Um sentido para a paternidade
A meaning for paternity
Publicado na DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 77-83, MAR 2016
Carlos Lugarinho*, Liliana Maria Planel Lugarinho**, Liliane Mendes Penello***
RESUMO
O ensaio propõe uma discussão em torno da paternidade nos tempos atuais e de sua importância para o processo de subjetivação do bebê. Apresenta uma discussão sobre a função paterna, que assume papel preponderante nessa subjetivação, apoiado principalmente no pensamento de Donald Winnicott, Jacques Lacan e Sándor Ferenczi, um para além dos papéis sociais ao propor uma diferenciação entre ‘ser pai’ e ‘exercer a paternidade’. Analisa a paternidade enquanto um processo singular, apontando diferenças para o estabelecimento de uma função materna e para a dinâmica que se estabelece entre esses atores desde o período da gestação. Propõe uma reflexão sobre o papel que a função paterna exerce, para além do gênero, enquanto representante primordial da diferença, ao promover a separação mãe-bebê. Por fim, alerta para a necessidade de uma ampla discussão nos mais diversos níveis, que inclua a função paterna entre os dispositivos sociais imprescindíveis para uma contemporaneidade e um futuro mais humanizados.
O que é ‘ser Pai’ na contemporaneidade? A paternidade pode ser encarnada? Ela ‘deve’ ser encarnada? Pai é uma pessoa, uma função ou uma figura? Que paternidade é esta hoje, tão diferente e tão a mesma de séculos e séculos?
Em que aspectos a paternidade é algo imprescindível ao desenvolvimento da subjetividade em nossas crianças? Mais do que dissecar conceitos, o objetivo deste ensaio é oferecer subsídios a partir de determinadas fontes teóricas para pensarmos a paternidade de modo abrangente e, no entanto, rigoroso, buscando, mais que definições ou certezas, sentidos possíveis no nível psico-afetivo individual e coletivo. Propomos refletir para além das questões de gênero, respeitando as diversas constelações familiares, cada vez mais numerosas em relação à formação familiar clássica, pensando que mesmo nas impossibilidades individuais de se saber pai e mãe, há quem possa ocupar- -se dessas funções ou encarne essas figuras, a partir das primeiras inscrições e estímulos vindos da criança, tendo em mente que as funções podem não recobrir a figura de um sujeito ou não se efetuarem de forma socialmente ou psiquicamente esperada.
O campo de observação privilegiado e discussão aprofundada desenvolvido por meio do trabalho da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) tem sido construído ao longo desses anos por intermédio da articulação entre os profissionais da saúde (latu sensu), das demandas da população, dos intensos trabalhos de formulação e implementação de políticas públicas para atendimento a essas demandas e talvez, mais que tudo, da observação de caráter sociológico das diferenças e pontos de encontro entre mães, pais e crianças de todos os cantos do país, sem deixar de lado nossas próprias vivências enquanto mães e pais que somos e filhos que somos ou fomos. A existência do conceito de constituição do sujeito faz retomar a ideia das representações psíquicas dessa formação, que se entende pelo fato de os seres humanos terem outros sujeitos como participantes primordiais de sua própria organização. Isso pode ser exemplificado quando afirmamos que em toda mulher em processo de gestação já é presente um registro psíquico de ‘pai’, a presença do pai em forma de afetos, presentificando as relações, vínculos, memórias, a presença ou ausência objetiva de seu próprio pai, bem como todas as fantasias associadas a esse registro. Tudo isso influencia fortemente os processos mentais que levam à escolha de um companheiro (a) que a seu lado venha exercer a função paterna para o bebê.
