Os programas nacionais de incentivo ao aleitamento materno: uma análise crítica
No presente estudo, analisamos criticamente a inserção do aleitamento materno nos programas e políticas nacionais de saúde. Assim, o aleitamento materno, enquanto prática social, tem passado por transformações através dos tempos, configurando o seu incentivo em estratégia simplificada para redução da morbimortalidade infantil.
Nas últimas décadas, estamos assistindo, em muitos países, principalmente no terceiro mundo, à implementação de ações dirigidas ao incentivo do aleitamento materno. Na verdade, trata-se de um retorno às campanhas empreendidas, desde o século XVIII até o início do atual, por enfermeiros, psicólogos, médicos, escritores e educadores, dentre outros. Embora o contexto da ênfase atual a diferencie daquela empreendida nos séculos XVIII e XIX, é oportuno destacar que os programas e campanhas têm em comum a fundamentação behaviorista, visando a modificar comportamentos e que, de alguma forma, os interesses políticos e econômicos permeiam as políticas dirigidas ao aleitamento.
Não obstante a representação quase sagrada da maternidade, muitas mulheres brasileiras, desde o período colonial, buscaram alternativas para alimentarem seus bebês. A prática de usar amas-de-leite se difundiu, no Brasil, influenciada pelos costumes europeus, trazidos pelos portugueses. Todavia aqui, diferentemente da Europa, as amas eram, na grande maioria, escravas negras e as mulheres européias tiveram que se adaptar à realidade da colônia.
Cabe registrar que a maternidade, para a mulher burguesa brasileira, passou a ser valorizada a partir do século XIX. Nessa época a sociedade sofreu uma série de transformações com o grande desenvolvimento do capitalismo, o crescimento urbano, a ascensão da burguesia, despontando uma nova mentalidade, que reorganizou a vida familiar e doméstica, interferindo no cotidiano feminino, repensando, inclusive, a sensibilidade e a forma de pensar o amor (DIncao, 1997).
O movimento higiênico se estrutura nesse contexto; o discurso empreendido pelos médicos higienistas enfatiza o aleitamento natural como direito da criança e dever sagrado da mulher, o qual serviu de instrumento para redefinir o papel feminino na sociedade burguesa da época.
A representação da mulher ideal no século XIX, que perdurou até quase a metade do século XX, compreendia uma mistura de imagens que englobavam a mãe piedosa da Igreja, a mãe-educadora do Estado positivista, a esposa-companheira do aparato médico-higienista.
A maternidade para as mulheres pobres, mesmo que representada ideologicamente de forma semelhante ao modelo burguês, era vivenciada de forma diversa do discurso. De modo semelhante, os cuidados dispensados às crianças eram atribuídos à mulher; entretanto, a maternagem era compartilhada com avós e mães de criação, pois as mulheres pobres buscavam o sustento com o trabalho fora do lar.
Segundo Fonseca (1997), a circulação de crianças numa rede consanguínea e em outras redes era comum nas famílias pobres; acreditava-se que, se não fossem utilizados esses recursos, dificilmente essa parcela da população teria se reproduzido no século XIX e no início do XX.
Paulatinamente, os médicos, em sua grande maioria homens, e principalmente os higienistas, desvalorizaram e desautorizaram o saber feminino na criação dos filhos, assumindo este controle através da educação de mães e de amas. Todavia, as posturas, discursos e prescrições desses profissionais eram diferentes conforme a classe social da mulher, sendo mais amáveis e tolerantes com as mulheres de melhor poder aquisitivo e enfáticos e rígidos com as pobres (Knibiehler, 1991).
Com a infiltração dos médicos na vida privada das famílias, através da puericultura, ocorreu, entre outras coisas, a medicalização do ato de amamentar e o aleitamento materno deixou de ser um saber próprio das mulheres. O aleitamento em livre demanda, no qual o bebê mama quando tem fome ou quando precisa do contato íntimo com a mãe ou com a ama, deixou de ser um ato natural e passou a ser considerado como perigoso, na educação e formação do caráter da criança.
A rigidez dos horários, da duração das mamadas e do período ideal para o desmame traziam embutidos a ideologia do controle não só do corpo da criança, mas também do corpo da mulher, disciplinando o uso higiênico do seu tempo livre na casa e a sua disponibilidade para concorrer com o homem no mercado de trabalho, além de enfatizar a coesão do núcleo familiar. A puericultura irá responsabilizar a mãe pela higidez física e moral dos filhos, estando a sobrevida destes sob sua responsabilidade (Costa, 1989).
