A relação entre posicionamento do prematuro no Método Mãe-Canguru e desenvolvimento neuropsicomotor precoce
Relationship between positioning of premature infants in Kangaroo Mother Care and early neuromotor development
J Pediatr (Rio J). 2006;82(6):475-80
Introdução
Com a evolução tecnológica em neonatologia dos últimos anos, as taxas de morbimortalidade de bebês prematuros têm caído. Entretanto, esses bebês necessitam de maiores cuidados em relação a seu atendimento1. O recém-nascido é considerado pré-termo quando apresenta idade gestacional (IG) inferior a 37 semanas (259 dias) e baixo peso quando seu peso for inferior a 2.500 g. Essa última característica, por si só, é uma das principais causas de mortalidade infantil2.
Em 1979, os doutores Héctor Martínez e Edgar Rey Sanabria, do Instituto Materno-Infantil do Hospital San Juan de Dios de Bogotá, na Colômbia, iniciaram uma transformação na visão da atenção a recém-nascidos prematuros e bebês de baixo peso promovendo uma abordagem mais humanizada. Foi então criado o Método Mãe-Canguru (MMC)3.
Esse programa de atenção humanizada à criança consiste na redução do tempo em que o neonato é mantido na incubadora, colocação da criança no colo materno em posição canguru e com contato pele a pele do bebê com a mãe, alimentação exclusiva no seio e no programa de acompanhamento do bebê. Além disso, são descritos dois posicionamentos utilizados no MMC: o decúbito ventral (DV) e o decúbito lateral (DL), sendo o primeiro mais amplamente utilizado e difundido3.
Halpern et al.4 afirmam que crianças nascidas com peso inferior a 2.000 g e crianças pré-termo apresentam maior incidência de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM). O prognóstico em relação ao desenvolvimento não é só decorrente das alterações clínicas apresentadas pelo bebê, mas também do tipo de atendimento médico recebido por essas crianças. Os conhecimentos existentes sobre o MMC e sua relação com o DNPM ainda são escassos, porém, de acordo com o manual técnico do método mãe-canguru, há uma estimulação sensorial e vestibular dos bebês prematuros sujeitos a esse método, o que viria a estimular o seu DNPM.
No bebê considerado a termo, a postura dominante é a de flexão das extremidades. Esse tônus flexor fisiológico é resultado da maturação do sistema nervoso central durante a vida fetal. Os pré-termos não apresentam a maturidade neurológica ou a vantagem de posicionamento prolongado no ambiente intra-uterino para auxiliar no desenvolvimento da flexão, fazendo com que eles apresentem uma hipotonia5.
Na busca da estabilidade postural ou da contenção no ambiente extra-uterino, o prematuro fixa-se através de uma hiperextensão inicial cervical que atuará bloqueando o desenvolvimento da mobilidade e co-contração dessa região. Essa estabilização postural anormal pode acarretar bloqueios seqüenciais nas regiões do ombro, pelve e quadris, determinando o atraso no desenvolvimento motor dos prematuros5.
A transição precoce ao ambiente extra-uterino cria um desafio ao bebê prematuro, que necessita se manter estável em um ambiente rico em estímulos. Sendo assim, a promoção de um ambiente mais estável a esses bebês é essencial para a facilitação do desenvolvimento normal da criança6. De acordo com Als et al.7, cuidados no desenvolvimento da criança durante o período neonatal influenciam positivamente no desenvolvimento neuromotor.
Sendo assim, é de extrema importância a intervenção precoce no prematuro através do MMC, porém há escassez na literatura quanto a informações sobre o melhor posicionamento do bebê. Este estudo teve como objetivo identificar as implicações neuropsicomotoras relacionadas ao posicionamento do prematuro em DV e DL, avaliando a postura adotada pelos bebês nessas posições.
Métodos
A população estudada foi composta por bebês prematuros nascidos no Instituto Materno-Infantil de Pernambuco (IMIP), sendo a pesquisa realizada na Unidade Mãe-Canguru (UMC) deste mesmo hospital. Os critérios de inclusão para a pesquisa foram: IG corrigida entre 32 e 40 semanas no ato de admissão na UMC, associada aos critérios de inclusão no MMC que, de acordo com o manual técnico do MMC8, seriam, com relação ao bebê, a estabilidade clínica, nutrição enteral plena (peito, sonda gástrica ou copo) e peso mínimo de 1.250 g ao ingressar no MMC.
Foram excluídos da pesquisa bebês que apresentassem as seguintes condições clínicas: hemorragia periventricular intracraniana graus III ou IV, hipóxia moderada ou grave, Apgar menor do que 7 no 5º minuto e peso menor que 1.000 g ao nascimento.