Em consonância com o pensamento e trabalho desenvolvidos pela EBBS, o que se considera como base para um desenvolvimento da criança em níveis minimamente satisfatórios é um ambiente facilitador à vida. O termo ‘ambiente facilitador’ vem de Donald Winnicott (1983) e abrange a ideia de cuidado em um sentido amplo, ou seja, não só o cuidado com as necessidades biológicas, como alimentação, mas também aquelas medidas que visam promover um espaço de segurança para o desenvolvimento emocional, em última análise, o desenvolvimento de um vínculo emocional. Para tentar melhor circunscrever a proposta deste trabalho, iremos estabelecer de início uma distinção que julgamos fundamental: ‘ser pai’ não tem necessariamente o mesmo sentido de ‘exercer a paternidade’. Propomos então fazer uma distinção semântica aqui entre os termos pai (pai de família, posição social, legal) e Pai, o que encarna a figura ou exerce a função paterna. Consideramos ser pai (Pater famílias) um fato, uma inscrição social e um dispositivo legal. Já exercer a paternidade (Pai) é um processo: afetivo e ético. Sendo então a paternidade um processo, não um dado ou um dom, pode-se constatar que ela não é um fato da natureza, do mesmo modo que a maternidade também não é. Importante aqui abrir um parêntesis para lembrar que, ainda assim, encontra-se muito difundido no imaginário social que a mulher é naturalmente preparada para exercer a maternidade.
Podemos então fazer uma equivalência entre os processos da maternidade e da paternidade enquanto processos semelhantes em sua essência? Poderíamos até encontrar alguma similaridade entre os dois no fato de que a construção psíquica ou o processo de subjetivação estão desde sempre associados a uma estrutura dinâmica, relacional, seja mãe-embrião-feto, bebê-pai, mãe-pai-bebê, e outras. No entanto, são similaridades que não permitem avaliações de tipo absoluto, pois se encontram desde sempre conformados por gradientes, modulações, normalmente bastante delicadas, sutis e, no entanto, distintas. Em consequência disso, e por razões que iremos expor adiante, o processo de constituição da paternidade se dá a reboque do processo de constituição da maternidade. Fazendo uma paráfrase com o texto bíblico, poderíamos afirmar que ‘no princípio era a mãe’. O processo de construção do sentido da maternidade é algo que se inicia e se desenvolve de princípio ‘dentro’ da mulher, em seu corpo ou psiquismo. Por isso, consequentemente, a constatação de que o embrião, o feto ou até mesmo o bebê adotado é considerado por ela como parte integrante, não só do seu próprio corpo como da sua constituição psíquica. É importante dizer que existem algumas exceções, de viés patológico, na maior parte das vezes, em que a mulher não considera o embrião ou o feto como partes integrantes de seu próprio corpo, mas um corpo estranho. Para além do biológico, a criança que ela espera faz parte de uma gestação dela mesma como ser desejante. A mãe-a-ser, no caso ainda gestante ou expectante, compreende aquele ser, aqueles afetos, como parte unívoca de seu próprio ser. O bebê faz sentido biológico e emocional para a mãe. Por sua vez, a criança é marcada pelos afetos expressos em palavras e atos de cuidado embebidos no imaginário, acrescidos, após o nascimento, do olhar da maternidade sobre o bebê. Para a mãe, nesse cenário, a criança é uma extensão de si, e, em decorrência disso, sente-se inteira, como se fosse o filho aquilo que lhe completa, que lhe dá sentido enquanto mulher, e da qual só se desprenderá por meio de cortes, seja no corpo biológico (o cordão umbilical), ou no corpo erógeno, conforme descrito por Serge Leclaire (1992). Já o processo da paternidade se dá em um outro gradiente, na medida em que a gestação é sempre externa ao corpo do Pai. É um mistério que, uma vez apresentado, virá-a-ser paulatinamente desvendado, aos poucos, se é que ele pode ser inteiramente desvendado. Desejar ser Pai tem uma natureza diferente do desejo da gestante, da mãe. Por isso a importância, nesse processo, de desvendar o mistério, a busca ativa dessa compreensão, do desvelamento desse desejo.
