O ano em que N´ e a Sociedade de Pediatria renovaram os votos de uma longeva parceria
Por Mariana Costa do Joio e o Trigo – Jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder
Curso N´ encerra ano marcado por investida da empresa sobre profissionais de saúde e contra diretrizes alimentares oficiais do Brasil
Em meio à comemoração de seu centenário no Brasil, a N´ encerra 2021 renovando os votos de um longevo e bem-sucedido relacionamento com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Uma parceria que tem se revelado estratégica para os esforços de minar os efeitos de políticas alimentares oficiais do país, notadamente do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, lançado em 2019 pelo Ministério da Saúde.
Aproveitando-se das restrições impostas pela pandemia, a N´ investiu com força em cursos, workshops e eventos online voltados à formação de profissionais de nutrição e medicina infantil, contando com o apoio da entidade que representa 25 mil pediatras no Brasil. No meio pediátrico e entre profissionais de saúde que lidam com alimentação infantil, é notória a solidez desse relacionamento, um casamento bem-sucedido que já dura quase 80 anos.
Aparentemente alheia às crescentes discussões sobre conflito de interesses, em junho deste ano a SBP renovou o apoio ao curso Jovens Pediatras Nestlé. A edição anterior oferecia isenção de anuidade e bolsas em pós-graduação no exterior, o que motivou um abaixo-assinado com cerca de 7 mil assinaturas de médicos e famílias contrários à influência da empresa sobre jovens profissionais, como mostramos no Joio. O bônus da anuidade foi retirado na segunda edição, mas o apoio se manteve.
O ano de 2021 também foi marcado pelo lançamento de ao menos três publicações da SBP que ignoram e contrariam as diretrizes oficiais do país nesse tema. A N´, tradicional parceira da instituição nesses materiais, aparece em uma delas: “Temas da Atualidade em Nutrologia Pediátrica”, lançado em maio, como também mostramos no Joio.
Mas a cereja do bolo sabor conflito de interesses veio no fechamento do ano, com o retorno do 71º Curso Nestlé de Atualização em Pediatria, depois de sete anos sem ser realizado. O evento aconteceu entre os dias 25 e 27 de novembro, paralelamente à retomada do Prêmio Henri Nestlé, um concurso voltado a estudantes, profissionais e pesquisadores. Na última edição, o vencedor ganhou uma viagem ao Nestlé Research Center, na Suíça, além de premiação em dinheiro, troféu e certificado.
“Um dos maiores eventos de pediatria está de volta para celebrar os 100 anos da Nestlé no Brasil”, anunciou a empresa. Além da SBP, outras três organizações médicas e científicas apoiam e integram o comitê científico do evento: a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), a Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) e a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN), as duas últimas tradicionalmente ligadas à indústria de alimentos infantis.
Até a última edição, em 2014, o curso era realizado de forma itinerante em diferentes regiões do Brasil, sempre com inscrição gratuita. Dessa vez aconteceu de forma virtual ampliando, portanto, seu alcance e capilaridade.
A iniciativa marca, ainda, o lançamento de mais uma plataforma digital direcionada a médicos, nutricionistas e profissionais de saúde: a Casa de Conhecimento Nestlé, “uma plataforma digital exclusiva, 100% online, que permitirá trocas de experiências em diversos ambientes interativos, conectando inovação e ciência através de conteúdos de alta qualidade”.
Nas redes sociais, a Nestlé comemorou a inscrição de mais de “5 mil profissionais”, que terão acesso ao conteúdo oferecido por mais de 70 palestrantes. Em um dos posts da página Pediatria Nestlé no Instagram, centenas de comentários comemoram a retomada do curso, uma prova de que as discussões sobre conflito de interesses ainda estão longe do dia a dia dos consultórios ou, em uma perspectiva mais otimista, houve um esforço em omitir eventuais críticas.
Uma relação simbiótica que já dura quase 80 anos
Assim, a Nestlé encerra o ano de seu centenário expressando gratidão e renovando o investimento em uma parceria que se confunde com sua própria trajetória no Brasil, quarto maior mercado da empresa e peça-chave no futuro da gigante suíça.
Os primeiros movimentos nesse sentido remontam aos anos 40 do século passado. Mais especificamente, em 1947, quando houve a primeira Jornada Brasileira de Puericultura e Pediatria, organizada pelo Departamento Nacional da Criança, órgão do então Ministério da Educação e Saúde, com o apoio da SBP e o patrocínio da Nestlé. Os participantes ganharam da marca uma viagem a Petrópolis e ouviram o discurso do presidente da empresa.
