Nascer Antes
De cada 100 partos no Brasil, 8 a 10 são de bebês prematuros. Mas pouco se fala desta realidade e principalmente do impacto que sofrem as mães, os pais e parentes. Liseane Morosini, jornalista no Rio de Janeiro, viveu esta experiência, em 2002. Hoje, feliz com a história de Rafaela, é a responsável pelo site Nascer Antes, que trata sobre questões referentes à prematuridade, além de ser assessora de imprensa da Associação Brasileira Terra dos Homens. Confira na entrevista abaixo como Liseane transformou um momento difícil em motivação para uma ação voluntária inédita no Brasil.
Portal do Voluntário – O que é um parto prematuro? Fala-se muito de parto normal, da beleza do nascimento de um bebê, mas não se encontra informação sobre parto prematuro, quase como se ele não ocorresse.
Liseane Morosini – Um parto prematuro, ou pré-termo, acontece entre a 20ª e a 37ª semana de gestação. Ele ocorre quando as contrações do útero apresentam-se com a freqüência e regularidade suficientes para produzir alterações do colo uterino, dilatando-o cedo demais. Ou, então, quando há problemas com a mãe ou com o bebê que necessitem de intervenção cirúrgica. É um momento complicado para os pais e a família, que se defrontam com uma situação nova e com a qual não tiveram contato antes. Tenho dúvidas se é possível preparar-se para tanto – a não ser que essa situação já tenha sido vivida. E creio que a conduta familiar vai ser dada de acordo com essa experiência e com o estado do bebê. Poucos sabem o que é um bebê prematuro, como será seu desenvolvimento, quais as diferenças de um bebê que veio logo para casa. Por acreditar que essa informação é muito preciosa e serve de ajuda para os pais que estão vivendo o processo, lancei o Nascer Antes.Vi lacunas e uma cobertura jornalística muitas vezes inadequada, com imprecisões e inverdades que nada acrescentam. Veja como é importante divulgar: antes do site, pouca gente sabia que no Estado do Rio de Janeiro as mães servidoras estaduais podem requisitar a licença-maternidade especial, que dá a diferença entre o período do nascimento prematuro até o período em que o bebê seria considerado maturo. Descobri, ainda, que há uma associação que apóia crianças (entre elas, prematuros), adolescentes e gestantes de alto risco após a alta do Instituto Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro. Informações desse porte, que podem beneficiar algumas mulheres e seus bebês, são relegadas a um plano menor. Quero colocar esse material na pauta de quem cobre a situação da infância no Brasil.
Portal do Voluntário – Como se sente a mãe grávida quando recebe a notícia da possibilidade de um parto prematuro? Como ela se sente ao ver o seu bebê prematuro pela primeira vez? Que apoio devem dar a ela os médicos, o hospital, o companheiro, os parentes …
Liseane Morosini – Depende muito do caso. Há mães que assimilam a necessidade de uma parada; há outras que custam a aceitar que a gestação pode não chegar ao final. É preciso entender que bebês prematuros têm pais prematuros – e avós e irmãos também. Em tudo, esse nascer antes contraria expectativas, leva à inversão de um ato natural e tem características que o diferenciam de um nascimento a termo (37 semanas de gestação). Enquanto nesses partos são as mães que apresentam o bebê ao mundo para um pré-termo geralmente essa função é exercida pela figura paterna. São os pais que acompanham o bebê até a UTI, vêem os procedimentos médicos, interagem com a criança e a apresentam posteriormente à mãe, mais debilitada fisicamente e emocionalmente fragilizada. A participação dos pais é fundamental para fazer a passagem entre esse bebê diferente e aquele que resultava do imaginário materno. Depois disso, a presença da família, dos avós e irmãos do bebê também são importantes para que o casal sinta seu bebê acolhido. O bom é que hoje os pais podem ficar mais em contato com o bebê, pelo menos durante o dia. Algumas UTIs estabelecem dias e horários para visitas dos avós e dos irmãos. E é sempre bom lembrar que o apoio dado na sala de espera, numa visita ou conversa rápida, são muito importantes. Lembranças, recados para o bebê e ajuda para resolver pequenos problemas fazem a diferença nessa hora em que os pais têm que arcar com uma série de atividades não pensadas anteriormente.
Portal do Voluntário – Normalmente os bebês prematuros ficam em incubadoras, são cuidados por enfermeiros, usam sondas . Como as mães reagem, considerando que esta realidade arrebenta os sonhos de maternidade?