A paternidade vai ser algo a ser investido e insistido do mesmo modo que o espermatozoide investiu e insistiu sobre o óvulo. Quem deseja encarnar a paternidade vai ter que ativamente buscar em si o sentido daquele mistério, seja por meio da pura relação com a mãe-a-ser, do toque, da carícia e das palavras, que possam fazê-lo sentir a presença daquele ser, mas principalmente do cuidado e conforto que ele pode oferecer àquela durante a gravidez e no momento seguinte à chegada da criança. É nisso que se começa a se sentir Pai. O melhor dos mundos vai se dar quando a gestante o convida a compartilhar essa aventura de desvelamento, que a maternidade convide a paternidade, permita que a paternidade possa se constituir nesse processo, em uma possível repetição do comportamento do óvulo que, diante da insistência de milhões de espermatozoides, se deixa penetrar por um, escolha esta que ainda é misteriosa. A paternidade em gestação, contudo, vai ser o motor para a constatação de um sentido ainda incipiente de que ‘dentro’ daquela mulher está um novo e Outro ser, que espera a hora melhor para se anunciar como pessoa, como sujeito. A gestante, por mais que no discurso se refira ao feto ou ao bebê na terceira pessoa, tende a considera-lo também imaginariamente como parte de si própria, como já afirmado anteriormente.
Pode-se, portanto, resumir o que foi dito até aqui, afirmando que a paternidade é um processo que se desenvolve de princípio na ‘percepção’ do novo ser e no cuidado, no ‘apoio’ à mãe. Na dinâmica familiar, seja ela de qual natureza for, a paternidade se constitui em uma posição lateral ou, dito de outra maneira, a paternidade se constitui de fora. Todo este processo de cuidado, de presença, de amparo, necessário à constituição do sentido tanto da paternidade quanto da maternidade, como dissemos, durante o tempo de espera, vai prosseguir procurando então assegurar as melhores condições emocionais para o momento do parto ou da vinda do bebê. É após a chegada do bebê que outra diferença vai se estabelecer no processo de estruturação da paternidade. Dizemos que o bebê nasce em um estado de imaturidade psíquica (que tem ressonâncias diretas com uma imaturidade biológica) que se traduz no que Winnicott chamou de dependência absoluta. O bebê humano é um dos raríssimos exemplares do reino animal a não ter condições mínimas de sobrevivência a menos que tenha um cuidador/provedor desde os primeiros momentos e é que permanece dependente dessa atenção por um tempo bastante longo. Psiquicamente, essa dependência seria representada por um estado de completa indissociação entre o bebê e sua mãe. O corte efetuado na separação de corpos ocorrida no momento do nascimento não tem repercussão no bebê em termos de uma súbita independência psíquica. Em outras palavras, ainda persiste um único Ser (mãe-filho) em dois corpos, sustentado pelos cuidados ininterruptos da mãe, que procura garantir assim a sobrevivência da criança. Jacques Lacan e Winnicott, teóricos da psicanálise com linhas de pensamento diversas, vão enfatizar a importância de uma função especular como ponto de partida para um processo de efetiva subjetivação do bebê. Lacan (1966), em seu trabalho sobre o estádio do espelho, vai nos dizer que, em torno de um ano, um ano e meio de vida, o bebê é capaz de se reconhecer através de sua imagem no espelho, o que daria início à constituição de um Eu autônomo, ou ainda da constituição diferencial de um Je e um Moi. O que importa neste momento é ressaltar a importância de uma identificação a uma imagem e um reconhecimento de si. Winnicott (1975), anos mais tarde, vai afirmar, em outras palavras, que o olho da mãe é o primeiro espelho, em que desde o início da vida, ao se ver ali refletido, o bebê pode iniciar a estruturação de uma subjetividade ao se dar conta de que o que era um único ser, na verdade são dois. Diga-se que em nenhum dos casos esse reconhecimento é automático. Por sua vez, a mãe vai precisar passar por um processo gradual de separação psíquica do bebê. A mãe ‘teve’ um bebê. O bebê é dela, e é necessário que ela sinta assim para poder garantir, como dissemos, a sobrevivência dele.