As elites brasileiras, inspiradas nas teorias eugenistas, preocupavam-se com a formação do novo trabalhador brasileiro, cidadão da pátria, disciplinado para produzir mais para o capitalismo que se fortalecia. Não foi por acaso que os teóricos da época condenaram o trabalho feminino fora do lar, acreditando que esse fato destruiria a família e debilitaria a raça, pois as crianças cresceriam mais soltas, sem a vigilância permanente das mães. Influenciados pelos pensamentos de Jean-Jacques Rousseau e da era vitoriana e por concepções religiosas, essas elites do começo do século XX tentaram redefinir o lugar da mulher, remetendo-a ao espaço estritamente privado, justamente no momento em que a industrialização e a urbanização lhes abriam novas perspectivas de trabalho e atuação (Rago, 1997).
A puericultura, portanto, foi um instrumento valioso nesse processo, pois através dela o Estado, com o auxílio de médicos e pedagogos, ajudou a moldar a família burguesa e, principalmente, disciplinar a família pobre, ditando normas e regras de comportamento acerca de alimentação, vestuário, exercícios físicos das crianças e até da sexualidade dos pais. A ênfase no aleitamento materno pela mãe biológica passa pela definição do espaço feminino de atuação.
Assim, os médicos, ao ditarem as normas e a moral higiênica, serviam à ideologia do Estado e normatizavam também a família, além de objetivarem a diminuição da mortalidade infantil. O aleitamento materno deveria ser estimulado, pois era considerado um importante meio de sobrevivência infantil e só uma sociedade com crianças fortes, robustas e bem educadas teria adultos capazes de gerar riqueza para o Estado brasileiro.
Apesar dos discursos e dos esforços, o abandono da amamentação natural foi um fenômeno registrado mundialmente, tendo início na Europa, no final do século XIX, coincidindo com a Revolução Industrial e intensificando-se no século XX, após a Segunda Guerra Mundial.
Com o avanço da tecnologia, a indústria de leite conseguiu manusear com relativa segurança o leite de vaca, adaptando-o, progressivamente, às necessidades nutricionais das crianças. Os médicos, paulatinamente, cederam à propaganda das multinacionais, passando a prescrever o leite em pó, já nas maternidades.
A prática do aleitamento artificial influenciou as altas taxas de mortalidade infantil e a qualidade de vida das crianças do terceiro mundo (diferentemente dos países industrializados), onde numerosas famílias viviam na miséria, sem saneamento básico e água potável para o preparo das mamadeiras. As consequências dessa prática se traduziram no aumento da diarréia e da desnutrição, as quais colaboraram na manutenção dos elevados índices de morbi-mortalidade infantil.
A entrada maciça das indústrias produtoras de leite nos países de terceiro mundo ocorreu entre 1957 e 1974, tendo como uma das causas a diminuição da taxa de natalidade nos países industrializados, determinando uma queda no faturamento destas indústrias que, para conservarem as taxas de lucro, procuraram mercado no terceiro mundo, onde os índices de natalidade são sempre elevados (Orlandi, 1985).
As multinacionais, através de várias estratégias de propaganda e divulgação de seus “substitutos do leite materno”, contribuíram para a criação de hábitos e necessidades, culminando com o acolhimento pela população e a indicação pelos profissionais de saúde de seus produtos. Utilizaram agentes vestidas de enfermeiras como instrumentos do marketing, distribuindo inúmeros panfletos de orientações e amostras grátis do leite em pó em maternidades e domicílios (Vinha & Scochi,1989).
Em 1974, um jornalista inglês, Mike Muller, publica um artigo com o título The baby killer (O matador de bebês), associando o uso de leite artificial ao aumento da mortalidade infantil nos países pobres. Esta publicação, de certa forma, colaborou para o início de um movimento mundial contra a propaganda indiscriminada dos leites em pó.
Os programas oficiais de incentivo ao aleitamento materno
A partir da metade da década de 70, emergiram recomendações mundiais pela retomada do aleitamento natural, enfatizando-se o aleitamento materno exclusivo até os seis primeiros meses de vida da criança. Tal posicionamento se inseria dentro da tendência internacional, como movimento de proteção à maternidade e à infância que, no Brasil, consolidou-se no Programa Materno Infantil, em 1974, e, posteriormente, no Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, em 1981.
