Paraguaçu Paulista SP, 15 de janeiro de 2004.
Exmo. Sr.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Presidente da República do Brasil
Senhor Presidente,
45% do valor de um salário mínimo é quanto uma família brasileira precisaria dispor, todos os meses, para alimentar uma criança com mamadeira, nos primeiros meses de vida, calculando apenas a compra do leite artificial.
Se considerarmos que poucas famílias podem dispor desse valor, e que muitas delas também não têm condições sanitárias em suas residências, o que as nossas crianças, não alimen-
tadas ao seio materno, estão recebendo é uma mistura letal de água contaminada e leite excessivamente diluído.
O declínio da prática da amamentação está diretamente relacionado à promoção de leites artificiais e mamadeiras.
Por isso, vimos manifestar nosso repúdio à participação de empresas, como a Nestlé, no Programa Fome Zero.
Caso nossa solicitação seja atendida, não será a primeira vez que se recusa o apoio da Nestlé. Recentemente, o “Fundo Nelson Mandela para as Crianças”, da África do Sul, recusou a fortuna de quase um milhão de dólares (US$ 905,000.00) desta empresa. E esta não foi a primeira vez. Em 2000, Mandela já havia se negado a receber apoio financeiro da Nestlé, por reconhecer que existe um conflito de interesses. (Relatório completo, sobre este evento, pode ser encontrado no site www.babymilkaction.org).
Já nos dirigimos a V. Excia, por meio de carta datada de 03 de março de 2003, na qual expressamos nossa preocupação quanto à participação da Nestlé no Programa Fome Zero. A resposta que recebemos do Gabinete do Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, assinada pelo Sr. Sergio Paganini Martins, MD Secretário de Planejamento Estratégico e Gestão do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, Ofício nº 1127 SPEGF/MESA dia 17 de junho de 2003, não atendeu às nossas expectativas.
A Organização Mundial da Saúde estima que, em todo o mundo, um milhão e meio de mortes infantis poderiam ser evitadas através da prática do aleitamento materno. De acordo com pesquisa realizada por brasileiros, o risco de morrer antes de completar um ano de idade é 14 vezes maior entre crianças alimentadas artificialmente, comparativamente àquelas que são mantidas em aleitamento materno.
Nos últimos 20 anos, órgãos governamentais, ONGs, instituições religiosas e empresas têm lutado pelo resgate da prática da amamentação no Brasil, inclusive através do controle da propaganda e promoção desses produtos.
Infelizmente, ao aceitar uma parceria com uma grande multinacional produtora de alimentos infantis – a Nestlé – o Programa Fome Zero desconsidera tudo o que foi feito até hoje e, optando pelos supostos benefícios imediatistas de distribuição de alimentos, prejudica ações sérias de promoção do aleitamento materno, que visam mudanças estruturais e que terão muito mais impacto positivo para a saúde pública.
Dessa forma, nós da Rede IBFAN, discordamos, com veemência da participação da Nestlé no Programa Fome Zero e queremos expressar nossa profunda preocupação com os efeitos danosos que doações de indústrias de alimentos infantis, largamente alardeados na mídia, podem causar às ações de promoção da amamentação no Brasil, a médio e longo prazos.
As taxas de amamentação, no Brasil, embora tenham melhorado muito desde meados da década de setenta, ainda deixam a desejar. Ainda assim, chegar aos índices atuais não foi tarefa simples, exigindo grandes investimentos por parte do Ministério da Saúde e de muitas Secretarias Estaduais e Municipais, ao longo das últimas duas décadas.
No momento, talvez pareça inquestionável para o V. Excia aceitar tamanho apoio financeiro por parte dessa multinacional, considerando que, com esse apoio, o Programa Fome Zero poderá matar a fome imediata de muitas famílias, mas queremos lhe assegurar que no futuro o custo dessa atitude pode ser incalculável e extremamente danoso para as crianças brasileiras.
A presença de empresas como a Nestlé, no programa Fome Zero, traz benefícios apenas para a própria empresa. A participação em si já é uma estratégia de marketing, aumenta seu prestígio e ajuda a construir sua boa imagem. Essa situação é ainda mais grave quando sabemos da atuação desrespeitosa dessa mega-empresa em vários países, com relação ao Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno.
Está muito claro o conflito de interesses presente nessa relação da Nestlé com o Governo Federal. O súbito ímpeto colaborativo dessa Empresa pode ser explicado pela necessidade de ver aprovado, no CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), a compra da Empresa Alimentícia Garoto, assim como garantir o silencio das autoridades frente à explo-
ração das fontes naturais de água mineral, em São Lourenço.