Liseane Morosini – Cada mãe reage de uma forma. As entrevistas realizadas para a elaboração do site Nascer Antes mostraram que mesmo mães que sabiam do nascimento antecipado de seus filhos tiveram um processo doloroso. Poucas são as que se mostraram preparadas para conviver com a realidade de uma UTI Neonatal e os desdobramentos que ocorreram em suas vidas. Como entender que um bebê deve ficar internado em vez de ir para casa? O tempo acomoda esse sentimento, porém é sempre duro ver um bebê com sondas, fios e sendo monitorado. Além disso, por mais que uma UTI seja humanizada, que médicos e enfermeiros tentem quebrar a frieza, é um ambiente estressante, frio. É impossível manter sonhos diante dessa realidade principalmente quando, lá dentro, você vê outras famílias enfrentando situações extremas, algumas delas convivendo com a possibilidade da perda. Não há espaço para o mundo cor-de-rosa pintado pelas revistas. Não há tempo para curtir o bebê, principalmente porque a preocupação é ver como se dará sua evolução. As enfermeiras costumam dizer que mãe de UTI não tem tempo de ter depressão pós-parto. Há que se cuidar do bebê, procurar se alimentar direito, acompanhar a criança, estimular mecanicamente a amamentação, aprender a conviver como ambiente hospitalar e suas normas e ficar na expectativa do momento da alta. Ainda tenho marcas, mas sobraram lições positivas do meu processo. Fiz amigos com os quais falo regularmente e tenho enorme carinho por suas crianças. Acompanhei seus processos e problemas. Estávamos todos no mesmo barco. Foi fundamental compartilhar dúvidas e ter tempo para tricotar e falar abobrinhas para espairecer. E há pouco consegui me libertar do controle de peso de minha filha. São medições normais e que se tornam familiares para pais de prematuros, mas que devem ser superados na medida em que o bebê evolui. Digamos que evoluímos todos juntos.
Portal do Voluntário – Como fica o sonho de acalentar o bebê?
Liseane Morosini – A prematuridade dá a mãe algo único: a possibilidade de gestar seu bebê fora do útero, não apenas pela tecnologia oferecida. Uma semana depois do parto, meu bebê ficou pele a pele comigo. Jamais vou esquecer desse momento. Jamais. É como se tivesse realizado que minha filha nasceu. Depois disso, fiquei bem perto dela, fui mãe canguru e senti que podia ajudá-la a se desenvolver melhor. Meu marido e eu nos revezávamos na tarefa de ser esse canguru acolhedor. Este método mãe canguru nasceu na Colômbia, na década de 70, devido à falta de incubadoras, equipamento necessário para manter o bebê aquecido. Hoje, ele é aplicado em todo o mundo e, no Brasil, virou política pública na área de saúde. O trabalho brasileiro pela disseminação do método é reconhecido, tanto que o Rio de Janeiro vai sediar o Congresso Internacional Mãe Canguru, em 2004. Cerca de 280 maternidades públicas de risco do SUS e algumas maternidades particulares apostam nesse método como forma de reduzir o estresse do recém-nascido, estabilizar seu batimento cardíaco, respiração e temperatura corporal; e fortalecer o laço afetivo familiar. É fato que o mãe canguru reduz o número de abandono de bebês prematuros em maternidades e faz com que essas crianças estejam menos sujeitas à violência intrafamiliar. Essa é uma forma de humanizar o tratamento do bebê e estimulo qualquer mãe, mesmo aquelas que não têm filhos prematuros, a deixarem seu bebê repousar em seu peito, pele a pela. Nós aproveitamos a onda do canguru para acalentar nossa filha o máximo possível. Claro que no hospital há procedimentos específicos, mas, grosso modo, basta colocar uma faixa ou camiseta e colocar o bebê ali dentro. É muito bom para ambos. É bom mesmo.
Portal do Voluntário – Como foi amamentar seu bebê?
Liseane Morosini – Acho que nós, mães de prematuros, não somos contempladas, mais uma vez, nessa questão. Amamentar é um ato de amor? Sim, muito grande. Só que um momento de estresse e ruptura pode gerar conseqüências em outras áreas. E pode dificultar, sim, o processo de produção de leite. É preciso alertar que nem todas as mães conseguem, por mais que tentem, e que os processos de relactação – quando se tenta estimular o bebê a sugar a mama – nem sempre dão certo. Tive problemas nessa área, por mais que quisesse ou tentasse. Hoje percebo que meu desejo intenso fez com que desrespeitasse o limite de meu bebê. Fui além do que deveria em tentativas sucessivas de relactação. E me culpo pelo choro extremado de um bebê fragilizado já por tanta intervenção. Apesar disso, considero que foi uma vitória: consegui amamentar minha filha de forma não-exclusiva, com peito e fórmula em pó, durante três meses. Creio que alguns médicos poderiam entender que é possível termos problemas e que não simplificassem o processo. Não foi uma recusa no aleitamento, mas uma impossibilidade que surgiu no caminho. Uma informação mais qualificada impediria a reprodução inconseqüente sobre a amamentação por parte de alguns jornalistas. Quem vive a prematuridade sabe que não é fácil enfrentá-la e mais uma frustração não deve ser somada. Há casos e casos. Deveríamos todos ser mais cuidadosos com o tratamento que damos às informações.