Dentro das políticas sociais emergentes, esses programas tiveram também como subsídio os dados da Investigação Interamericana de Mortalidade na Infância, realizada em 1970, cujos resultados apontaram as altas taxas de mortalidade infantil em crianças brasileiras menores de cinco anos, por causas passíveis de prevenção através de medidas de alcance coletivo, dentre elas o aleitamento materno e a assistência hospitalar ao parto.
Na década de 70 o país vivenciou o fim do milagre econômico, que se traduziu em piora das condições de vida da população, com queda do salário real e reflexo negativo na mortalidade infantil. Neste período, a taxa de mortalidade infantil e em menores de cinco anos era de 118 e 181 por mil nascidos vivos, respectivamente, havendo diferenças regionais bastante expressivas. Em São Paulo, de cada mil crianças nascidas vivas, morriam 83,8 e em Recife 263,5 antes do final do primeiro ano de vida (Brasil, 1974; Unicef, 1996).
As ações e políticas governamentais na área da saúde materno-infantil, naquele período, eram caracterizadas pelo atendimento médico/hospitalar com ênfase no aspecto curativo, sob a gerência do Instituto Nacional de Assistência e Previdência Social (Inamps), com altos custos, baixa cobertura e extensiva somente aos trabalhadores formalmente inseridos no mercado de trabalho e aos seus dependentes.
Pressionado por problemas sociais emergentes, com o fim do milagre econômico, e pelas organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a partir de 1974 o governo Geisel, através do Ministério da Saúde, criou programas de extensão de cobertura dirigidos à população materno-infantil. O programa se caracterizou pelo enfoque de risco, surgindo para atender a uma urgência daquele momento: reduzir o número de mortes por causas relativas ao parto, estender os serviços de saúde de atenção ao parto hospitalar às populações rurais e aos grupos marginalizados.
No Programa Materno Infantil, o aleitamento materno era abordado de forma superficial e, em caso de insuficiência do leite materno, recomendava-se a distribuição do leite em pó. A suplementação alimentar para gestantes e lactentes foi a grande ênfase do programa. A comunidade médica, embora tivesse um discurso enaltecedor das vantagens do leite materno, colaborava com o desmame precoce e com a expansão do mercado da indústria produtora de leite em pó, prescrevendo os leites maternizados.
Segundo Orlandi (1985), os profissionais de saúde não renunciaram à supremacia do leite humano, mas passaram a estimular, veladamente, o aleitamento artificial. Esta postura, que passou da condenação à aceitação do leite artificial como “substituto do leite materno”, permeava o discurso do primeiro programa governamental dirigido à mulher e à criança.
Em 1981, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), juntamente com o Ministério da Saúde, através do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan), patrocinaram a primeira pesquisa nacional sobre a situação do aleitamento materno no Brasil, cujos dados foram coletados em Recife e São Paulo.
Constatou-se que o desmame ocorria muito precocemente nas duas cidades, especialmente no Recife, onde no primeiro mês de vida 68% das crianças recebiam leite artificial e quase 90% estavam desmamadas ao final do segundo mês. O estudo demonstrou a associação entre o desmame precoce e alguns fatores socioeconômicos, ocorrendo com maior frequência nas mães jovens, pobres, com baixo nível de escolaridade e menor número de filhos.
Dentre as causas mencionadas pelas mães para o desmame, verificou-se que estavam relacionadas à falta de informações sobre o aleitamento materno, insegurança e ansiedade. Em relação aos profissionais de saúde, constataram-se atitudes que não favoreciam o aleitamento materno, bem como a ausência de intervenções nos serviços de pré-natal dirigidas à amamentação materna. Nas maternidades eram escassas as unidades de alojamento conjunto, retardando a primeira mamada com a separação prolongada do binômio mãe e filho (Oliveira & Spring, 1984). Esses dados também embasaram as diretrizes do Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno.
