Do seio da ama-de-leite moderna até a boca de um bebê necessitado, o alimento perfeito salva vidas e percorre o comovente caminho da solidariedade
Tirando o leite
Giovana amamenta o filho, Marcos Vinícius, em casa Preenche cuidadosamente as etiquetas para identificar os frascos que acondicionam o leite
Lava bem as mãos, coloca touca e máscara Faz a ordenha manual das mamas em um pote previamente esterilizado
Despeja o leite em um outro pote, no qual vai juntando o conteúdo que consegue extrair a cada vez
Guarda o vidro no freezer
A publicitária e artesã Giovana Koshiyama, 30 anos, é um mulherão. Tem seios fartos, ossos largos. Comunicativa, distribui sorrisos por onde passa. A dona de casa Verônica Cavenagui Campos, 19 anos, tem o estilo oposto. É miúda, delicada e econômica nas palavras. Por força da solidariedade e de um capricho do destino, os filhos dessas duas mulheres, de modos tão diferentes, acabaram unidos pelos laços da fraternidade: Marcos Vinícius e Robson se tornaram irmãos de leite.
Giovana deu à luz Marcos Vinícius em novembro do ano passado, em São Paulo. O parto foi uma cesariana, na 40a semana de gestação. Com muito leite, o desconforto a obrigava a esvaziar os seios depois de amamentar. Eu jogava o leite pelo ralo e me sentia muito mal, lembra a artesã, que já pensara sobre a doação durante a gravidez. Eu dizia a mim mesma que, se pudesse, eu doaria, conta.Quando o filho fez 1 mês, ela decidiu não desperdiçar nem uma gota a mais do alimento tão importante.
Prematuro
Robson, filho de Verônica, nasceu no dia 9 de maio, prematuramente. Ela estava na 32a semana de gestação e teve pré-eclâmpsia. O frágil menino, de 1,5 quilo, sobreviveu graças ao fornecimento do banco de leite da Maternidade Estadual Leonor Mendes de Barros, em São Paulo. Com certeza, o garoto estaria sendo nutrido também se recebesse o alimento artificial. Mas só o leite humano protege, com seus anticorpos, e reduz o risco de alergia alimentar, que seria muito delicado para um prematuro, diz Joana Kuzuhara, supervisora-geral do banco de leite da maternidade, um dos 46 bancos do estado, que receberam no ano passado 28 mil litros, capazes de aleitar 27 mil prematuros. De fato, uma recente pesquisa americana com bebês prematuros mostra que 39% dos que sofreram infecções tinham recebido menos leite humano que os demais.
O Brasil tem a maior rede de bancos de leite humano do mundo, diz Sonia Salviano, coordenadora da Política Nacional de Aleitamento Materno, do Ministério da Saúde. A proibição da distribuição de leite humano não-tratado, em 1985, acabou com a prática da ama-de-leite, mas não com a doação. O sistema de coleta, iniciado em 1943, soma 171 bancos instalados em hospitais públicos (mais 15 devem ser abertos este ano). Em 2003, eles armazenaram cerca de 70 mil litros de leite de 66 mil doadoras, que alimentaram 101 mil crianças. Praticamente todas as mães sadias que amamentam podem doar. Do terceiro ao quinto dia do pós-parto, o peito ingurgita ou empedra, como se costuma dizer. Essa é a hora de iniciar a doação, explica Sonia. Nessa altura, as mulheres devem esvaziar as mamas, sob pena de ficarem com os seios doloridos ou sofrerem até inflamações.
Caminho do leite
Para se tornar uma moderna ama-de-leite, Giovana procurou um serviço de informação. Indicaram-lhe o Hospital e Maternidade Estadual Leonor Mendes de Barros, na Zona Leste de São Paulo, onde mora. Constatado que preenchia todos os requisitos como doadora (veja boxe), fez-se a análise do grau de acidez do leite, que determina ou não seu aproveitamento. A artesã aguardou o resultado do exame com ansiedade e ficou feliz com a aprovação. No início o marido, o administrador de empresas Marcos, estranhou, mas acabou compreendendo seu empenho e passou a apoiá-la.
Diariamente, pela manhã, depois de amamentar o filho, Giovana massageia a mama por 15 minutos e retira, sem bomba, cerca de 30 mililitros de leite do seio. O leite é depositado num vidro esterilizado e guardado na geladeira. A rotina se repete à noitinha, depois de um dia de trabalho dividido entre os cuidados com Marcos Vinícius e a confecção de enxovais de bebê, no apartamento de dois quartos na Vila Carrão – bairro paulistano de classe média. O filho, já satisfeito, costuma dormir quando a mãe faz a ordenha. Se está acordado, falo para ele esperar quietinho, que a mamãe está cuidando dos irmãozinhos de leite, diz.
A enfermeira Josefina chega para a coleta Ela costuma entrar na casa e conversar uns minutos com Giovana
Guarda o pote em uma geladeira portátil, que precisa ser mantida à temperatura máxima de 10ºC Coloca a geladeira dentro do carro e prossegue o itinerário, que geralmente inclui mais duas ou três visitas
Chega ao hospital que abriga o banco de leite
Entrega os potes coletados às enfermeiras do banco, que imediatamente os guardam em um grande freezer horizontal
Processamento
Uma vez por semana, a enfermeira Josefina Matiata visita Giovana. Cuida para que o meio litro de leite que a artesã extrai semanalmente seja transportado em condições adequadas até o banco. Como a refeição do prematuro é minúscula – nos primeiros dias, a porção fica em torno de 1 mililitro -, a doação de uma única mulher alimenta vários bebês. Isso justifica a coleta, a partir de uma quantidade mínima de 100 mililitros. Na maioria das localidades, os bombeiros são voluntários na condução do veículo que faz o recolhimento nas casas. No caso do Leonor Mendes de Barros, o carro foi cedido pela Ford.
No banco, o líquido doado passa por vários exames, incluindo uma análise de contaminação. Em seguida, investiga-se o teor de gordura. Depois, o leite é pasteurizado e congelado em freezer até seis meses. A doação de cada mulher é guardada separadamente e classificada segundo suas características. Separam-se colostro e leites de diferentes teores de gordura. Cada qual tem o seu cliente. Quanto maior o teor de gordura, menor a quantidade de anticorpos, explica Joana. As necessidades dos bebês variam: os que acabaram de nascer recebem o colostro; os que precisam ganhar peso tomam leite mais gorduroso; os que lutam contra infecções ingerem o alimento mais rico em defesas.
Pasteurização: o leite é aquecido a 65ºC e depois resfriado a 0ºC em banho-maria, para eliminar os microorganismos
Depois da pasteurização, uma amostra do leite é misturada a um líquido verde para checar a presença de microorganismos e a dosagem de acidez
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Parabéns a Revista Crescer e a Dra. Sonia Salviano !
Leia a continuação desta reportagem:
Como transportar e doar: BANCOS DE LEITE HUMANO II