Do peito à comida caseira,
Saúde a vida inteira
Glaucia Cruz
Rosa Peralta
Entre 25 e 31 de agosto, foi comemorada, no Brasil, a Semana Mundial de Amamentação (SMAM), evento coordenado pelo Ministério da Saúde desde 1999. Com o objetivo de divulgar as ações dos setores públicos e privados em prol do aleitamento materno, a Semana foi criada, em 1992, pela Aliança Mundial para Ação em Aleitamento Materno (WABA), com o apoio da Unicef e abrangendo cerca de 120 países.
Temas da semana mundial de amamentação
1992
Hospitais Amigos da Criança
1993
Amamentação: direito da mulher no trabalho
1994
Amamentação: fazendo o Código funcionar
1995
Amamentação fortalece a mulher
1996
Amamentação: responsabilidade de todos
1997
Amamentar é um ato ecológico
1998
Amamentação: o melhor investimento
1999
Amamentar: educar para a vida
2000
Amamentar é um direito humano
2001
Amamentação na Era da Informação
2002
Amamentação: mães saudáveis, bebês saudáveis
2003
Amamentação: trazendo paz num mundo globalizado
2004
Aleitamento materno exclusivo: saudável, seguro e sustentável
2005
Amamentação e alimentos da família
A partir de atividades como feiras, encontros e oficinas, onde há distribuição de material educativo e a presença de profissionais de saúde orientando e tirando dúvidas da população, busca-se discutir o papel da amamentação como a melhor forma de garantir a todas as crianças o acesso ao alimento de qualidade, em quantidade adequada e de maneira regular para que elas possam ter uma vida saudável e produtiva.
De acordo com artigo publicado recentemente pela revista The Lancet, mais de 10 milhões de crianças morrem anualmente no mundo. Quase todas as mortes ocorrem nos países pobres e, na maioria das vezes, são decorrentes de causas preveníveis, tais como diarréia e pneumonia. Estima-se que 13% das mortes de crianças abaixo de 5 anos (o que corresponde a 1,3 milhões de vidas) poderiam ser evitadas se as taxas anuais de amamentação exclusiva alcançassem uma cobertura de 90% da população infantil nos 42 países onde ocorrem quase todas essas mortes.
DESMAME PRECOCE – UMA TEIA COMPLEXA DE RAZÕES
Muitas são as causas alegadas pelas mães para interromper o aleitamento: “Tive pouco leite”, “Meu leite era fraco”, “Tinha medo de fazer meu peito cair”, “O meu leite secou”, “O bebê não pega mais o peito”. Todas essas razões revelam a desinformação dessas mulheres. A literatura científica já provou que leite fraco é um mito. Mesmo mulheres em situações de desnutrição podem fornecer leite de qualidade e em quantidade adequada para seus filhos. Também não há nada que indique que os seios se tornem flácidos em decorrência da amamentação. Aliás, as mulheres que amamentam apresentam maior facilidade de voltar ao peso de antes da gravidez. E quando o bebê rejeita o peito da mãe, isso pode se dever a outros fatores, como o uso indiscriminado de chupetas e mamadeiras.
Ao amamentar, as mulheres ainda se beneficiam com a redução do risco de câncer de mama e de útero, de anemia e de osteoporose. Quem amamenta já na maternidade corre menos risco de ter hemorragias no pós-parto, uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil. O aleitamento exclusivo, aliado à ausência de menstruação, é uma forma de ajudar o espaçamento entre uma gestação e outra ao provocar uma infertilidade transitória, contribuindo para que a mulher tenha mais tempo para se dedicar ao bebê.
A falta de informação também atinge os profissionais da saúde. As maternidades e postos de saúde do país ainda praticam rotinas desatualizadas para o estabelecimento e manutenção da amamentação e não contam com um pessoal capacitado para orientar as gestantes e mães.
Foto de Willian Santos
Já a volta ao trabalho, outro argumento comum para o desmame, está mais relacionada à falta de apoio social e ao descumprimento das leis trabalhistas. Empresas com mais de 30 funcionárias têm que oferecer berçário ou creche no local de trabalho, além de dois descansos remunerados de meia hora por dia para que a mulher amamente seu filho.
Mas o uso de leite e suplementos industrializados, mamadeiras, chupetas e bicos aparece como um dos obstáculos mais difíceis de serem vencidos. O apogeu do marketing das fórmulas para lactentes ocorreu entre os anos 60 e 70. Naquela época, havia a distribuição de amostras grátis em maternidades; representantes das empresas visitando as comunidades mais pobres para demonstrar o preparo de mamadeiras; publicidade dos leites infantis para o público em geral; o leite de vaca em pó sendo chamado de “similar ao leite materno” ou “humanizado”; imagens de mães e bebês nos rótulos dos produtos; o recebimento, por parte de pediatras e suas sociedades, de ajuda material e financeira para participação e organização de congressos, viagens, pesquisas, brindes e publicações científicas e promocionais dos representantes das indústrias por correio ou pessoalmente. Desde que houve a proibição da veiculação desses produtos nos meios massivos de comunicação, os profissionais de saúde tornaram-se o alvo preferido das grandes empresas por seu poder multiplicador.