O programa se iniciou em 1981, sob a gerência do Ministério da Saúde, através do Inan, com apoio de organizações não governamentais e governamentais, como o Unicef, Organização Pan-americana de Saúde (OPS) e OMS. As intervenções planejadas para reverter o quadro de desmame precoce foram: treinamento intensivo do pessoal de saúde, elaboração de material educativo para profissionais de saúde e mães, incentivo de ações educativas no pré-natal, parto e puerpério. Na ocasião, o Ministério da Saúde passou a recomendar a adoção do sistema de alojamento conjunto e a criação de bancos de leite humano nas maternidades. Adotou-se também, de início, o Código Internacional de Vendas de Alimentos e Sucedâneos de Leite Humano, enquanto se aguardavam as normas de comercialização desses produtos para o Brasil. As Normas para Comercialização de Alimentos para Lactentes foram instituídas através da Resolução nº 05, em 20 de dezembro de 1988, pelo Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1989a).
Dentro das diretrizes, uma das recomendações contidas no programa foi a educação formal, sugerindo que o conteúdo sobre o aleitamento materno fosse contemplado nos programas de ensino de primeiro e segundo graus e no ensino universitário (Martins Filho, 1984; Brasil, 1989b).
A década de 80 se caracterizou por uma profunda crise econômica e pelo processo de redemocratização do país. Nesse contexto social surgiu, em 1984, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher e da Criança – Paismc, subdividido em Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – Paism e Programa de Assistência Integral à Saúde da Criança – Paisc (Brasil, 1984 a, b). Sedimentaram-se em experiências de alguns programas implementados pelo Ministério da Saúde, que tinham como objetivos, entre outros, a expansão da rede básica de atendimento, desencadeando uma ação conjunta dos Ministérios da Saúde e Previdência Social, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, culminando com as Ações Integradas de Saúde (AIS). O eixo norteador do Paismc foi o referencial da Conferência de Alma-Ata, (1978), que preconizava “saúde para todos no ano 2000”, enfatizando o uso de tecnologia simplificada e os cuidados primários de saúde.
O Paisc tem como elemento nucleador o acompanhamento sistematizado do processo de crescimento e desenvolvimento das crianças de zero a cinco anos. Em torno dessa vigilância da saúde da criança se entrecruzariam as outras ações básicas do programa: Aleitamento Materno e Orientação Alimentar para o Desmame, Assistência e Controle das Doenças Diarréicas, Assistência e Controle das Infecções Respiratórias e Imunização. O programa se diferencia do anterior, primeiro porque propõe a assistência integral à criança, prescrevendo que a atenção não deva mais ser focal, em cima de sinais e sintomas, mas longitudinal, através do acompanhamento sistematizado da criança até cinco anos de idade. A segunda diferença é que o programa atual tem diretrizes que orientam o atendimento dos profissionais em relação aos principais problemas de saúde da criança, com recomendações de que os subprogramas fossem compatibilizados à realidade regional.
Na prática, entretanto, as diretrizes foram interpretadas como normas pelos Serviços, os quais, em sua maioria, deixaram de contemplar as particularidades regionais. O programa ainda mantém, de forma sutil, o enfoque de risco, sendo dirigido à população marginalizada, priorizando as principais causas de morbimortalidade em crianças de famílias com baixa renda.
No que se refere à alimentação, o Paisc enfatiza o aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida e já reflete as diretrizes do Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno. As estratégias para incentivar a amamentação materna devem ser iniciadas no pré-natal, continuar no alojamento conjunto e durante todas as visitas das crianças à Unidade de Saúde, através de discussões com as mães sobre as vantagens do aleitamento materno, orientação técnica sobre a amamentação e exame das mamas. A abordagem preconizada é pautada em um discurso técnico psicobiológico, em que se enfatizam as vantagens nutricionais, imunológicas e psicológicas para o bebê.
As dificuldades por que passam as mulheres, durante o processo de amamentação, quase sempre são omitidas. O mais comum é o enfoque com uma visão romantizada do ato de amamentar, na qual as dificuldades se limitam às fissuras mamilares e ao ingurgitamento mamário.
A ação básica – Aleitamento Materno e Orientação Alimentar para o Desmame – tem como objetivo maior a diminuição da mortalidade infantil, numa realidade nacional em que a desnutrição se constitui em importante causa básica ou associada de óbitos. Com o aleitamento materno exclusivo, até o sexto mês de vida, pode-se retardar a desnutrição infantil e conferir proteção contra as doenças diarréicas e respiratórias, as quais responderam por parcela significativa das causas de mortes na infância e de demanda aos serviços hospitalares e ambulatoriais, na década de 80.
