A infância na cultura do desmame
influencia a experiência de amamentação
Gabrielle Gimenez* – Editora especial do aleitamento.com
Quando se fala sobre desmame precoce, falta de referências culturais sobre amamentação e pressão da indústria nos mais diferentes âmbitos, muita gente acha exagero. Mas é evidente o quanto estamos imersos nessa cultura e o quanto os nossos valores estão invertidos e distanciados da nossa essência.
Por um lado, temos os baixos índices de aleitamento materno no Brasil e no
mundo. Nós mesmas podemos relatar quão poucas vezes vimos mães amamentando seus bebês, especialmente os maiores de 6 meses, de forma natural e corriqueira, enquanto crescíamos. A maioria de nós foi amamentada por pouco tempo também. Por outro lado, temos todo o arsenal que a nossa cultura associa como próprias de um bebê, como mamadeiras, chupetas, dosadores de leite em pó e toda a parafernália de transporte e limpeza desses utensílios.
Além dos mais recentes e falsamente vendidos como facilitadores da amamentação, como intermediários de silicone e conchas. Todos, na verdade, itens desnecessários e conflitantes com o ato de amamentar, e no entanto presentes na maioria das listas de enxoval das futuras mamães.
Instinto ou cultura?
Se a amamentação nos seres humanos fosse puramente instintiva, a perda da
cultura da amamentação não seria um problema. Mas como sobre ela incide um importante componente cultural, a não transmissão transgeracional da prática da amamentação, fez com que ela fosse caindo no esquecimento. A amamentação deixou de ser habitual na nossa cultura, ganhando um caráter de anormalidade e exceção. Por consequência, a perda dessa cultura torna as mulheres vulneráveis e dependentes do conhecimento técnico dos profissionais que as assistem. Se este conhecimento for nulo, escasso ou contraditório, as chances de fracasso na amamentação serão altíssimas.
Como explicam PARICIO & TEMBOURY:
“Na cultura da mamadeira em que estamos imersos, existe uma crença falsa de que, graças aos avanços técnicos, as fórmulas são uma alternativa ao leite materno. Nesse contexto, muitos profissionais subestimaram a amamentação, não adquirindo o conhecimento necessário para apoiá-la, de maneira que, quando aparecem dificuldades na amamentação, não tendo conhecimento para resolvê-las, acham mais prático eliminá-la”.
Estes profissionais, assim como a maioria de nós, provavelmente, não foram amamentados ou não tiveram uma boa experiência de amamentação, e terminam levando sua falta de conhecimento teórico e empírico para a sua prática clínica. Por esta razão, o desmame iatrogênico ainda é bastante presente na nossa cultura. A estratégia de marketing da indústria dentro dos consultórios, e a sua parceria e patrocínio das associações médicas contribuem para a manutenção desse círculo vicioso de desmames precoces massivos.
Brinquedos infantis
Em Agosto se comemora o Dia das Crianças aqui na Argentina. Folheando o encarte especial de uma loja por esta ocasião, me deparei com a página da imagem acima. Percebam que todas as bonecas, independentemente das funções extras que possuam, vêm de fábrica com uma chupeta na boca, e várias delas com mamadeira também.
Crescemos achando que bebês se alimentam com mamadeira e se acalmam com chupeta. Como não pensar que produção de leite é loteria e mamadeira é o destino na idade adulta, como mães, se a vida inteira foi o que mais vimos ao nosso redor na vida real e no faz de conta? Passamos pela idade escolar e aprendemos sobre todos os órgãos e sistemas do corpo humano, menos sobre as mamas, como elas são por dentro ou como funciona a fisiologia da lactação.
Como se esta não fosse a razão da nossa espécie ter chegado até aqui. Muitos profissionais usam o discurso “o leite materno é o melhor para o bebê”, mas na prática não sabem orientar as mães ou fazer o manejo correto dos eventuais problemas na amamentação e recomendam complementação com fórmula e uso de bicos artificiais sem alertar sobre os riscos envolvidos no uso desses elementos.
A amamentação na nossa cultura é tida como uma opção dentre tantas outras, com alguns benefícios interessantes a mais para quem a escolher. Mas não é bem assim. A amamentação é de longe a melhor opção, a única que se adapta e supre todas as necessidades do ser humano em formação de forma equilibrada e sem efeitos colaterais indesejados. As demais opções apresentam riscos, malefícios e deficiências. Por isso é importante se informar, buscar assessoria de profissional capacitado e pesar bem as consequências antes de abandonar de vez ou interromper a amamentação de forma precoce ou abrupta.
Amamentar não é “automático”
Amamentar não é algo mágico, não é necessário ter super poderes. Amamentar é humano, é mamífero, é o que deveríamos fazer de forma fluída, sem muitos porquês. No entanto, para que isso seja uma realidade hoje, precisamos recuperar uma cultura perdida e a naturalidade do ato de amamentar.
Nós reconstruímos a cultura da amamentação amamentando a qualquer hora e em qualquer lugar, para que todos possam ver, especialmente as crianças. Uma mulher amamentando em público deveria chamar tanto a atenção como uma mãe dando mamadeira ao seu bebê, ou seja, nenhuma. Dar o peito deveria ser o normal. Também o fazemos, passando adiante o conhecimento e a prática a outras mulheres, cobrando apoio de todas as esferas da sociedade para oferecer o que por direito nossos filhos merecem e precisam. Reconstruiremos a cultura da amamentação resistindo.
Amamente hoje, sem medo. Não caia nas ciladas do sistema. Continue
amamentando pelo tempo que achar necessário. Não se deixe intimidar pelos comentários e críticas dos demais. Coloque seu precioso tijolo nessa reconstrução tão necessária. Amamente!
Imagens:
Na foto, minha irmã e eu com nossas bonecas durante nossa infância nos
anos 80. Ambas mamamos por poucos meses, por diferentes motivos, apesar do desejo da minha mãe de amamentar. A informação era escassa ao público em geral e o apoio dos profissionais quase nulos. Nos anos anteriores os índices de amamentação em todo o mundo foram tão baixos que isso levou a uma convocatória internacional por parte da OMS e UNICEF, no sentido de se
trabalhar de forma coordenada a promoção, proteção e apoio à amamentação, para que esta não desaparecesse por completo. No Brasil esses esforços começaram a ser implementados no final da década de 80, e depois de quase 40 anos, podemos perceber avanços, embora ainda estejamos longe do ideal recomendado. Não é fácil trazer do esquecimento uma cultura quase perdida. Trabalhar pela reconstrução da cultura da amamentação continua sendo o melhor investimento para a geração presente e as futuras.
* Gabrielle Gimenez é escritora, ativista pela amamentação, mãe de três e nova Editora do aleitamento.com