A via Láctea dos negócios
Escândalo nos EUA: As indústrias de fórmula infantis pressionaram a sociedade de pediatra americana (AAP) para que o governo não lance campanha publicitária com abordagem inédita sobre AMAMENTAÇÃO.
Deve ser horrível viver em um país, onde uma sociedade de pediatras é patrocinada por produtores de alimentos infantis.
Prof. Marcus Renato de Carvalho.
Matéria apresentada por Bee, sexta 19 Dezembro 2003
Três de novembro de 2003 foi um grande dia para o pediatra do Pronto Socorro do Alabama, Dr. Carden Johnston. Naquele dia, ele foi levado à posição de novo Presidente de 66.000 membros da Academia Americana de Pediatria (AAP), na reunião anual da prestigiosa organização, realizada em New Orleans. Esta foi a data também em que ele provocou o que emergiu como uma importante controvérsia ética, ao expor inadvertidamente a poderosa influência que um particular interesse empresarial parece ter na definição da política e da ação da AAP.
“Eu devo admitir que eu nunca imaginei que minha presidência começaria com tal barulho”, diz o Dr. Johnston, ao tomar conhecimento do debate que se deflagrou dentro de sua organização.
Em uma carta sobre o assunto, datada de 3 de Novembro, que o Dr. Johnston enviou ao Secretário do Departamento de Saúde e Recursos Humanos (DHHS), Tommy G. Thompson, expressa oficialmente a preocupação da AAP acerca da “abordagem negativa” da Campanha Pró-Amamentação da agência federal a ser brevemente lançada. O que o Dr. Johnston não mencionou em sua carta, entretanto, é que ele havia desenvolvido seu súbito e aparentemente urgente interesse nesse assunto não por meio de uma revisão clínica de última hora da literatura científica ou mesmo após ter consultado os renomados cientistas especialistas em lactação da AAP.
Na verdade, sua preocupação surgiu imediatamente após um agressivo lobby pessoal por representantes de um dos maiores patrocinadores da AAP, a indústria norte-americana de fórmula infantil fatura 3 bilhões de dólares po ano. Nos dias da reunião em New Orleans com os preocupados representantes da indústria de formulas, Johnston mencionou a considerável credibilidade e o impacto persuasivo da Academia Americana de Pediatria em um esforço explícito para sufocar a mais ambiciosa das iniciativas de promover a amamentação nos Estados Unidos.
“Alguns de nós da AAP há muito suspeitávamos que as companhias de formula infantil tinham esse tipo de acesso direto à liderança da AAP,” explica o Dr. Lawrence Gartner, um membro fundador da Academy of Breastfeeding Medicine e coordenador do Comitê de Aleitamento Materno da AAP. “As ações do Dr. Johnston revelaram a extensão dessa influência como eu nunca vi antes. Muitos médicos da AAP estão incomodados com isso.”
Refletindo as fortes opiniões de alguns membros da AAP entrevistados na semana passada, o Dr. Jay Gordon, pediatra e autor de vários livros sobre cuidado infantil, diz que sua opinião sobre as ações do presidente da AAP nessa matéria vão além do “incômodo.”
O Dr. Gordon relata que, em seu ponto de vista, o presidente da AAP “enfraqueceu e amputou (os anúncios da campanha) para ser conveniente aos fabricantes de fórmulas,” e “como resultado de sua indiferença com os bebês e famílias norte-americanas, mais crianças adoecerão e morrerão a cada ano. Eu quero que este ato de ganância, imoral e condenável possa ser punido criminalmente,” explica Gordon.
A Campanha que hoje inspira tal paixão entre os provedores de atenção à saúde pediátrica está sediada no Escritório sobre Saúde da Mulher (OWH) do DHHS, e faz parte dos trabalhos desde 2000. Oficialmente denominada “Campanha Nacional de Conscientização sobre Amamentação,” a criação final do projeto da OWH foi abarcada pela agência de publicidade McKinney+Silver, de Raleigh, Carolina do Norte, enquanto o projeto todo é supervisionado por The Ad Council, uma organização privada, não governamental, que produz, distribui e promove campanhas dos serviços públicos em nome de organizações beneficentes e órgãos governamentais.
Em 2002, o DHHS descreveu essa iniciativa pró-amamentação como um marketing social em meios de comunicação de massa com duração de 3 anos, ao custo de 40 milhões de dólares. Várias organizações representantes de consultores de lactação, médicos, enfermeiras, parteiras e ativistas da saúde pública alegam que o apelo de última hora da AAP ao DHHS impediu que o lançamento da campanha pudesse ocorrer este mês como programado. Além disso, parece que os representantes da indústria de formula infantil – beneficiada com o vazamento prematuro da informação sobre detalhes dos anúncios da campanha – sorrateiramente fizeram lobby sobre os membros do Conselho federal e de Propaganda para alterar o conteúdo e o tom dos anúncios.
De acordo com o Departamento de Aleitamento materno da AAP, pelo menos mil novos artigos médicos e científicos sobre amamentação e alimentação por mamadeira foram publicados nos últimos 4 anos. No todo, este enorme corpo de pesquisas revela resultados para a saúde da população dramaticamente diferentes entre crianças amamentadas e alimentadas artificialmente, mesmo quando controlados fatores sócio-econômicos e outros. Os novos anúncios da campanha foram desenhados para refletir essas pesquisas e impulsionar a amamentação à mesma categoria das preocupações de saúde, tais como fumo, uso de assento de bebês para carros, imunização e prevenção de DST/AIDS.
Os críticos ao ato do Dr. Johnston discordam fortemente que o tom dos anúncios do DHHS seja “negativo,” mas admitem que a nova campanha realmente traz uma forma fundamentalmente diferente de se enxergar o assunto peito-mamadeira. E se apressam a dizer, entretanto, que esta nova abordagem é completamente intencional. De acordo com os profissionais médicos que trabalharam na criação do conteúdo da nova campanha, os anúncios utilizam uma abordagem comercial (market-oriented) e com base em evidências, levando em conta pela primeira vez estratégias de comunicação comprovadas como aquelas que tiveram impacto positivo sobre outros comportamentos de saúde pública nos últimos anos.
De acordo com aqueles que os viram, os conteúdos dos anúncios são memoráveis como “Breastfeed: It’s too important not to,” (algo como “Amamente: é importante demais para não faze-lo”) e “Babies are born to be breastfed” (“Bebês nascem para ser amamentados”). Alguns anúncios usam também o humor, incluindo chamadas na TV que mostram uma gestante em um roller derby e montando um touro mecânico. Essas mensagens absurdas são usadas para enfatizar que assim como uma mulher não assumiria este tipo de risco quando grávida, as mães devem evitar os riscos quantificáveis para a saúde de seus bebês decorrentes da não amamentação.
“No meu entendimento, esta era para ser a primeira campanha nacional com enfoque sobre os riscos de não amamentar, ao invés dos benefícios de amamentar,” explica a Dra. Audrey Naylor, uma pediatra de San Diego e diretora executiva da Wellstart International, membro do Departamento de Aleitamento materno da AAP e ex-consultora sobre nutrição infantil da Organização Mundial da Saúde. “Isso marcaria definitivamente uma mudança significativa na maneira do tema ser apresentado ao público. A novidade é promover a amamentação como uma questão de saúde pública mais do que simplesmente uma escolha pessoal dos pais.”
A página da internet do Conselho de Propaganda, destinada a uma breve discussão sobre a campanha (planned DHHS breastfeeding campaign) oferece uma amostra dessa maneira diferente, comercial, de ver o assunto peito-mamadeira, declarando que “Babies who are not exclusively breastfed for at least 6 months will be more likely to contract asthma, allergies, and cancer.” (“Bebês não amamentados exclusivamente por pelo menos 6 meses terão maior chance de desenvolver asma, alergias e cancer”). Em campanhas anteriores esta declaração certamente seria “Babies who are breastfed will be less likely to contract asthma, allergies, and cancer.” (“Bebês amamentados terão menos chance de desenvolver asma, alergias e câncer”).
Em uma apresentação patrocinada pela Breastfeeding Task Force of Greater Los Angeles sobre a campanha, a agência McKinney+Silver foi cotada para transformar os anúncios, da criação de consciência para a criação da conversão.
“Mudar a linguagem de “Se você amamentar, seu bebê será mais saudável”, para “Se você não amamentar, seu bebê estará mais propenso a…,” anotou a McKinney+Silver na descrição da abordagem da campanha. A apresentação foi para anotar que enquanto a maioria das mulheres norte-americanas parecia informada sobre os benefícios da amamentação, poucas parecem conscientes das potenciais conseqüências do não amamentar seus bebês. “(Há) desvantagens não percebidas sobre a não amamentação. Muitos pensam que amamentar é como suplementar uma “dieta padrão com vitaminas. A fórmula, à revelia, é creditada com o status de ser “o padrão”.
Em muitas partes do mundo, anúncios de fórmula infantil dirigidos aos consumidores são proibidos da mesma forma que os anúncios da televisão para cigarros e licores em breve não serão aceitáveis nos Estados Unidos. Este controle mundial à propaganda de formula infantil deve-se à adoção em larga escala, por governos e indústrias fora dos Estados Unidos, do Código Internacional de Marketing dos Substitutos do leite Materno, conhecido como Código da OMS, de 1981.