Portal do Voluntário – Qual é a incidência de partos prematuros no Brasil? Os hospitais em geral oferecem bons serviços às crianças que nascem antes e às suas mães? E a rede pública, que atende a população excluída?
Liseane Morosini – Em cada 100 nascimentos, cerca de 8% a 10% das gestações resultam em prematuridade. É um índice alto e não há uma causa exata. Tanto que cerca de 50% das mães de prematuros não apresentam fatores de risco identificáveis. Mas, toda gestante deve saber que esta possibilidade existe e a probabilidade é maior se fatores de risco estiverem presentes, tais como: tiveram um trabalho de parto prematuro ou um parto prematuro em gestação anterior; tiveram gestações múltiplas (por exemplo: grávidas de gêmeos ou trigêmeos); são fumantes, usuárias de drogas ou alcoolistas; estão abaixo do peso; mulheres que não se alimentam o suficiente com alimentos saudáveis. A situação da mulher e do bebê é preocupante no Brasil. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Unicef mostram que 8,7 mil gestantes morreram no parto em 2000 (faleceram 260 de cada 100 mil). É o quarto maior índice da América Latina, somente superado pela Bolívia, Peru e Haiti. A hipertensão está entre as primeiras causas apontadas, sendo responsável por 21% dos casos. É por isso que um pré-natal bem feito, com um número ideal de oito consultas, é importante para evitar problemas para a mãe e para o bebê.
Portal do Voluntário – A falta de peso dos prematuros sugerem uma enorme fragilidade. No entanto, dentro de uma máquina, longe do calor da mãe, eles demonstram uma força incrível, sobrevivem e depois crescem sadios como crianças nascidas de parto normal.
Liseane Morosini – Bebês prematuros são frágeis, sim, mas possuem uma força que os direciona à vida e que os faz superar barreiras enormes. Surpreendem pais e o próprio corpo médico. Além disso, hoje há mais monitoramento tecnológico, faz-se uso de drogas mais eficazes e a intervenção cirúrgica, aliados à competência do pessoal da área de saúde, faz com que os índices de recuperação de prematuros sejam altos. Mas destaco que esses bebês precisam de um acompanhamento anterior e posterior diferenciado de bebês de tempo normal com a avaliação periódica de fisioterapeutas, neuro pediatras, fonoaudiólogos, entre outros. Nesse sentido, foi fundamental a ajuda dos doutores José Henrique Moura, do Recife, e do dr. José Roberto Morais Ramos, aqui do Rio, neonatologista e pediatra que nos acompanha até hoje. José Henrique foi fundamental para os momentos de enfrentamento da UTI, em especial para meu marido que ficou mais ligado na evolução do quadro clínico de nossa filha. Já o José Roberto visitou-nos regularmente na UTI. De forma sempre segura e com muita calma, ele nos mostrou que bebês prematuros se desenvolvem mais lentamente, porém chegam lá. E que eventuais problemas seriam contornados. Essa conversa amiga serviu para compensar a falta de cuidado alheia. Logo após minha chegada em casa, cansei de ouvir na rua, na praça, que meu bebê era pequeno. Naquela época, foi ruim escutar. Tinha chegado recentemente do hospital, estava aflita e exausta. Se não tinha cabeça para ver essa diferença, hoje sei que ela existiu. Era pequena mesmo. Pronto. E tinha um perímetro cefálico maior, como todo prematurinho. Mas você não sabe disso na hora. Pais de prematuros devem ser alertados que esse bebê requer um tempo diferente e que comparações serão inevitáveis por um certo período. Mas passam, como mostram as fotos que acompanham os depoimentos no site. Ver um bebê recém-nascido e depois perto de um ano é um estímulo grande. Eles crescem, se desenvolvem, a cabecinha entra no tamanho correto. Esses pais precisam ver e acreditar que seus filhos também chegarão lá. E depois vão ganhar a recompensa pelo belo trabalho que fizeram.
Portal do Voluntário – Fale um pouco mais da sua experiência pessoal de dar à luz um bebê prematuro.