LEITE MATERNO: ALIMENTO SEGURO
Para os 140 milhões de bebês que vêm ao mundo a cada ano, a amamentação tem um papel essencial na garantia da segurança alimentar. Até os seis meses de idade, os bebês não têm necessidade de nenhum outro alimento, nem sequer de água ou chás. Após esse período, mesmo com a introdução de novos alimentos, o aleitamento continua a ser a maior fonte de proteínas, vitaminas, minerais, ácidos graxos essenciais e fatores de proteção. José Vicente de Vasconcellos, presidente do Comitê de Aleitamento Materno da SOPERJ, destaca que “o objetivo é acrescentar, somar, e não substituir. Por isso, esta alimentação é chamada de complementar, em lugar de alimentação de desmame, como era antigamente”. Em média, o leite materno provê cerca de 70% das necessidades energéticas do bebê de 6-8 meses, 55% dos 9 aos 11 meses e 40% dos 12 aos 23 meses.
No entanto, a última pesquisa, realizada pelo Ministério da Saúde em 1999 nas capitais e no Distrito Federal, indicou que as crianças mamam exclusivamente no peito apenas 23 dias em média, quando o recomendado são 180 dias. Quando é inserido outro tipo de alimentação, a criança mama apenas nove meses, quando o ideal é até dois anos e meio.
Foto de Willian Santos
Daí a 14a edição da SMAM ter adotado o tema Amamentação e Alimentos da Família, focando suas ações não só na importância de se manter a amamentação até os dois anos e meio como também na construção de hábitos alimentares saudáveis, com a introdução de alimentos caseiros e diversificados. Dr. Marcus Renato de Carvalho, professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ, defende que é preciso evitar o uso de produtos industrializados, pois o aumento do risco de contrair doenças não se deve apenas à ausência de agentes imunológicos no leite artificial, mas também ao preparo inadequado, à falta de higiene e ao uso de água não-potável: “Devemos incentivar as mães a alimentar seus filhos com a comida já disponível em casa, sobretudo legumes e sucos de fruta. Afinal, além da garantia de que se trata de um alimento sadio, essa prática beneficia a produção local e valoriza a diversidade cultural, já que a dieta no país varia bastante de região para região. As famílias agricultoras, por exemplo, não necessitariam de dinheiro para comprar alimentos para seus filhos.”
DÉCADA DE 80 MARCA O INÍCIO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Apesar de ser muito baixo no Brasil, observa-se que o índice de aleitamento materno vem subindo desde 1980, quando foi lançado o primeiro Programa Nacional de Aleitamento Materno, de caráter multisetorial na promoção, defesa e apoio à amamentação, organizado em comitês participativos que aglutinaram vários Ministérios e a sociedade civil. Em 1988, a licença-maternidade passou de três para quatro meses. Nesse mesmo ano, criou-se a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras, representando mais um avanço ao frear a massiva inserção dos setores industriais transnacionais no mercado de alimentos infantis, e sendo atualizada em 2001 com a publicação da Portaria 2.051, do Ministério da Saúde.
A partir de 1992, o Brasil implementou o título de Hospital Amigo da Criança, atribuído pelo Ministério da Saúde aos estabelecimentos que seguem os 10 Passos (vide box abaixo). Hoje a iniciativa conta com mais de 300 hospitais em todo o país, concentrados sobretudo nas regiões Sul e Nordeste. Vale ressaltar que nenhum deles pertence à rede privada de saúde.
Todos os estabelecimentos que oferecem serviços obstétricos e cuidados a recém-nascidos deveriam:
1. Ter uma norma escrita sobre aleitamento, que deveria ser rotineiramente transmitida a toda a equipe de cuidados de saúde;
2. Treinar toda a equipe de cuidados de saúde, capacitando-a para implementar esta norma;
3. Informar todas as gestantes sobre as vantagens e o manejo do aleitamento;
4. Ajudar as mães a iniciar o aleitamento na primeira meia hora após o nascimento;
5. Mostrar às mães como amamentar e como manter a lactação, mesmo se vierem a ser separadas de seus filhos;
6. Não dar a recém-nascidos nenhum outro alimento ou bebida além do leite materno, a não ser que tal procedimento seja indicado pelo médico;
7. Praticar o alojamento conjunto – permitir que mães e bebês permaneçam juntos – 24 horas por dia.
8. Encorajar o aleitamento sob livre demanda;
9. Não dar bicos artificiais ou chupetas a crianças amamentadas ao seio;
10. Encorajar o estabelecimento de grupos de apoio ao aleitamento, para onde as mães deverão ser encaminhadas por ocasião da alta, no hospital ou ambulatório.
