualdade de gênero que problematiza, inclusive, a própria noção de gênero quando traz o debate Queer e a necessidade de agregarmos outras identidades sexuais. Vivemos em um tempo de virada onde as mulheres organizadas já não admitem qualquer tipo de violência sobre seus corpos, do assédio ao estupro. Onde Gays, Lésbicas e Trans estão em sintonia na direção do enfrentamento a todo o tipo de desrespeito ao exercício das suas sexualidades. Um momento ímpar na história que se traduz em efeitos práticos como o aumento da denúncia da violência doméstica entre outros abusos. Após séculos de hegemonia do modelo patriarcal, parece que enfim, temos condições de construir a transição para uma sociedade diversa, plural onde todas as identidades e sexualidades possam conviver em harmonia.
Com tudo isso, ao escutar e refletir a conversa de vocês fico com a sensação de que estão perdendo uma grande oportunidade de começarem diferente comigo. Sinceramente, pintar meu quarto de rosa, enche-lo de todo um enxoval rosa com lacinhos e bonecas por todos os lados e fogãozinho rosa, demonstra inequivocamente a intenção de reproduzirem o mesmo padrão aplicado à anos de imposição de uma determinada representação do Feminino herdada da sociedade patriarcal que define para as mulheres um papel bem definido, qual seja, a de responsável pelo lar, pelas crianças, e portanto fora da esfera pública, da política, definidora do futuro de uma sociedade. É uma visão ultrapassada que não compartilho e lamento estar estampada nas paredes do meu quarto, sem meu consentimento, no momento da minha chegada ao lar.
Posso admitir que haja uma boa intenção em preparar um espaço acolhedor para os meus primeiros anos de vida mas ficaria mais feliz em encontrar um ambiente onde eu possa ser estimulada, ou não ser tolhida na escolha das minhas próprias referências, que passam longe das princesas loiras à espera de seu príncipe encantado para salvá-las no castelo. Francamente, eu não mereço e nenhum (a) bebê merece. Na verdade, projetam em mim uma pessoa que vocês gostariam que eu fosse, para atender uma convenção social implicada nos valores heteronormativos, binário, me conduzindo para uma sexualidade coerente a estes valores. Lamento informar, nós bebês não temos preferências de gênero a priori.
Em tempo, recomendo a Leitura de Simone de Beauvoir e Judith Butler.
Espero que tenham compreendido minhas palavras e as recebam com carinho. Trata-se apenas de um esboço.
Assinado, Bebê
Fonte: Blog “Filho do pai”