É importante, nesse momento, colocar a ambivalência que traz em si a expressão ‘ter’ o bebê. Ao mesmo tempo que esta criança vai ser uma promessa de continuidade, muitas vezes ela só tem valor enquanto uma posse, uma extensão de si (da mãe). Por isso não é tão raro encontrarmos mulheres que desejam engravidar, mas não desejam ser mães. Por outro lado, também poderíamos afirmar que, ao ter o bebê, a mãe volta a ser um bebê, indiferenciada dele. Quando nos referimos acima sobre o olhar da mãe para o bebê, no qual ele vai se refletir, não fizemos referência à intensidade do poder desse olhar, da intensa circulação de afetos que se dá naqueles momentos. Esse poder é de tal monta que existe um grande risco de que ambos fiquem capturados nesse olhar, como Narciso ficou com sua imagem no lago. Que não sobre espaço para a individuação de cada um e eles fiquem assim, grudados, como se ainda fosse uma gravidez. Então, aqui ainda, temos dois que se percebem um.
É a figura do Pai, o exercício da paternidade, aquilo que dissemos que estava ao lado, de lado, oferecendo com seus cuidados o ambiente necessário para que a mãe pudesse sustentar os cuidados com o bebê, que vai ser o fiador dessa relação, vai ser responsável por dar também as condições para que uma separação efetiva entre mãe e bebê possa se dar. Consideramos um vínculo algo que estabelece uma relação entre dois ou mais. Portanto, é o vínculo do Pai com a mãe que vai tornar possível ou efetivo um vínculo entre a mãe e o bebê. Como ele pode conseguir isso? Desviando para si, no devido tempo, o ‘olhar’ da mãe, aproveitando-se do convite dela para compartilhar com ela daquela experiência. É o exercício da paternidade que vai por sua vez convidar essa mãe a retomar o compartilhamento do mundo extra bebê, para o qual ela deve se voltar, mesmo que inicialmente de modo esporádico. Para uma situação que está fechada em si mesma, em um mundo particular que poderíamos considerar um mundo interno, a paternidade encarna na sua figura e função o mundo externo. Como o bebê vai tender a olhar para onde olha a mãe, se ela retiver seu olhar sobre ele (só para ele, e uma vez que para o bebê a mãe é si mesmo ou algo que ele ainda não discrimina), serão remotas as possibilidades de uma real separação psí- quica entre o bebê e a mãe. É preciso que o Pai consiga que a mãe volte seu olhar para ele, para que a criança possa também olhar, como se perguntasse, o que é isso para além dela, diferente dela, diferente de mim? Não é só se ver refletido no espelho que permite a constituição de um Eu; é preciso que alguém, um terceiro, e aqui neste momento eu posso dizer, o Pai, aponte para a imagem e diga: ‘Aquele é você!’. Nesse sentido é que podemos dizer que, mesmo com todas as mudanças socioeconômicas que ocorreram nas últimas décadas, o pai ainda é o provedor. Não mais apenas um pater famílias, provedor de segurança em nível material e social, mas principalmente o provedor legítimo de uma segurança afetiva.
