A ideia de que a amamentação pode salvar vidas é algo simples de assimilar, mesmo na nossa cultura. Pensamos facilmente em crianças de lugares remotos no continente africano ou asiático, onde a fome, guerras civis e as catástrofes naturais assolam e dizemos: ainda bem que existe a amamentação! Mas será que temos essa mesma percepção diante de realidades aparentemente favoráveis?
Na semana passada, uma notícia divulgada pela BBC Mundo viralizou ao contar sobre o resgate de Necla Camuz e seu filho recém-nascido, Yagiz, após mais de 90 horas soterrados sob os escombros do terrível terremoto que assolou a Turquia e a Síria no último dia 06.
O fator amamentação: a diferença entre a vida e a morte
É impossível ler esse relato sem colocar a amamentação num pedestal. Yagiz tinha apenas 10 dias de nascido no momento do terremoto e sobreviveu por quase quatro dias debaixo da terra, sendo alimentado pelo leite de sua mãe oferecido em livre demanda. As condições em que os dois permaneceram e o fato de que foram encontrados a tempo por uma equipe de resgate são, inegavelmente, um milagre.
Quando penso sobre o contexto de muitas mulheres hoje, lutando para amamentar na cultura do desmame, não posso deixar de tecer algumas conjecturas. E se Necla não estivesse amamentando exclusivamente o seu bebê? Se tivesse saído da maternidade com uma receita desnecessária de fórmula? Se houvesse escutado críticas sobre a qualidade do seu leite que a fizessem duvidar de que era mais que suficiente para alimentar o seu filho? O desfecho dessa história teria sido outro.
A realidade da amamentação em segundo plano
Para quem vive em uma zona segura do ponto de vista geopolítico e ambiental e com acesso a boa infraestrutura sanitária, a amamentação pode perder um pouco da sua relevância. A falta de boas políticas públicas de proteção à maternidade e à amamentação, torna a vivência de Necla de aleitamento materno exclusivo em algo quase impossível de alcançar. Infelizmente, esse é o panorama de muitos países, incluídos aí os ditos desenvolvidos.
Sabemos que por trás desse presente está o marketing agressivo da indústria, atuando sem qualquer tipo de controle ao longo de muitas décadas. O apelo à praticidade da fórmula para o estilo de vida moderno e a ênfase nas suas “muitas qualidades” (induzindo ao erro de que a fórmula poderia ser igual ou melhor que o leite materno) foram mudando a percepção de leigos e profissionais sobre o leite materno e seu papel essencial na saúde e desenvolvimento humanos. A amamentação foi sendo relegada a um segundo plano com preocupantes consequências globais.
Benefícios da amamentação para além das catástrofes
Em sua série mais recente de estudos sobre amamentação, divulgada no último dia 07 e comentada neste portal e traduzida para o português e disponível no nosso SlideShare, a revista científica The Lancet volta a enfatizar a importância da amamentação em todos os contextos, sejam de alta ou baixa renda. Também alerta sobre as práticas duvidosas de marketing da indústria, que confundem as famílias na hora de escolher o melhor para os bebês e inclui o lobby disfarçado que atenta contra as leis de proteção ao aleitamento materno.
Se bem os índices de amamentação cresceram em todo o mundo nos últimos anos, a pauta escolhida pelos pesquisadores nos dá a dimensão de uma luta incessante contra os inimigos de sempre, sem, muitas vezes, as armas adequadas para fazer frente à oposição. Ainda temos um longo caminho a percorrer, se queremos ganhar essa guerra.
Por outro lado, a ênfase nos benefícios da amamentação, baseada em evidências, nos relembra que a amamentação salva vidas todos os dias. E não apenas em terras longínquas, em meio a catástrofes naturais ou situação de extrema pobreza. A amamentação é fundamental para que o ser humano, nascido no metro quadrado mais caro de Manhattan ou no sertão nordestino, possa desenvolver todo o seu potencial em saúde.
E não apenas isso, pois a amamentação salva as vidas, tanto das crianças amamentadas quanto das mulheres que amamentam, com repercussão a longo prazo na qualidade de vida desses indivíduos.
Promover, proteger e apoiar a amamentação como uma necessidade urgente
Quanto mais as investigações científicas avançam, mais fica claro que as qualidades únicas e incomparáveis da amamentação são impossíveis de serem copiadas pelos fabricantes de fórmula. A natureza viva e dinâmica do leite materno e a interação humana entre mãe e bebê durante a amamentação não podem ser replicadas e postas dentro de uma lata.
Para isso é crucial continuar derrubando as barreiras estruturais e individuais, facilitando o acesso à informação de qualidade, livre de conflito de interesses, e a capacitação dos profissionais. As leis existentes precisam ser cumpridas, e leis de proteção pendentes, aprovadas o quanto antes.
A amamentação é a razão de termos chegado até aqui como espécie, e precisamos preservá-la se queremos continuar existindo. Para que a amamentação continue realizando seu importante papel de salvar vidas e melhorar os desfechos na saúde é preciso que todos façamos a nossa parte.
* @gabicbs é puericultora, mãe de três, editora especial do portal aleitamento.com e autora do livro “Leite Fraco? – Guia prático para uma amamentação sem mitos.
Matérias citadas:
https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-64620906
https://www.thelancet.com/series/breastfeeding-2023
https://www.slideshare.net/Marcusrenato/breastfeeding-the-lancet-2023-artigos-em-portugus