Imagem: Anúncio sobre Curso Nestlé de Atualização em Pediatria (O Globo, 1958 – pesquisa feita por Flavia Regina da Silva Campos/Unirio).
Esse movimento de aproximação com a SBP foi se intensificando nos anos seguintes, com a criação dos cursos Nestlé de atualização pediátrica, atualmente em sua 71ª edição.
Em 1958, o então diretor geral da Nestlé Oswaldo Ballarin recebeu da SBP o título de sócio benemérito. Dois anos depois, em meio à comemoração dos 40 anos de atividade da empresa no Brasil, a SBP ganhou da Nestlé uma nova sede. Naquele mesmo ano, houve a distribuição de materiais didáticos a faculdades voltadas para o ensino de pediatria.
Jornal de Pediatria, SBP, 1972 (imagem cedida pelo Prof. Marcus Renato Carvalho).
De lá para cá, foram inúmeros os exemplos de conflito de interesse envolvendo as duas partes.
Ter médicos a favor e influenciar a prática clínica
É grande o esforço dessas empresas em evocar uma imagem de autoridade em saúde, nutrição e bem-estar entre esses profissionais e a sociedade de um modo geral. Ter médicos a favor é uma das mais efetivas técnicas que a indústria de alimentação infantil adota, no Brasil e no mundo, para promover seus produtos e ganhar credibilidade.
“É um escândalo essa relação tão íntima, mas já foi pior. Sou membro do Comitê de Lactância Materna da Associação Latino-Americana de Pediatria e percebo que outras sociedades nacionais não permitem esse financiamento da indústria como temos no Brasil”, alerta o médico Marcus Renato de Carvalho, consultor em Aleitamento Materno e professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele chama a atenção para o conceito de endosso por associação, “que é quando no site, nos eventos e publicações aparece só a marca da indústria, e não os produtos, mas o ‘vínculo promocional’ está feito”.
Em teoria, esses cursos oferecem aperfeiçoamento profissional, mas na prática acabam sendo usados como um instrumento para influenciar a prática clínica e estimular o consumo de produtos da marca.
Integrante de importantes associações médicas e considerada uma autoridade em pediatria, alimentação e nutrição infantil, a médica Márcia também faz duras críticas ao que chama de relação promíscua. “A SBP não faz nada sem parceria. É essa conduta de venda da opinião de autoridade que precisa ser atacada. Porque a N´ é apenas uma delas. Não adianta tirar a N´ e a promiscuidade continuar. A filosofia da SBP precisa mudar”, desabafa. “O meio médico é muito complicado. Poder e dinheiro acabam sendo os únicos valores”, critica Márcia, que não quis se identificar por temer represálias.
A SBP tem hoje 25 mil associados e dispõe de regionais em todos os estados do Brasil. Para se associar, é preciso pagar R$ 430 ao ano. “Com número tão grande de associados, é incrível que a SBP ainda dependa dessas indústrias”, avalia Fernando Lamarca, conselheiro do Conselho Regional de Nutricionistas da 4ª Região (CRN-4) e professor do Departamento de Nutrição Aplicada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
“Na prática clínica, essa questão dos patrocínios, brindes, jantares, congressos patrocinados e viagens é tida como um sinal de status. Significa que você é um bom profissional, reconhecido pela indústria, que sabe que você é bom tecnicamente e se destaca entre seus pares. A indústria quer você próximo, quer sua chancela”, explica o professor, que vem orientando um número crescente de trabalhos sobre conflito de interesses e ministrará, no próximo semestre, a primeira disciplina sobre o tema na Unirio. As 20 vagas se esgotaram rapidamente, e a intenção é abrir para estudantes de outros cursos, inclusive Medicina.
Portas abertas
Mas a Sociedade Brasileira de Pediatria também tem se mostrado aberta a outras marcas de alimentação e nutrição infantil. Lançado em outubro, o Guia Prático de Alimentação da Criança de 0 a 5 anos deu espaço para a Reckitt, dona das marcas Enfamil, Enfagrow e Sustagem Kids, após a compra da Mead Johnson, em 2017.
A abordagem foi similar à de publicações anteriores, em que o nível e o propósito do processamento dos alimentos foi desconsiderado e a alimentação é vista sob uma perspectiva nutricionista. Lá está a velha pirâmide alimentar, já superada nos estudos mais recentes de alimentação e nutrição, como também já mostramos no Joio.
Não por acaso, o novo material produzido pela SBP traz um capítulo inteiro dedicado às fórmulas e destaca os “ingredientes opcionais”. Entre eles, aparece o MFGM, sigla em inglês para membrana do glóbulo de gordura do leite, um ingrediente patenteado pela Reckitt/Mead Johnson em 2018. A publicação da SBP foi lançada cerca de um ano após a mais recente tentativa da empresa de pleitear, sem sucesso, à Anvisa permissão para usar o nome MFGM nas embalagens de suas fórmulas.
Nos países onde as restrições à venda de fórmulas são mais brandas ou inexistentes, a empresa propagandeia que a combinação do DHA (outro nutriente muito explorado pela indústria) com o MFGM produz benefícios no desenvolvimento cognitivo e cerebral “similares ao leite materno”. Por aqui, a solução encontrada foi buscar o endosso da SBP, ainda que isso apareça nas entrelinhas ou de forma enviesada, como acontece no capítulo dedicado à amamentação.
Os autores do Guia atribuem QI mais altos em adolescentes e adultos que foram amamentados devido ao efeito de ácidos graxos ômega-3 e ômega-6, DHA e ARA . “Dentre os demais componentes que apoiam o desenvolvimento cerebral destacam-se compostos bioativos como gangliosídeos e fosfolipídeos, presentes na fração lipídica do LM e, especificamente, na membrana dos glóbulos de gordura”, afirmam no material da SBP.
Esses nutrientes são uma grande aposta dos fabricantes de fórmulas na tentativa de mimetizar, ou seja, imitar os benefícios do leite materno. “Inteligência é multifatorial, e o que mais se relaciona a esse desfecho é responsividade do ambiente e oportunidade de ação da criança, afeto e apoio dos pais, bem como ausência de estresse tóxico. Atribuir inteligência e desenvolvimento cerebral à nutrição somente é um conceito altamente errado e grave, porque abre precedente para o consumo desses produtos e dificulta o entendimento da verdadeira neuroplasticidade”, explica a pediatra Márcia.
Saem os alimentos, entram os nutrientes
Assim como nas outras duas publicações anteriores da SBP (Temas da Atualidade em Nutrologia Pediátrica e Fórmulas e Compostos Lácteos: em que diferem) que tratam do tema, o mais recente guia faz uma defesa velada do consumo de composto lácteo, usando como argumento riscos de deficiências nutricionais: “pode ser usado como parte de uma estratégia para aumentar a ingestão de ferro, vitamina D e ácidos graxos poli-insaturados, e diminuir a ingestão de proteínas em comparação com o leite de vaca não enriquecido.”
“O pediatra que não tem uma visão profunda sobre bioquímica, nutrição, imunologia e microbiologia do leite humano se sente convencido por essa abordagem. No seu consultório, é envolvido por técnicas de marketing, por uma comunicação pessoal daquela representante simpática e que tem sempre um convite para um evento ‘científico’ promovido pela indústria com a apresentação de um colega conhecido, docente de uma universidade” explica o médico e professor Marcus Renato de Carvalho.
Também já mostramos no Joio que compostos lácteos fazem parte de uma ampla gama de produtos feitos à base de derivados do leite (no mínimo 51%) e outros ingredientes, como açúcar, gorduras e aditivos alimentares. São bem diferentes das fórmulas, que estão submetidas à regulamentação da Anvisa e obedecem a critérios bem mais rigorosos na composição e na comercialização. No Brasil, em particular, brechas na regulamentação permitem que um produto de qualidade e custo inferior, mas acrescido de vitaminas e nutrientes, seja comercializado com rótulos enganosos e muito parecidos aos das fórmulas, normalmente dispostos lado a lado nas prateleiras.
“A gente não sabe o que acontece dentro dos consultórios e ambulatórios. Mas sabemos que a pressão [sobre os pediatras] é muito grande, fora a pressão psicológica de mães e pais vulneráveis que querem dar o melhor. Sem contar a piora do contexto econômico: vão para o mais barato e vão para o composto lácteo”, critica Thais Salema, professora do Departamento de Nutrição da Unirio.