Na perspectiva da organização dos serviços materno-infantis visando à proteção, promoção e apoio ao aleitamento materno, a declaração conjunta da OMS/Unicef estabelece os dez passos para o sucesso do aleitamento: ter norma escrita sobre aleitamento, treinar a equipe de saúde para implementá-la, informar as gestantes sobre as vantagens e manejo do aleitamento, ajudar as mães a iniciá-lo na 1ª hora após o nascimento, mostrar-lhes como amamentar e manter a lactação, não dar outro alimento ou bebida aos neonatos que não seja o leite materno, praticar o alojamento conjunto, encorajar o aleitamento em livre demanda, não oferecer bicos artificiais ou chupetas às crianças amamentadas ao seio e encorajar o estabelecimento de grupos de apoio ao aleitamento, para onde as mães deverão ser encaminhadas por ocasião da alta (Organização Mundial da Saúde, 1989). Essas diretrizes passaram a ser recomendadas pelas autoridades normativas e administrativas e organizações científicas internacionais e nacionais, culminando com a iniciativa do Hospital Amigo da Criança; a instituição que cumprisse os dez passos normatizados receberia essa designação.
No Brasil essa iniciativa começou a ser desenvolvida em março de1992, através do Ministério da Saúde e do Grupo de Defesa da Saúde da Criança, com o apoio do Unicef e da OMS (Sociedade de Pediatria de São Paulo, s.d.). Todavia, só mais recentemente é que se tem percebido uma maior mobilização de algumas instituições públicas e privadas em direção a essa iniciativa, pois a partir de 1994, através de portarias do Ministério da Saúde, criou-se um incentivo financeiro para as instituições vinculadas ao Sistema Único de Saúde credenciadas como Hospital Amigo da Criança.
Acreditamos que os programas recomendados são importantes, mas não garantem o sucesso do aleitamento materno se não se trabalhar a postura e a capacitação técnica dos profissionais, bem como se não se contemplarem nas práticas assistenciais, as determinações socioculturais e a perspectiva da mulher, mãe e nutriz, que está vivenciando esse processo.
Incentivar o aleitamento contemplando a perspectiva materna
Apesar das ações de incentivo à amamentação, o incremento do aleitamento natural vem fazendo-se de forma lenta. Muitas mulheres ainda continuam não amamentando ou amamentam por pouco tempo, desconsiderando as prescrições técnicas do aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida.
Segundo Arantes (1991), é provável que, como interlocutores do aleitamento, os profissionais de saúde estejam reproduzindo para a mulher um padrão de amamentação ideal, negando a faceta das dificuldades que o ato envolve e enfatizando somente os seus aspectos positivos.
No Brasil, a proporção de crianças desmamadas aos três e seis meses é de 43% e 61%, respectivamente, percentuais esses um pouco maiores na área urbana. O aleitamento materno exclusivo não chega a 30% entre as crianças de três meses de idade e representa somente 6% entre aquelas de seis meses de idade. Existem diferenças regionais e, quando consideramos o aleitamento materno exclusivo, observamos que 50% das crianças o utilizam até os 82 dias de vida, no Sudeste, e até 41 dias, no Nordeste (Fundação IBGE, 1992), limites esses bastante inferiores aos seis meses de vida recomendados pela norma técnica. Embora haja uma tendência de melhora desse padrão, é necessário observar que a situação ideal não foi alcançada.
Essa Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN), realizada de 1981 a 1989, constatou, também, alguns fatores específicos que têm contribuído para a persistência do desmame precoce, destacando a demora da primeira mamada e a ausência de unidades de alojamento conjunto nas maternidades. O baixo peso ao nascer e a prematuridade estariam influenciando negativamente a adoção e a continuidade do aleitamento materno (Fundação IBGE, 1992).
Além do apontado, acreditamos existirem outros fatores relacionados ao contexto sociocultural da mulher que corroboram para a decisão de desmamar, os quais são amplos e complexos e dificilmente explicáveis somente sob a ótica dos profissionais. Convém contemplar o sentido que as mães conferem ao ato de amamentar e ao desmame.
A opção da mulher que dispõe de melhores condições sociais pelo aleitamento artificial pode até ser respeitada, ou tolerada, sem grandes prejuízos para a criança; todavia, para a mulher pobre isso não é sequer cogitado; pelo contrário, na prática assistencial ela é responsabilizada pela ignorância sobre as técnicas de amamentação, pelo desmame precoce e pela desnutrição de seus filhos.