O Pai tem então a função primordial de efetuar um corte que interrompa a fusão entre mãe-bebê delimitando o mundo interno (fantasias, necessidades e desejos) e externo (realidade) da criança. Percebe-se que, conforme há pequenas mudanças no ambiente mãe-bebê (mãe atende ao telefone mesmo na vigência de uma demanda do bebê, pequenas saídas para fazer compras, entre outras), essas mudanças vão introduzindo a realidade para a criança, apresentando-lhe um novo mundo — real e social. Podemos inferir que, ao negar para o filho alguns de seus desejos, mas intuindo sua capacidade de lidar com o tempo de espera por eles sem que sua continuidade como Ser seja ameaçada, inicia-se a introdução no convívio social. Sandor Ferenczi foi um dos primeiros pensadores a propor um novo modo de se conceber a educação de modo a incluir a criança e seus desejos como parte integrante em seu processo de inclusão social. Para ele, em 1928, era necessário conceber o conceito de adaptação em um viés ativo, divergindo da concepção biológica e evolucionista na qual o ambiente é o agente provocador de mudanças que permitem ou impedem a sobrevivência de um determinado ser ou espécie animal. Naquela época, era comum ainda se repetir a frase: ‘Criança não tem querer!’, como se tudo que fosse necessário ao seu desenvolvimento psico-afetivo adequado era o desejo parental sobre ela. Ferenczi (1992A) vai dizer que é a família que tem que se adaptar à criança, utilizando as manifestações de seus desejos parte integrante do seu processo educativo. Diz ele: “A tendência natural da criança pequena é para amar-se a si mesma, assim como a tudo o que considera como fazendo parte dela” (FERENCZI, 1992A, P. 7). A função do meio externo é justamente proporcionar a delicada operação de estabelecer a noção de um ‘dentro’ e um ‘fora’ que possa vir a estabelecer uma relação entre o ser sujeito e objeto.
Resumindo, é papel do Pai realizar as intervenções necessárias que complementem a função materna, funções e figuras que se complementam e são vitais para a estruturação e para o desenvolvimento psico-afetivo da criança. O Pai promove o suporte emocional para que a mãe possa cumprir suas funções e, assim fazendo, também dizer os primeiros nãos… O Pai seria então o primeiro educador da criança, aquele que detém um poder de interdição ao gozo absoluto, representado aqui na indistinção afetiva do bebê com a mãe, função irredutível de um ‘lugar de exceção’ nas palavras de Jean-Pierre Lebrun (2008). Um lugar de Lei, introjetado e intransponível em sua autoridade simbólica. Não precisamos recorrer aos inúmeros trabalhos de tantos autores que têm se dedicado a tentar compreender todas as mudanças por que vem passando o tecido social nos últimos tempos e como essas sociedades tem se apropriado dessa Lei. Basta observarmos nossas relações mais próximas para termos uma boa noção. Até pelo menos as primeiras décadas do século passado, o sentido, subjetivo e social, da paternidade era dado como uma capitania hereditária. Gradativamente, no entanto, como sempre acontece, essa posição de realeza passou a sofrer fortes e contínuos ataques, vindo não só das gerações mais novas, mas também alimentado sobretudo por uma revolução dos costumes encarnado principalmente pelas mulheres, cuja voz, até então rouca e abafada, podia agora ser ouvida em toda sua força.
Uma mudança necessária, mas que está longe de dar conta de toda a complexidade do mundo e das relações contemporâneas. Na verdade, ao que essas vozes femininas (e de tantas outras minorias) se levantaram foi contra o caráter absolutista da posição paterna encarnada no masculino. Podemos então considerar que a contemporaneidade admite que o papel da paternidade em nível social pode ser encarnado independentemente do gênero, desvinculando-se do pai o gênero masculino. No entanto, observamos que, como em toda revolução, muitas vezes essas mudanças acabam atingindo áreas que não eram aquelas considerados como alvo. Um exemplo do que afirmamos é a constatação de que ao destronar o pai onipotente e autoritário de antes, acabou- -se por desautorizar de modo quase que completo a figura e o papel paternos, na ilusão que a maternidade pode dar conta exclusiva não só da geração como também da subjetivação de um novo ser humano. A tarefa, que mesmo sem ser impossível, acarreta um fardo psíquico e social enorme, acabou por repetir nas estruturas familiares a mesma ‘terceirização’ observada no campo do trabalho. Esta observação nos permite extrapolar que, na verdade, a família contemporânea está quase absolutamente sujeita ao modo de ser e funcionar do capitalismo. Apesar de constatarmos que, na medida do possível, ainda hoje é comum ver essa cessão de poderes mantida no âmbito familiar, habitualmente centrada na figura da avó, o que percebemos é cada vez mais o exercício da maternidade e uma paternidade entregues ao Capital e seu braço mais conhecido e, ao mesmo tempo, mais reptício, o mercado, o papel social de detentor da Lei. Reiteramos que esta passagem se deu associada e em decorrência a uma incapacidade do Estado em assumir a contento o papel/função, primeiro foco desta outorga, o que remete ao título de uma palestra de Christopher Reeves (2011) publicada em livro, que procura problematizar esse papel: ‘Será que o Estado algum dia será um pai suficientemente bom?’. Nesse texto, o autor discorre a respeito das cobranças da sociedade de um pai infalível, expondo as possibilidades de manejo entre família e Estado enquanto uma combinação incerta. Mas esta importante discussão merece um aprofundamento específico. Por fim, voltamos a Ferenczi.