O estudo foi realizado em um período de 4 meses (julho a outubro de 2004), sendo incluídos na amostra da pesquisa todos os bebês que dessem entrada na UMC nesse período e que tivessem características compatíveis com as relatadas nos critérios de inclusão.
A população de bebês analisada foi dividida em dois grupos. No primeiro, denominado DV, os bebês foram posicionados em decúbito ventral; no segundo grupo, denominado DL, o posicionamento adotado foi o decúbito lateral, como observado nas Figuras 1 e 2. No período em que os neonatos não estivessem colocados no canguru, também estavam adotando o posicionamento referente ao grupo ao qual pertenciam no suave-encosto. As crianças que participaram de cada um desses grupos foram escolhidas de forma aleatória através de sorteio.
Figura 1 –
Bebê em decúbito ventral no canguru, podendo ser verificada sua postura através da faixa confeccionada em tecido tule
Figura 2 –
Bebê em decúbito lateral no canguru podendo ser verificada sua postura através da faixa confeccionada em tecido tule
As crianças dos grupos DL e DV foram avaliadas no primeiro dia de internação no MMC através da avaliação biomecânica e do exame neurocomportamental de Dubowitz. A avaliação biomecânica visou promover uma análise da postura adotada pelo bebê quando colocado no canguru em DL e DV. Para facilitar a visualização, foram utilizadas faixas nos mesmos padrões das utilizadas no IMIP, confeccionadas em tecido transparente (tule). Foram realizados registros fotográficos nas incidências ântero-posterior e perfil.
Os bebês foram submetidos a uma medição do enrolamento de seu tronco, através de uma adaptação realizada pelos pesquisadores, da técnica de medição da flexão toracolombar aplicada em pacientes adultos9. Essa adaptação foi denominada de grau de enrolamento. Os pontos de referência utilizados foram a vértebra cervical C7 e o espaço entre L4 e L5.
As medições foram realizadas com fita métrica. O bebê era, inicialmente, colocado em decúbito dorsal (DD) sobre o suave-encosto, sendo realizada a primeira medição. Posteriormente, o bebê era posicionado no canguru, em DV ou DL, de acordo com o grupo ao qual pertencia, e a medição era repetida. O primeiro valor, em DD, foi subtraído do segundo, no canguru, obtendo-se o grau de enrolamento do bebê, ou seja, o quanto que o bebê ganhava em enrolamento quando colocado no canguru, em DV ou DL, tendo como valor base a medição em DD.
Ainda no primeiro dia de internação, era aplicado o exame neonatal neurocomportamental de Dubowitz. Essa avaliação foi elaborada de forma a proporcionar um exame sistemático e rápido tanto para bebês prematuros como para bebês a termo. Uma vantagem desse instrumento é o mínimo de treinamento ou experiência requerido pelo pesquisador5. O exame é composto por 32 itens, dos quais dois avaliam habituação, 15 movimento e tono, seis reflexo e nove compõem os itens neurocomportamentais. Foram realizados apenas os itens do tópico movimento e tônus por estarem mais relacionados ao objetivo da pesquisa. No dia da alta, o exame foi novamente aplicado.
As variáveis a serem analisadas foram a postura do bebê quando colocado em DV e DL no canguru e o valor do seu grau de enrolamento, bem como os dados referentes à IG, peso, Apgar no 1º e 5º minutos e tempo de permanência (TP) na UMC. Além disso, tiveram-se ainda como variáveis os resultados do exame neurocomportamental de Dubowitz relacionados a tônus e movimento.
Os materiais utilizados para a realização da pesquisa foram: fita métrica, câmera fotográfica digital, ficha de avaliação biomecânica e do exame neurocomportamental de Dubowitz. A análise estatística dos resultados foi realizada através do programa Epi-Info versão 6.04, sendo os dados tabulados no programa SPSS 11.0. O intervalo de confiança foi de 95%, e o p foi significante quando apresentava um valor inferior a 0,05.
O anteprojeto da presente pesquisa foi enviado ao conselho de ética do IMIP no dia 02/04/04, e a pesquisa foi aprovada no dia 10/05/04. Conforme a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, durante a realização da coleta de dados, as mães foram esclarecidas sobre os objetivos e metodologia do estudo e, através do termo de consentimento livre e esclarecido, autorizaram a participação de seus bebês na pesquisa, bem como a realização das fotos.
Resultados
Foram avaliados 92 bebês no período de coleta de dados da pesquisa, porém 12 desses bebês não seguiam os critérios de inclusão ou não foi realizado o exame neurocomportamental no dia da alta. Sendo assim, o número da amostra utilizada na pesquisa foi de 80 bebês, sendo 40 no grupo DV e 40 no grupo DL.