O aleitamento materno nos países periféricos se transformou em uma nova arma contra a desnutrição. As campanhas têm se constituído em estratégia simplificada, para reduzir a mortalidade infantil em nível de atenção primária através de normas prescritivas a serem seguidas, as quais, muitas vezes, estão descoladas da realidade das mulheres, em especial da nutriz dos estratos sociais menos favorecidos.
Neste aspecto concordamos com Silva (1990, p.172), quando analisa a responsabilidade imputada pelo Estado à sobrevivência da criança:
(…) o milagre do leite materno de uma mãe desnutrida, cansada, responsável pela casa, por outros filhos e pelo sustento da família, é que vai ser a nova solução salvadora (…) o desmame tornou-se disfuncional, elevando a mortalidade infantil. O aleitamento materno, enquanto questão social e política, faz parte do estado planificador de intervenção na mortalidade infantil, sem a necessidade de alterações na estrutura socioeconômica e de distribuição de renda. Insiste-se em medidas simples que podem resultar em melhorias na saúde, como o retorno à amamentação, que podem ser realizadas pelos próprios indivíduos, sem a necessidade de maiores gastos do setor público.
Os programas e ações de incentivo ao aleitamento materno deveriam contemplar as especificidades da mulher, tais como as condições de vida, de trabalho e a estrutura familiar, as quais podem influenciar negativamente na amamentação materna. Um número significativo de famílias brasileiras, hoje, é chefiada por mulheres, representando 13,8% das famílias na região Sudeste e 15,6% no Nordeste, em 1990; esta organização familiar está fortemente associada à pobreza, crescendo em 21% no Nordeste, na última década, sendo a maior no país e explicada pelas condições socioeconômicas da região, como também, pela migração inter-regional, que afeta principalmente a população masculina (Ribeiro et al., 1994).
Queremos refletir aqui sobre a mulher brasileira, pobre, chefe de família e que, por desempenhar vários papéis, dividindo-se entre o emprego, as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos, encontra dificuldades para se inserir no mercado formal de trabalho. Sem alternativas, ela busca a sobrevivência no mercado informal periférico, portanto, totalmente desprotegida pelas leis que garantem a licença maternidade.
Será que os programas, da forma como os reproduzimos, atendem às necessidades dessas mulheres? É oportuno destacar que o leite materno significa maiores chances de sobrevivência aos filhos das mulheres desse estrato social.
Sem dúvida, o aleitamento natural é o recomendável para os recém-nascidos e lactentes e, em países cujas desigualdades sociais são tão profundas, como é o caso do Brasil, especialmente nas regiões mais pobres e economicamente menos desenvolvidas, o leite humano pode significar a vida para milhares de crianças. Esse leite, como fonte alimentar, garante as necessidades nutricionais até o sexto mês de vida; a partir dai impõe-se a introdução de outros alimentos, os quais, muitas vezes, as famílias empobrecidas não têm condições de garantir a seus filhos. Sob esta perspectiva de análise achamos temeroso associar, isoladamente, o leite materno à sobrevivência infantil.
A amamentação materna é uma importante aliada na diminuição da mortalidade infantil e deve ser incentivada; entretanto, não de forma pontual e descontextualizada, para não cairmos na armadilha ingênua de acreditar que o leite materno, por si só, responde positivamente a todos os problemas de saúde da população infantil.
As práticas assistenciais se organizam balizadas pelos discursos técnicos oficiais e acadêmicos e, muitas vezes, reproduzem-nos sem muita reflexão e crítica. Até mesmo as questões fundamentais, como a desproteção à maternidade e ao aleitamento materno, a que muitas mulheres estão submetidas, são consideradas.
É inegável que as políticas sociais públicas e os programas de incentivo ao aleitamento natural são necessários; todavia, sua leitura é feita pelos profissionais que, como sujeitos sociais, podem transformar sua prática.
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Marly Javorski
Mestre em Enfermagem em Saúde Pública pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo.
Carmen Gracinda Silvan Scochi
Regina Aparecida Garcia de Lima
Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto – SP.
Revista: PEDIATRIA MODERNA
Edição: Jan/Fev 99 V 35 N 1/2