Um sonho que salva vidas
Raquel Goulart (C) com Paula, Rafaella, Victória e, ao fundo, a médica Sônia Salviano, 10 anos depois. História das meninas virou capítulo da literatura médica: o milagre do leite – (Iano Andrade/CB/D.A Press )Raquel Goulart (C) com Paula, Rafaella, Victória e, ao fundo, a médica Sônia Salviano, 10 anos depois. História das meninas virou capítulo da literatura médica: o milagre do leite
Um sonho que salva vidas Conheça a história do primeiro banco de leite do DF, que ao longo dos seus 32 anos de existência virou referência no Brasil e na Europa. A luta de uma equipe comprometida em fazer com que bebês não morram pela falta de informação e de preparo de suas mães. E até de alguns pediatras
Marcelo Abreu
Era o sonho de três visionários pediatras. Um, ainda jovem residente. O outro, chefe da unidade e o terceiro, diretor daquele hospital enorme, a 25km do Plano Piloto. Um dia, Wilson Marra, o residente, Luís Osório Serafim, chefe de unidade, e Antônio Márcio Lisboa, o chefe de todos eles, se juntaram na mesma causa. Perceberam que o número de internações de bebês com diarreia e pneumonia crescia a cada instante. E as mortes, em torno de 80% dos casos, eram um claro sinal de que alguma coisa precisava ser feita urgentemente. Os médicos logo detectaram a causa: aqueles bebês não recebiam leite materno. Apresentavam, assim, baixíssima imunidade. O que fazer para salvá-los da morte?
Os três homens de jaleco branco decidiram que seria importante coletar leite de mulheres para alimentar os bebês ali internados. Fizeram isso, numa salinha acanhada daquele hospital que também começava. Nasceu, naquele setembro de 1978, com mais desejo que estrutura, o primeiro banco de leite humano do Distrito Federal. O Rotary Clube de Taguatinga Norte foi — e continua sendo — o principal parceiro. Acreditou na ideia daqueles três homens que se dispuseram a salvar vidas.
A comunidade se juntou. Mães começaram a doar o leite que jorrava dos seios fartos. Informadas e dispostas a ajudar, envolveram-se na causa. Bebês internados tomavam aquele líquido branco. Sugavam gota a gota, como se suga a vida. As diarreias, pneumonias e todas as outras infecções passaram a ser controladas. A imunidade dos bebês aumentava. As doenças eram debeladas. E eles saíam do hospital vendendo saúde.
Luís Serafim morreu. Wilson Marra e Antônio Márcio Lisboa estão aposentados do serviço público. O Hospital Regional de Taguatinga (HRT) seguiu seu rumo. E o banco de leite daquele lugar fez história. Salvou vidas. Virou referência em Brasília, no Brasil e na Europa. Aparelhou-se. Aperfeiçoou as técnicas de coleta e pasteurização. Preparou seus profissionais, que hoje viajam aos quatro cantos do país para dizer que numa cidade do DF se acredita em aleitamento materno como salvação de vidas.
Muita coisa mudou. O banco de leite, mudou até de espaço físico dentro do hospital (hoje, espera por uma reforma), mas continua ímpar na sua missão que completará 32 anos daqui a seis meses. Outra gente de jaleco branco assumiu a missão. E concretizou o sonho de Wilson, Serafim e Antônio. É uma grande equipe. Uma família. E, no meio dessa gente toda, uma mulher cearense que se formou em Recife, fez residência no Hospital Universitário de Brasília (HUB) e se radicou em Taguatinga decidiu que levar o sonho daqueles três homens seria sua principal contribuição para a medicina que resolvera exercer.
Pediatras Sônia, Sandi e Mirian: trabalho do DF é referência internacional – (Iano Andrade/CB/D.A Press )
Pediatras Sônia, Sandi e Mirian: trabalho do DF é referência internacional
Mito
Sônia Salviano, 51 anos, casada, duas filhas (de 23 e 24 anos, que mamaram no seu peito até um ano e meio), uma das maiores autoridades em aleitamento materno do país — e de uma simplicidade ímpar — é a atual presidenta da Associação Brasileira de Profissionais de Bancos de Leite Humano e Aleitamento Materno. Ela fez do leite que jorra do peito das mulheres seu melhor ofício. Pediatra, com especialização em neonatologia, lotada no HRT, não há um dia em que Sônia ande pelas ruas de Taguatinga que não seja parada pelas antigas pacientes. As cenas são sempre comoventes.
Mães mostram fotos do filho ou da filha, adultos, e dizem que ela lhes salvou a vida. “E geralmente me contam, cheias de orgulho, que estão na faculdade, que vão se casar, ou até que já são pai e mãe”, diz a médica. E, sentada naquela saleta hoje improvisada do banco de leite, a mulher que fala com mães o que elas conseguem entender, ao contrário de muitos médicos, se comove: “Isso (refere-se às vidas que ajudou a salvar) é leite materno. Não há mistério. Ele realmente salva”. E avisa às mulheres que desistem da amamentação por acreditarem em mitos: “Não existe leite fraco. A mamada é que está errada. O pior é que ainda existem pediatras que, se a criança não pega peso, acham que é o leite da mãe que não está dando”.
Por uma década, de 1993 a 2003, Sônia esteve à frente do banco de leite do HRT. Nessa época, viajou a Genebra (Suíça), onde participou, em 2002, da 34ª Assembleia Mundial de Saúde. Sônia revelou àquela plateia de cientistas que aqui se faziam verdadeiras revoluções em favor da vida. Três anos antes, em 1999, viveu um momento marcante. Uma de suas maiores conquistas virou relato na literatura médica mundial, referência em vários capítulos de livros e foi citada em congresso.