As médias dos valores da IG em dias, peso em gramas, Apgar no 1º e 5º minutos e TP dos bebês na UMC em dias encontram-se na Tabela 1.
Tabela 1 –
Análise descritiva dos grupos DV e DL
Os dados expostos acima, relacionando DV e DL, foram submetidos a um teste de significância (teste t), no qual não foram identificadas diferenças estatisticamente significantes em relação aos dois grupos, ou seja, os grupos foram homogêneos entre si.
Análise biomecânica
A análise biomecânica dos bebês no canguru revelou a postura adotada pelos bebês em ambas as posições, DV e DL. Os bebês posicionados em DV tinham a cervical em extensão e rotação, os ombros em extensão e abdução, as escápulas em adução e os quadris em flexão e abdução; já o grupo DL apresentou uma cervical em flexão, os ombros em flexão e adução, as escápulas em abdução, e os quadris em flexão e adução. Em ambos os grupos, os bebês apresentavam-se com os cotovelos e joelhos em flexão.
Além dos dados descritos anteriormente, foi observado que os bebês do grupo DL apresentavam as mãos colocadas na linha média, o que não ocorreu com os bebês do grupo DV.
Quanto ao grau de flexão do tronco, observou-se que houve uma diferença estatisticamente significante (p < 0,05) dos valores do DL em relação ao DV, sendo a média do grau de enrolamento no grupo DV de 0,584 cm e, no DL, 2,056 cm.
Exame neonatal neurocomportamental de Dubowitz
Foi realizada uma evolução do bebê, através da comparação, em cada um dos grupos, dos dados obtidos no primeiro dia de internação na UMC com aqueles obtidos no dia de sua alta.
No grupo DV, dos 16 itens avaliados no Dubowitz, apenas cinco obtiveram diferença significante (p < 0,05) quando relacionados os dados iniciais e finais. No grupo DL, em 13 dos 16 itens avaliados, os resultados foram estatisticamente significantes (p < 0,05). Os itens nos quais foram observadas evoluções em cada um dos grupos encontram-se na Tabela 2.
Tabela 2 –
Itens do exame de Dubowitz nos quais foi observada evolução nos grupos DL e DV
Discussão
Análise biomecânica
Os resultados descritos na análise biomecânica demonstraram que as crianças, quando posicionadas em DL, apresentavam uma postura mais flexora e de maior enrolamento. Esses dois fatores são de extrema importância, principalmente aos prematuros, nos quais, pelo reduzido tempo passado no ambiente uterino, observa-se uma deficitária flexão fisiológica1. Percebeu-se que, na posição de lado, o bebê recria mais facilmente a postura adotada no ambiente intra-útero.
O grupo DL apresentou, de forma mais global, um enrolamento que, segundo Béziers10, é uma posição em que os diferentes grupos musculares do corpo se encontram colocados em posições favoráveis à coordenação motora. A autora também afirma que a qualidade da posição vertical depende da qualidade do enrolamento experimentado pelo corpo, sendo a ação do enrolamento-endireitamento uma garantia da harmonia e equilíbrio ântero-posterior do corpo.
A postura de enrolamento adotada pelos bebês do grupo DL seguiu o posicionamento fisiológico da curvatura vertebral presente nos fetos e neonatos, nos quais se observa uma curvatura única côncava e anterior resultante da postura flexora assumida pelo feto. As lordoses cervical e lombar desenvolver-se-ão apenas com o ganho pleno da extensão cervical e ao assumir a bipedestação, respectivamente11,12. A postura em DV levou o bebê a apresentar uma tendência à extensão em oposição à curvatura fisiológica. Esse fato, por si só, poderá acarretar implicações no desenvolvimento biomecânico desse indivíduo, porém outros estudos deverão ser realizados para confirmar tal fato.
De acordo com os resultados obtidos em pesquisa realizada por Douret13, os bebês posicionados em prono apresentaram anormalidades posturais como retração escapular, tendência à postura de opistótono, cotovelos em flexão, ombros em abdução e quadris em rotação externa, além de deformidades ortopédicas nos pés. Esses achados correlacionam-se com o padrão postural adotado pela amostra DV e evidenciado durante a avaliação biomecânica, ou seja, a postura estaria influenciando a posterior instalação do padrão descrito por Douret13.
Exame neonatal neurocomportamental de Dubowitz
Os resultados do exame de Dubowitz relataram um melhor desempenho do grupo DL, demonstrando uma maior evolução com relação ao desenvolvimento do tônus flexor global fisiológico aos recém-nascidos a termo. A postura assumida em DL, quando os bebês se encontravam no canguru ou no suave-encosto, permitiu, como descrito nos resultados da avaliação biomecânica, uma colocação dos membros superiores e inferiores em flexão, bem como uma postura de enrolamento do tronco.