Liseane Morosini – Foi um período difícil, de muita confusão e inconformidade. Tive uma gestação sem problemas aparentes, que levassem ao parto prematuro. Mas, no sétimo mês, tive alteração de pressão. Como bebê estava em sofrimento, não houve alternativa e foi preciso intervir. Não tive tempo de me preparar para o parto. Confesso que não esperava ver um bebê de 1,2 kg, tão pequeno e cercado de cuidados. Tive medo de estar com ele, pois não sabia o que fazer e como providenciar tanta coisa ao mesmo tempo. Entrei em estado de choque e senti que não tinha competência para cuidar daquela criança. Com tudo isso, sei que fui privilegiada, pois a equipe intensivista era excelente. É nessa hora que médicos com muito mais do que competência fazem a diferença. E não há como esquecer do pessoal da enfermagem. Foram anjos que estiveram zelando por minha filha durante 42 dias. Mas acho que a figura de minha obstetra, dra. Monica Pires Ribeiro, foi fundamental para me mostrar que nós poderíamos superar tudo aquilo. Fiquei uma semana internada e pude assimilar que voltaria para casa sem o bebê. É tudo muito rápido. De repente, fiquei surpresa porque havia uma dinâmica à parte de UTI Neonatal e eu desconhecia tudo aquilo. E o mais impressionante é que meu olhar começou a ver beleza naqueles bebês que pouco antes havia sentido pena e rejeitado! Sabia que eles jamais estariam em uma capa de revista, mas eram belos em seu esforço pela vida. De repente, consegui olhar aqueles bebês de uma forma muito natural, como se eles nada tivessem. Somos educados para o olhar externo quando não é isso que realmente importa. Porém o ser humano é engraçado, pois se acostuma a tudo. Lembro que, tempos depois, um bebê de 2,7kg foi internado e virou a sensação do berçário intermediário – para onde vão os bebês em condições mais seguras. Obeso, era a opinião geral. E eu não conseguia imaginar como a minha filha ficaria com aquelas gordurinhas todas.
Portal do Voluntário – Por que você criou o site Nascer Antes? Como ele é? Que serviços ele presta?
Liseane Morosini – Brinco que minha gestação resultou em uma filha maravilhosa e um site. Sem a vinda antecipada de Rafaela, dificilmente tomaria contato com essa realidade. Ao buscar informações que me ajudassem a compreender o processo, encontrei pouco material disponível. Acho que temos dificuldade em abordar assuntos dolorosos, profundos, que envolvam dor. Então resolvi agregar minha experiência pessoal e profissional para ajudar famílias que enfrentam ou enfrentaram o problema da prematuridade. Quero mostrar que esse é um período que implica em luto de um ideal de bebê para um encontro abrupto com um bebê real. E que podemos aprender muito a partir dessas experiências. Essa abordagem é inédita na internet brasileira. O conteúdo vem das histórias de pessoas que viveram a prematuridade; perderam seus filhos e fizeram o método mãe canguru. São essas mães, com acesso à internet, que podem sensibilizar os médicos de UTIs privadas para que também implantem o método. Há espaço para entrevistas, artigos, notícias, glossário e uma seção de perguntas e respostas. Até agora, temos depoimentos de mães e espero que os pais e avós também mostrem como viveram a prematuridade. Nosso forte são esses depoimentos. Aliás, é uma contribuição importante para médicos que exercitam apenas sua capacidade técnica.
Portal do Voluntário – Como você consegue manter o site? Você o edita sozinha? Há quanto tempo está no ar?
Liseane Morosini – Esse projeto é voluntário e está sendo um desafio levá-lo adiante. Tenho apenas uma jornalista, a Lena Cerqueira, que voluntariamente faz a revisão de todos os textos. Para lançar o site, contei com a ajuda de Ricardo e Cláudia Porto, da Calepino, que fizeram o leiaute e adequaram o webTexto, gerenciador de conteúdo por eles desenvolvido, às propostas do Nascer Antes. Eles conseguiram dar a leveza necessária a um assunto de trato difícil. O site foi lançado em meados de setembro e estou surpresa com a receptividade. Tanto que o link Perder um Filho foi colocado no menu a pedido de internautas que enfrentaram essa experiência com seus bebês prematuros. Estou atualizando o site periodicamente e vou começar a inserir notícias diárias. Agora, pretendo sensibilizar empresas para que sejam meus parceiros nessa empreitada e para que possamos, juntos, tornar o Nascer Antes em uma referência na área de prematuridade no País.
Se quiser colaborar com o site Nascerantes, seja apoiando voluntariamente a iniciativa, seja compartilhando depoimentos e informações, acesse www.nascerantes.com.br.