Uma mãe de trigêmeas conseguiu amamentar as filhas exclusivamente no peito, até o sexto mês.
Naquele junho de 1999, o Correio contou a história de Raquel Goulart, então com 34 anos, e da sua determinação em provar que podia. Ela teve as meninas num hospital particular da Asa Sul. E logo começou o drama. Os seios estavam abarrotados de leite. Mas ela não conseguia fazer com que suas filhas mamassem. Victória, mais velha dois minutos, Paula e Rafaella sofriam. Raquel e o marido procuraram pediatras. Nada. O drama aumentava. Uma amiga lhe falou sobre o banco de leite do HRT. “Fui lá. Cheguei com o bico estourando, mas as meninas não sugavam”, ela conta.
Muita fome
Chamaram a mulher que fez do leite materno a própria vida. Sônia olhou para aquela mãe e lhe garantiu que as meninas e ela conseguiriam. Naquele mesmo dia, com técnica ensinada — aprender a ordenhar — e muita paciência (o banco também conta com a presença de uma psicóloga), o leite farto de Raquel espirrou longe. As recém-nascidas mamaram com gosto de vida. Cresceram sem doenças, sem alergias, sem visitar pediatras todos os anos.
– (Luís Tajes/CB/D.A Press – 18/6/99 )
Dez anos depois, na última quinta-feira, o Correio reencontrou mãe e filhas. As meninas estão na 5ª série. “Elas mamaram até os 2 anos. O período em que ficaram no meu peito foi o mais importante da minha vida”, diz a mãe.
Nesses 10 anos, muita coisa aconteceu. As meninas de Raquel cresceram saudáveis. Sônia foi para o Ministério da Saúde, sempre na área de amamentação. Depois voltou ao HRT. Foi diretora do hospital gigante e diretora-geral de Saúde de Taguatinga. Hoje, está onde um dia começou: no banco de leite. Não mais como chefe. Apenas como pediatra, que continua acreditando no que faz. “Farei até o fim da minha vida”, ela diz, emocionada.
Na chefia do banco de leite, hoje, está a simpática pediatra Sandi Yurika. Paulista de 34 anos,dois filhos, ex-aluna de Sônia na residência médica (na UTI neonatal), a medica foi indicada por Sônia ao cargo. Como a ex-professora, Sandi segue a mesma linha. “Aprendi tudo com a doutora Sônia”, agradece.E não tem mais dúvida: “O leite materno salva as crianças das doenças, do abandono, dos maus-tratos e da falta de amor”.
No fim da manhã de quinta-feira, as duas, com a enfermeira Maria das Graças Cruz, 39 anos, tentavam dizer a uma adolescente de 16 de Samambaia que o leite dela era importante para o seu bebê de 15 dias. “Não tive paciência para dar peito à noite, doutora. Aí, eu dei mamadeira com leite de vaca e cremogema. Dei também maisena com creme de arroz”, contou a mãe adolescente, sem olhar para o filho que chorava.
Sônia olhou para aquela menina e perguntou, com compaixão, por que ela tinha feito aquilo. Com os olhos marejados, a menina revelou: “Doutora, eu não aceito ele. Ele destruiu a minha vida. Tô gorda, feia, ridícula e com depressão. Meu marido (o pai do bebê tem 19 anos) me traiu com outra na semana passada. E ainda disse que o meu peito é só dele”. Sônia a acalmou, como mãe acalma filha. E lhe disse que as duas precisariam ter uma longa conversa.
História que segue
Elogiou a beleza da menina que se sente feia. E a fez se sentar com o bebê nos braços. Minutos depois, a menina dava o peito ao filho, que rejeitara. Passava a mão sobre a cabecinha do filho, internado ali em decorrência de uma bronquiolite. “É uma doença respiratória que está muito relacionada ao desmame”, explica a médica. Na outra saleta, Sandi assistia a Maria Eduarda sugar o peito da mãe, Liana Moreira, 31 anos. “Tive mastite (infecção na mama) e não consegui dar o peito. Tô conseguindo. Quero que ela fique só no peito até o sexto mês”, planeja a mãe, que saiu da Asa Sul para pedir ajuda em Taguatinga.
Há muito ainda para fazer. Mas há também muito a comemorar. Só no ano passado, o banco de leite do HRT fez 53 mil atendimentos em grupo. Foram 50 mil individuais. Ao longo de 32 anos, Sônia estima que na unidade de Taguatinga mais de 100 mil crianças foram beneficiadas com o leite do banco.
A pediatra Mirian Oliveira dos Santos, de 43 anos, coordenadora do Aleitamento e Banco de Leite Humano da Secretaria de Saúde do DF, credita o sucesso ao somatório de uma equipe comprometida: “A partir do banco de leite do HRT, vieram todos os outros (hoje são 18 em toda a rede). É uma referência técnica e de treinamento de pessoal. Em cada um dos bancos, os profissionais têm dado o máximo para a excelência do trabalho”.
O sonho de Wilson, de Serafim e de Antônio é o mesmo de Sônia, Sandi, Mirian, da enfermeira Maria das Graças e da farmacêutica Eli Mendes, de 56 anos e há 20 no banco de leite do HRT. É ela a responsável pelo controle microbiológico do leite pasteurizado. “É o meu desafio diário”, ela diz. É o sonho de centenas que trabalham nas unidades de leite humano do DF. E como poderia ser diferente, se esse sonho fala de vida? Serafim, de onde estiver, deve estar feliz com a continuação da história que, lá atrás, ajudou a escrever.
“Elas mamaram até os 2 anos. O período em que ficaram no meu peito foi o mais importante da minha vida”
Raquel Goulart, mãe das trigêmeas