Em nenhum país do mundo, empresas multinacionais podem ser consideradas Sociedade Civil, por razões óbvias. Não é coerente, que se aceite a participação de empresas como esta em um programa que visa a recuperação nutricional da população, se o próprio Ministério da Saúde recomenda a amamentação exclusiva durante os seis primeiros meses de vida do bebê e a manutenção do aleitamento materno até os dois anos de idade ou mais. É fundamental que o Programa Fome Zero incorpore e siga essa recomendação, evitando contradições e conflitos de interesse.
A REDE IBFAN BRASIL atua no país há 23 anos, agregando vários grupos de cidadãos e profissionais de saúde em 19 estados brasileiros e vem, neste período, colaborando com o Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, em programas e projetos de proteção, apoio e incentivo ao aleitamento materno.
Estaremos sempre à disposição de V. Excia e do Governo Federal para contribuir para a melhoria da qualidade de vida das nossas crianças. No entanto, voltamos a solicitar que considere nosso ponto de vista e reveja essa parceria estabelecida com a Nestlé.
Continuaremos lutando, juntamente com amigos de todo o mundo, contra a presença dessa indústria multinacional em nosso governo popular, porque acreditamos que a esperança vence, não somente o medo, mas também o poder econômico e a arrogância multinacional.
Respeitosamente,
Maria Josy Gonçalves Pereira
Coordenação da Rede IBFAN Brasil
Conselho Consultivo Interno
Ana Júlia Colameo – São Paulo SP
Beatriz Souza Dias – Assis SP
Carla Bethânia de Mesquita Lima – Maceió
Celina Valderez Feijó Kohler – Porto Alegre RS
Evanguelia Atherino Santos – Florianópolis SC
Kleyde Ventura de Souza – Curitiba PR
Marina Rea –São Paulo SP
Raquel da Rocha Pereira – Joinville SC
Tereza Setsuko Toma – São Paulo SP
Valderez Aragão – Salvador BA
Com cópia para :
ABONG (Associação Brasileira de ONGs)
Academia de Desenvolvimento Social
Ação da Cidadania Contra a Fome e Pela Vida
Action Aid Brasil
Agência de Notícias Andi
Agende – Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento
Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Baby Milk Action (Reino Unido)
CACES – Centro de Atividades Culturais, Econômicas e Sociais
CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)
CARE Brasil
Caritas Brasileira
CEMICAMP – Centro de Pesquisa das Doenças Materno-infantis
Centro Josué de Castro
CEPIA – Cidadania Estudo Pesquisa Informação Ação
CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviços)
Christian Aid (Reino Unido)
CMB – Centro da Mulher Brasileira
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
Conselho de Nutrição
CONSEA
Consumers International (CI)
Cordaid (Holanda)
EED – Serviços de Igrejas Evangélicas na Alemanha para o Desenvolvimento
EZE (Alemanha)
FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations)
Fórum Nacional de Segurança Nutricional e Alimentar
Fundação Carlos Chagas
Fundação Ford
Fundação Heinrich Böll
Fundação John D. and Catherine T. MacArthur
Fundação Vitae
Grupo de Mulheres da CUT Central Única dos Trabalhadores
Grupo Italiano Amigos do Programa Fome Zero
IBASE
IBFAN Internacional (189 Grupos)
IBFAN Nacional (33 Grupos)
ICCO (Holanda)
IDAC – Instituto de Ação Cultural
IDEC – Defesa do Consumidor
ILCA – International Lactation Consultant Association (EUA)
Instituto Ethos
La Leche League (55.000 membros)
MLAL – Progetto Mondo (Itália)
Movimento de Mulheres para o Exercício da Cidadania
NOVIB – Oxfam Holanda
OPAS – Organização Panamericana da Saúde
Oxfam (Reino Unido)
PROCON – Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor
Rede Nacional de Saúde e Direitos Reprodutivos
REDEH – Rede de Defesa da Espécie Humana
REHUNA (Rede Nacional de Humanização do Nascimento)
Rede Mulher de Educação
RITS – Rede de Informações do terceiro Setor
Save the Children
Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social
Sociedade Brasileira de Pediatra
THEMIS – Asses. Jurídica e Estudos de Gênero
Trocaire (Irlanda)
União Brasileira de Mulheres
Unicef
Union Fédérale des Consommateurs (UFC)
Visão Mundial
WABA – World Alliance for Breastfeeding Action (presente em 120 países)
W.K. Kellogg Foundation