Fonte: www.aleitamento.com
Em 2001, a Organização Mundial de Saúde conferiu o Prêmio Sasakawa ao Brasil pelo reconhecimento do impacto causado na saúde pela sua rede de bancos de leite humano, a maior e mais complexa do mundo.
AÇÕES QUE FAZEM A DIFERENÇA
Ainda que as políticas públicas representem um progresso, também é importante destacar o papel dos movimentos civis na criação e, principalmente, na implementação dessas políticas.
Para o Dr. Marcus Renato, as leis brasileiras de incentivo à amamentação são muito avançadas, mas falta colocá-las em prática. “A SMAM é uma excelente iniciativa por ser abrangente e não culpabilizar a mulher, mas é preciso que o governo não restrinja suas ações à promoção desse evento e que volte a ouvir mais as reivindicações das organizações que representam a sociedade civil.”
A Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN – Brasil), por exemplo, é uma ONG que interviu de forma decisiva na Política Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno. Com 23 anos de atuação, congrega universidades, grupos de incentivo à amamentação e serviços de saúde.
O Grupo Origem, de Pernambuco, demonstra como organizações de base popular conseguem atingir ótimos resultados entre as comunidades mais pobres.
O que podemos fazer?
• Fazer com que os programas e grupos que promovem a amamentação incorporem a questão da saúde e de nutrição das mulheres como uma base prioritária.
• Incluir o aleitamento materno nos currículos de todos os níveis sobre nutrição.
• Promover intercâmbios de receitas locais de alimentos complementares.
• Participar de boicotes contra as empresas que preferem o lucro à redução da fome.
• Solicitar que Governos e ONGs, que trabalham com a questão da segurança alimentar, produzam também materiais educativos sobre a amamentação e organizem o apoio comunitário para as mães que amamentam.
• Lutar contra programas de distribuição de leite em pó às comunidades carentes.
• Lutar para que as campanhas contra a fome dêem especial atenção às necessidades de micro-nutrientes das mães que amamentam e de seus bebês.
Fonte: Originalmente escrito por Penny Van Esterik para a série de «Activity Sheets» da WABA. Traduzido e adaptado pelo Grupo Origem.
A Fundação Alcoa — braço social da Alcoa Alumínio, no Maranhão — financiou a construção e a compra dos equipamentos do primeiro banco de leite humano do estado. Além disso, injeta recursos regularmente e viabiliza as campanhas educativas para orientação das mães. A empresa também é responsável pelo custeio de camisetas e folhetos de divulgação do trabalho desenvolvido pelo banco, o que atrai um número cada vez maior de doadoras.
No entanto, não é qualquer patrocinador que é bem-vindo. Na visão de quem trabalha há anos em prol da amamentação, o patrocínio da Nestlé ao Programa Fome Zero do Governo Federal é simplesmente inaceitável, por se tratar de uma indústria que sempre comprometeu a prevalência do aleitamento materno.
Quando nos aprofundamos no assunto, aparecem outros dados interessantes. Ao contrário do que se poderia imaginar, o índice de amamentação mais baixo no Brasil é do Sudeste, região mais rica e desenvolvida do país. Isso se deve em grande parte ao histórico de governos negligentes com a questão da saúde, mas também à forte cultura do consumo, o que não se verifica com tanta ênfase nas famílias das áreas rurais. Além disso, houve uma inversão do perfil do público-alvo dos consumidores de alimentos industrializados. Antes, eram as mulheres das classes média e alta que formavam a clientela mais atraente para essas empresas. Hoje, apesar de os produtos infantis serem caros, são as classes mais baixas que garantem seus altíssimos faturamentos, pela falta de acesso à informação. As mães adolescentes são outro foco de preocupação, devido à falta de maturidade física e psicológica e à influência negativa das avós, que viveram no auge do desmame precoce.
Foto de Willian Santos
O meio ambiente também se beneficia com a prática do aleitamento. As mamadeiras, bicos e demais equipamentos relacionados à alimentação artificial requerem que se utilize silicone, vidro e plástico, material extremamente poluente, sem contar com os milhões de latas e toneladas de papel para as embalagens e etiquetas.
É essa multiplicidade de aspectos que leva os especialistas a afirmar que o aleitamento materno é um tema transversal que perpassa a saúde, educação, economia, direitos humanos e ecologia. Portanto, concentrar os esforços no empoderamento das mulheres e na elevação de sua auto-estima, pilares da amamentação bem-sucedida, é garantir a segurança alimentar em todos os níveis: doméstico, comunitário e nacional.
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Mais informações: CARVALHO, Marcus Renato de& TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases científicas. Ed. Guanabara Koogan.
Artigo publicado na Revista GIS # 4 – outubro de 2005 – www.ltds.ufrj.br/gis
A Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais é uma publicação científica gratuita, de periodicidade quadrimestral, do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ).