Comer sem saber?
Tomates podem sofrer manipulação de seu DNA – o material genético dentro das células – para um amadurecimento mais lento, retardando assim a deterioração. O DNA do milho pode ser manipulado para criar um milho transgênico, que seja venenoso para insetos. E a soja transgênica, criada em laboratório, para resistir aos herbicidas despejados nas plantações, já está no mercado, sem que saibamos exatamente em quais alimentos. Por iniciativa do New York Times, foram testadas, em um laboratório privado, quatro fórmulas infantis (Similac Neocare, Enfalac Prosobee, Carnation Alsoy e Isomil). Todas elas, mesmo sendo alimentos para bebês, mesmo sem nada informar em seus rótulos, já continham a soja transgênica.
No final de Blade Runner, apaixonado, o personagem de Harrison Ford foge com uma mulher clonada. Ele tinha pleno conhecimento sobre a origem laboratorial da mulher e sobre os limites e os riscos biológicos dessa opção. Alguns interpretam até que ele era, e sem saber, também um policial clonado. Nós não. Nós temos origem natural e não-clonada. E, coerentes com os direitos fundamentais assegurados aos consumidores, queremos saber se nossa comida foi ou não geneticamente modificada.
Queremos que os rótulos informem, quando contiverem algum ingrediente produzido a partir desses organismos transgênicos. No entanto, esse nosso direito está em vias de ser desrespeitado. Basta ver as ocorrências da recente reunião do Comitê de Rotulagem, da Codex Alimentarius Commission FAO/WHO (Ottawa, 26 a 29/Maio/98).
1. Codex Alimentarius: o que é?
O “Codex” estabelece recomendações de normas de identidade e qualidade para alimentos, através dos trabalhos de seus comitês específicos (Rotulagem, Aditivos Químicos, Higiene, Leite e Derivados, Alimentos para Dietas Especiais etc.). E os Comitês são integrados por representantes dos países-membros. Nesta reunião do Comitê de Rotulagem, por exemplo, sem contar, dentre outros, os “observadores” de entidades como associações industriais, Consumers International e Greenpeace, estiveram presentes delegações de 42 países, sendo 7 deles da América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Cuba, México, Peru e Uruguai). O México esteve representado por 7 e o Brasil por 6 delegados, incluindo funcionários governamentais e técnicos de indústrias multinacionais como Monsanto, Kellogs e outras.
Assim como alguns outros países, o Brasil dispõe de um comitê nacional para coordenar a partici-pação nas reuniões do Codex. Esse comitê é integrado por representantes de vários ministérios (Saúde, Agricultura, Indústria e Comércio, Justiça e Relações Exteriores), bem como por dois repre-sentantes das indústrias alimentares e um representante dos consumidores (IDEC). As propostas de normas do Codex são previamente analisadas por esse comitê nacional, o qual prepara as instruções para posicionamento ou manifestações das delegações brasileiras nas reuniões internacionais.
2. Codex Alimentarius: como funcionam?
Integrar os comitês nacionais ou, quando inexistentes, trabalhar para que sejam instituídos, é assim um primeiro passo. Mas insuficiente, inclusive porque nas reuniões técnicas, é comum vermos um único representante dos consumidores frente um grande grupo hegemônico em defesa das indústrias.
No grupo que decidiu a posição brasileira, junto ao Comitê de Produtos Lácteos, que se reuniu em maio em Montevideo, dos 11 técnicos participantes, 9 trabalhavam para indústrias privadas. O que resulta disso? Ora, primeiro, no comitê nacional, os técnicos minutam as normas visando os lucros no mercado interno e, em seguida, os países membros se posicionam nas reuniões do Codex pensando em divisas e competitividade a nível internacional. Mais tarde, as normas, prontas, retornam aos países, e chegam aos ministérios da saúde, como se fossem inocentes recomendações da WHO, elaboradas com base na ciência, visando assegurar a proteção da saúde dos consumidores. E, com essa falsa aparência, tornam-se legislações sanitárias nacionais.
Um dos principais pontos da agenda de Ottawa era sobre Rotulagem de Alimentos Geneticamente Modificados. E, considerando que o comitê brasileiro decidira apoiar a posição norte-americana, de não informar o consumidor sobre a eventual origem transgênica de alimentos – o que contrariando a posição de avançados países europeus, viola um direito fundamental do consumidor – o IDEC decidiu se afastar da delegação brasileira. E optou por estar na delegação da C.I.
Durante a reunião, Julian Edwards, Diretor Geral da Consumers International, fez um firme pronunciamento, longamente aplaudido, destacando que: “The fundamental rights of consumers to information and choice have been recognised around the world(…) “. Mas as atividades da C.I. não se limitaram a pronunciamentos. Os quatro delegados (incluíndo ainda Diane McCrea e Lisa Lefferts) buscaram abrir diálogo com os representantes de todos os países. De um lado, distribuindo papers com informações e subsídios técnicos, no sentido de obter apoio para as posições em defesa da saúde do consumidor. E, de outro lado, procurando também entender como transcorre o processo decisório a nível interno de cada país, visando identificar alternativas para intervenções futuras.
3. Latinoamericanos: como se manifestaram?
Uma delegada de país latinoamericano, por exemplo, comentou, informalmente, que se absteria no ítem “Transgênicos”, pois não havia instruções específicas para a delegação se manifestar nesse ponto da agenda. No entanto, e surpreendentemente, durante os debates, um outro delegado peruano, vinculado ao setor industrial de refrigerantes, tomou o microfone para apoiar, enfaticamente, a posição norte-americana, contrária à informação ao consumidor.