Possivelmente, o posicionamento em DV não facilitou o desenvolvimento do tônus flexor, concordando com os achados de Vaivre-Douret14. Nesse estudo, a amostra de prematuros foi dividida em dois grupos: o controle, no qual os bebês eram posicionados apenas em DV, e o grupo tratamento, em que houve variação entre os posicionamentos em DD, DV e DL. Quando os dois grupos foram comparados após a intervenção, o principal resultado foi relacionado à avaliação postural. Foi observada uma incapacidade de posicionamento dos bebês do grupo controle em DL, em função da hipertonicidade extensora.
A estabilidade postural é um fator importante para o desenvolvimento do planejamento motor e da coordenação, sendo determinada pela atuação do tônus flexor, de forma a compensar a progressão normal do tônus extensor1. É a partir dessa estabilidade que a mobilidade é facilitada, promovendo as experiências motoras e estimulando o processo de aprendizagem e desenvolvimento15.
Com relação ao controle da cabeça, o grupo DL obteve resultados significantes tanto em relação ao controle de cabeça posterior quanto em relação ao anterior; já o grupo DV obteve resultados positivos apenas no controle anterior.
Os resultados obtidos na presente pesquisa diferem daqueles apresentados por Ratliff-Schaub et al.16. Nesse estudo, a amostra de bebês foi dividida em três grupos, em que cada grupo era posicionado em DD, DV ou DL. Nessa pesquisa, foi utilizada a escala de Bayley de desenvolvimento infantil, na qual o controle de cabeça posterior era avaliado da mesma forma que no exame de Dubowitz, com o bebê em posição sentada e cabeça pendente para frente. Os bebês do grupo DV apresentaram melhor desempenho em relação ao controle de cabeça quando comparados aos dos outros grupos. Os autores dessa pesquisa sugerem que musculatura cervical se apresenta mais forte nos bebês posicionados em DV, uma vez que, nessa posição, a criança tem mais oportunidade de praticar.
Contrariamente ao observado por Ratliff-Schaub et al.16, os resultados obtidos através desta pesquisa demonstraram melhor desempenho do controle de cabeça do grupo DL em relação ao DV. Possivelmente esse fator não está relacionado apenas à questão da prática, mas principalmente ao alongamento da musculatura extensora, facilitado através do posicionamento do bebê em DL. Como afirma Bly17, a postura flexora promove um alongamento da musculatura extensora, favorecendo, posteriormente, a sua contração e desenvolvimento da extensão ativa. A extensão ativa, por sua vez, favorece um alongamento dos flexores, facilitando o desenvolvimento posterior da flexão ativa.
Através dos dados obtidos na presente pesquisa, pressupõe-se que a utilização da posição em DL resultou em maiores benefícios com relação ao desenvolvimento neuromotor para a população de bebês estudada na UMC. Porém, como não houve um acompanhamento a longo prazo do desenvolvimento dessas crianças, os resultados observados podem ter sido precoces. Por isso, é importante a realização de novas pesquisas que promovam um acompanhamento mais prolongado.
Ainda assim, a pesquisa foi importante de forma a ampliar as opções de posicionamento do prematuro no MMC. Sugere-se que novos trabalhos venham a verificar os resultados quando há um seguimento desses bebês, bem como quando os bebês variam de posição entre o DV e o DL. Novas pesquisas são necessárias de forma a promover um embasamento científico mais amplo em relação à questão do posicionamento no canguru.
Todo o estudo foi baseado em informações advindas de artigos ou livros nos quais foi abordada a questão do posicionamento relacionado ao desenvolvimento motor; contudo, nenhum deles tinha como enfoque a posição canguru. Com isso, percebe-se a necessidade de uma maior produção na literatura científica, de forma a otimizar o atendimento com bases cientificas.
O estudo ressalta a importância do fisioterapeuta na atuação precoce a esses prematuros, através de uma visão completa da questão biomecânica e neuropsicomotora, sendo este um importante agente facilitador do desenvolvimento dessas crianças.
Juliana Barradas – Fisioterapeuta. Pós-Graduanda (Especialização) em Fisioterapia em Pediatria e Neonatologia.
Antonietta Fonseca – Orientadora. Fisioterapeuta. Mestre em Fisiologia. Docente, Faculdade Integrada do Recife (FIR), Recife, PE.
Carmen Lúcia N. Guimarães – Co-orientadora. Fisioterapeuta. Pós-Graduanda (Especialização) em Fisioterapia em Pediatria e Neonatologia.
Geisy Maria de S. Lima – Co-orientadora. Mestre em Pediatria. Chefe, Unidade Neonatal, Instituto Materno-Infantil de Pernambuco (IMIP), Recife, PE.
Correspondência:
Juliana Barradas
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