No artigo “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (1992B, P. 48), o autor faz menção a dois casos clínicos, que afirma serem de “hóspedes não bem-vindos na família” (em itálico no original), um filho de mãe “obviamente sobrecarregada de trabalho” e outro cujo pai morreu pouco após seu nascimento. Apesar de escrito em uma época em que a família nuclear tradicional era a regra, nas palavras do autor, “essas crianças registraram bem os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe, e que sua vontade de viver viu-se desde então quebrada” (FERENCZI, 1992B, P. 48). Fica evidente nesses casos relatados a ausência física ou da implicação ativa da figura paterna. Nosso ponto de vista é que, para uma nova formação familiar, é necessária uma ativa adaptação das figuras centrais dessa triangulação a essa nova realidade. Desse modo, é preciso gerar ‘novas’ crianças. Não mais como as citadas acima por Ferenczi (1992B), quase que profeticamente, dada à generalização que observamos em nossa sociedade de um comportamento onde é cada vez mais comum que: Os menores acontecimentos, no decorrer da vida posterior eram bastante para suscitar nelas a vontade de morrer, mesmo que fosse compensada por uma forte tensão da vontade. ‘Pessimismo moral e filosófico, ceticismo e desconfiança’ tornaram-se os traços de caráter mais salientes desses indivíduos. Podia-se falar também de nostalgia, apenas velada, da ternura (passiva), inapetência para o trabalho, incapacidade para sustentar um esforço prolongado […]. (FERENCZI, 1992B, P. 49, GRIFO NOSSO).
Portanto, para novas crianças, é preciso novas mães e pais. E se o desejo materno é o motor para a introdução da figura paterna no estabelecimento de uma subjetivação efetiva do bebê, que aquele ou aquela que deseja se comprometer psíquica e afetivamente nesta função possa sair de uma posição esvaziada ou passiva, e não mais aguardar que o chamado se faça, mas ativamente buscar que a figura materna possa se voltar para o lado, desviando o olhar que era fixo no bebê. Que esse Pai seja a presentificação da diferença, aquele em que não cabe mais o manto da autoridade absoluta, mas aquele que aprende no dia a dia a ser suficientemente bom.
* Médico e psicanalista. Pós-graduado (MBA) em gestão empresarial com ênfase em saúde pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Colaborador eventual do projeto Contribuições da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis para formulação e implantação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). [email protected]
** Médica. Mestre em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Coordenadora executiva do projeto Contribuições da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis para formulação e implantação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). [email protected]
*** Psiquiatra e psicoterapeuta de grupos. Mestre em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Coordenadora do projeto Contribuições da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis para formulação e implantação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). [email protected]
Referências
FERENCZI, S. A adaptação da família à criança. In: ______. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992b. p. 1-13.
FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In: ______. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992a. p. 47-51.
LACAN, J. Le stade du miroir. In: ______. Écrits. Paris: Éditions du Seuil, 1966. LEBRUN, J. P. A perversão comum: viver junto sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
LECLAIRE, S. O corpo erógeno: uma introdução à teoria do complexo de Édipo. São Paulo: Escuta, 1992.
REEVES, C. Can the state be a “good-enough parent”? In: ______. Broken bounds: contemporary reflections on the antisocial tendency. London: Karnak Books, 2011.
WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. ______.
_______________ O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.