Um dos delegados brasileiros ousou argumentar que: “informar no rótulo, que um alimento é transgênico, terminaria por assustar o consumidor, impedindo a compra ou consumo do produto”. Ou seja, o Brasil está defendendo, ostensivamente, que informações sobre origem e natureza dos alimentos devem ser sonegadas aos consumidores, para impedi-los de fazer opções, pois não estariam preparados para entender do que se trata…
Cabe ressaltar que não se trata apenas de uma opção gastronômica ou nutricional. Mesmo que um alimento transgênico não trouxesse nenhum risco à saúde, ainda assim existem outros fatores a reger a decisão do consumidor, uma vez que o assunto está também relacionado com aspectos éticos e religiosos, além de relacionado com as implicações ambientais dessas novas tecnologias.
4. Codex Alimentarius: como influir?
Para influir nas decisões, é imprescindível dispormos de uma sólida argumentação técnico-científica, para abordar cada um dos múltiplos e complexos aspectos bioquímicos, biológicos, químicos, microbianos e toxicológicos associados com cada produto a ser normatizado. Sabemos que muitos países não dispõem ainda de quadros profissionais, no setor Saúde, para atender essa demanda. E este é um ponto básico. As decisões devem ocorrer institucional e formalmente, em comitês oficiais e públicos, transparentes, com representantes de consumidores. E o setor Saúde deve estar tecnicamente capacitado para essa função. Esta parece ser nossa primeira reivindicação.
E? certo que cada país vive suas circunstâncias e experiências particulares, podendo e devendo ter u-ma opinião própria, sobre as normas alimentares; e que não é fácil, para o movimento de consumido-res, dispor de recursos humanos capacitados e disponíveis para tal função. Formar pessoal é então uma meta inadiável. E envolver as universidades, em projetos com tal objetivo,é também fundamental.
De toda forma, a Consumers International vem trabalhando previamente, sobre cada um dos temas em discussão na Codex Alimentarius Commission. Textos são frequentemente produzidos, propondo e justificando ajustes nas minutas de normas em preparação pelo Codex. E esses textos são divulgados via internet, internacionalmente, bem antes das reuniões dos Comitês. Assim, as entidades que ainda não dispuserem de técnicos, podem e devem fazer uso desses documentos da C.I. e, com ou sem adaptações às circunstâncias nacionais, encaminhá-los às autoridades, exigindo que sejam respeitados quando da definição do voto ou das manifestações de cada país.
5. Codex: para além dos transgênicos.
Normas para Alimentos Orgânicamente Produzidos, com atenção particular para os aspectos de rotulagem; normas para o uso de Health Claims nos rótulos; rotulagem de produtos alergênicos; uso do termo “vegetariano” em rotulagem; normas para sports and energy drinks… esses foram alguns dos outros importantes assuntos trabalhados pelo Comitê de Ottawa. E, em setembro, teremos, em Berlin, a reunião do Comitê de Nutrição e Alimentos para Regimes Especiais.
A norma para as Infant Formula, usadas para substituir o leite materno, será ali novamente apreciada. E também a norma para Alimentos Infantis Cereal Based. A Wemos Foundation, da Holanda, vem trabalhando sobre esse assunto, tendo promovido um seminário dentro do Congresso Mundial de Consumidores em Santiago e, mais recentemente, em maio, em Leiden. Também a C.I. já dispõe de documentos com sugestões para ajustes nas normas propostas no Codex.
Obter esses documentos, trabalhar sobre eles, intervir no processo decisório de cada país, isso temos que fazer, com urgência, para consolidar nossas ações ou, no mínimo, para exercitar o aprendizado para influir, positivamente, cada vez mais nas decisões nacionais e internacionais sobre a qualidade dos alimentos e, em especial, sobre as informações oferecidas nos rótulos.
Convidado a opinar aqui sobre a importância das organizações de consumidores participarem dos trabalhos do Codex Alimentarius – sobre as debilidades a superar, sobre alternativas para ações de lobby e sobre os elementos que os representantes técnicos devem dominar – me pareceu mais apropriado fazer antes este depoimento, tomando a reunião de Ottawa como exemplo. A partir dos fatos aqui relatados, seguramente, consumidores e militantes poderão imaginar desdobramentos, elaborando suas próprias respostas para aquelas questões.
Defensores dos transgênicos se assustam com rótulos que, informando a transgenicidade, possam assustar e afastar consumidores. Eu, pessoalmente, me assusto com gente que, sem susto, se julga capaz de manipular o código genético, mas se confessa incapaz de persuadir consumidores sobre a inocuidade sanitária e ambiental desse ato, preferindo fazê-lo escondido. Harrison Ford, super-herói em Blade Runner, fugiu com a mulher clonada. Ficou faltando ele comprovar seu heroísmo levando ela pra jantar transgênicos. Disso já não escapam os bebês que, não bastando se lhes negar o leite materno, recebem infant formula transgênicas nas mamadeiras. Talvez possamos reverter, ao menos isso, pelo menos isso, na reunião de Berlin.
Luiz Eduardo Carvalho ([email protected]), professor da Fac. de Farmácia da Univ. Fed. do Rio de Janeiro e consultor do IDEC/Brasil, integrou a delegação da C.I. em Ottawa, com apoio financeiro da Wemos Foundation (Holanda).