Chama a atenção, ainda, que os autores da publicação da SBP não tenham utilizado resultados recentes do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), que apontam para uma redução significativa da anemia e carência de vitamina A em crianças de até 5 anos. Trata-se da primeira pesquisa de alcance nacional que analisou, entre outros indicadores, deficiências de micronutrientes em crianças menores de 5 anos. Sem patrocínio da indústria, a pesquisa foi coordenada pelo Instituto de Nutrição Josué de Castro da UFRJ, com financiamento do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e participação da Fundação Oswaldo Cruz, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Duas falas são certas de encontrar nesse discurso: a primeira é que as crianças não conseguem comer todos os nutrientes que precisam em um dia. Isso gera uma sensação de insegurança e de dúvida para os pais. Não falam em alimento, apenas em nutrientes”, explica o professor Fernando Lamarca. “O cientificamente comprovado também sempre aparece. E a gente questiona que ciência é essa? Que referências são usadas e como foram conduzidas? Quem financiou esses estudos?”, questiona.
Falta capacitação sobre aleitamento, sobram eventos e pesquisas sobre fórmulas
Nos currículos dos cursos médicos no Brasil, a educação em aleitamento materno varia muito.
“A formação médica atual é insuficiente em termos de conhecimento teórico e habilidades práticas. Os alunos entendem a importância do aleitamento materno, porém não se sentem preparados para enfrentar os desafios da amamentação e dar suporte às famílias, principalmente quando ocorrem dificuldades”, conclui a pediatra Cecília Freire de Carvalho Pinton, em um trabalho recente (TCC da Especialização em Aleitamento Materno da Passo1 – Piracicaba, SP) em que avaliou a qualidade do currículo das faculdades de Medicina no Brasil.
Essa lacuna poderia ser preenchida pelas sociedades e organizações de natureza científica, como sugere o professor Marcus Carvalho.
“Um bom exemplo são os esforços do Departamento Científico de Aleitamento Materno da SBP que promove cursos, seminários e publica periodicamente notas técnicas de documentos atualizando os profissionais. Esse departamento destoa da SBP como um todo, porque se mantém sem conflito de interesses”, pontua.
Entre os nutricionistas, essa discussão tem avançado bastante nos últimos anos, a tal ponto de o conselho profissional ter revisado seu código de ética, em 2018, proibindo patrocínios privados em congressos e eventos de cunho científico. “Não podemos generalizar porque há profissionais e entidades muito sérias. É preciso desnaturalizar certas práticas e entender que é possível ter uma atuação plena, com ética e compromisso social. Não apenas nessa área, mas na ciência de um modo geral. Temos que exigir e fomentar mais transparência dos autores desses estudos e das instituições”, conclui Fernando Lamarca.
Quem está nas salas de aula também sente alunos mais críticos e interessados em discutir o tema. Prova disso foi a grande procura pela nova disciplina sobre o tema na Unirio, cujas vagas se esgotaram rapidamente. “Acho que a revisão do nosso Código de Ética colocou mais freios nessa relação das corporações e indústrias, e provocou um olhar mais crítico dos professores e dos estudantes também”, avalia a professora Thais Salema.
Outro lado
Em nota, a SBP afirma que o apoio de empresas a seus eventos científicos, bem como atividades e prestação de serviços, ocorre de forma transparente e legal, não sendo permitido que isso influencie a atuação da entidade ou de seus filiados. “Todo patrocínio que ocorre nesta instituição centenária é feito de modo ético e as atividades científicas sempre baseadas em evidências atualizadas”, informa em nota enviada ao Joio.
Em um texto evasivo, a SBP se defende afirmando manter sua ampla defesa à prática da amamentação. “Prova disso são as várias ações conduzidas nos últimos anos, como a publicação e distribuição entre os pediatras de documentos científicos sobre o tema, a realização de eventos e curso de educação à distância para pediatras e profissionais de saúde de todo o País, demonstrando que em nenhuma outra gestão se fez tanto pelo aleitamento materno […] o tema tem sido debatido com diversas autoridades, a exemplo da licença-maternidade e de vários manifestos em prol da saúde de crianças e adolescentes, sempre na perspectiva de sua valorização.”
A entidade, no entanto, não respondeu por que as publicações mais recentes optaram por desconsiderar a classificação NOVA e as diretrizes oficiais de alimentação infantil. Também não houve resposta sobre em que consistiu o apoio do Grupo Reckitt no mais recente guia publicado pela SBP, muito menos se existe alguma regra para a participação dos titulares dos seus departamentos em eventos patrocinados pela indústria ou se há alguma política interna que defina se deve ou não haver apoio de empresas com conflito de interesse em suas publicações.
Veja a publicação original em https://ojoioeotrigo.com.br/2021/12/o-ano-em-que-nestle-e-a-sociedade-de-pediatria-renovaram-os-votos-de-uma-longeva-parceria/