Neste país, entretanto, há apenas uma pequena adesão ao Código OMS pelas entidades públicas e privadas e como resultado as propagandas de diferentes marcas de fórmula são uma parte onipresente no cenário dos meios de comunicação de massa nos Estados Unidos.
Em anos passados, várias agências governamentais, hospitais, e organizações privadas como a La Leche League International contestaram a propaganda de acessório para trenó empunhado pela indústria de fórmula infantil produzindo uma colcha de retalhos relativamente barata com um pequeno anúncio sobre os “benefícios da amamentação”. Entretanto, a campanha da amamentação do DHHS que agora sofre objeção do presidente da AAP seria o primeiro esforço nacional a utilizar um valor de produção de qualidade comercial para colocar a mensagem de saúde pública “breast is best” à altura dos anúncios bem sucedidos de fórmula infantil produzidos para a Madison Avenue.
Claramente, esta não era uma campanha que cairia bem para a indústria de fórmula infantil, que até agora trabalhou para criar uma situação vantajosa inigualável na qual se posicionou sempre como o porta-voz primário para seu principal competidor no mercado, a amamentação. E esta nova mensagem seguramente não é a única que eles querem projetar na consciência do público.
“Ironicamente, as companhias de fórmula infantil neste país podem dizer honestamente que eles gastam mais naquilo que chamam de “educação sobre amamentação” do que qualquer outra entidade,” explica Amy Spangler, enfermeira e consultora de lactação que atualmente coordena o Comitê de Aleitamento Materno dos Estados Unidos, um consórcio guarda-chuva de organizações de atenção à saúde interessadas em amamentação intimamente envolvidas no desenvolvimento da nova campanha do DHHS. “Eles também subsidiam muitas das pesquisas sobre alimentação infantil. O retorno para eles é que então conseguem manipular a mensagem, que sempre diz “A amamentação é melhor, mas…”. Sempre há um “mas” e a sugestão de que a amamentação é um tipo de “bônus” para os pais ao invés de uma norma.”
De acordo com algumas fontes da comunidade médica presentes nas reuniões durante o processo de planejamento da campanha de amamentação, os funcionários do DHHS repetidamente enfatizaram aos participantes que as mensagens específicas dos anúncios –que claramente levassem a controvérsias – precisavam ser “embargadas” até o lançamento oficial.
Amy Spangler participou de várias reuniões com funcionários do DHHS e da OWH para discutir a Campanha de Conscientização da Amamentação e diz que os funcionários federais e do Conselho de Propaganda incentivaram os participantes a evitar falar publicamente sobre o conteúdo dos anúncios antes de seu lançamento.
“Nunca foi especificamente dito que a necessidade de manter os anúncios ocultos até o seu lançamento tinha algo a ver com as companhias de fórmula infantil, mas acho que seríamos ingênuos em assumir que essa não era uma das razões,” explica Spangler.
Apesar dos avisos, entretanto, a indústria de fórmula infantil aparentemente teve acesso à maioria dos conteúdos dos anúncios, o que lhes possibilitou iniciar uma jornada intensiva e direcionada de lobby contra seu lançamento. Os funcionários do DHHS relutam em discutir as circunstâncias do vazamento prematuro dos anúncios, dizendo apenas que “uma pequena quantidade” de informação sobre a campanha foi acidentalmente divulgada na página de internet do Conselho de Propaganda durante o mês de Novembro. A Hipmama.com soube, entretanto, que funcionários do DHHS e do Conselho de Propaganda encontraram-se com representantes das indústrias de formula muitas vezes durante o outono, apesar dos colaboradores pró-amamentação terem sido instruídos por esses mesmos funcionários para se manterem calados com o objetivo de preservar a integridade das mensagens da campanha.
Além do mais, a maioria ou todos os verdadeiros anúncios foram mostrados a dúzias de participantes da conferência médica na Carolina do Norte em Outubro, algo que a porta-voz do Escritório da Saúde da Mulher, Christina Pearson, diz não ter sido autorizado pela agência ou mesmo não ser de seu conhecimento até a véspera do evento.
De acordo com várias fontes, os membros do Congresso começaram a ouvir reclamações dos fabricantes de formula infantil sobre a campanha a ser lançada na primeira semana de Outubro, mas foi na convenção da AAP em Novembro que a indústria conseguiu o que é provavelmente a maior arma no seu arsenal de lobby – a influência da Academia Americana de Pediatria – contra a campanha de amamentação.
“O motivo do sucesso da indústria de fórmula infantil é que eles costumam manipular os provedores do cuidado de saúde envolvendo-os com seu manto de credibilidade,” explica Amy Spangler. “A diferença neste caso é que o presidente de (uma companhia de fórmula infantil) não precisa enviar uma carta diretamente a um funcionário federal quando ele pode conseguir que o Presidente da Academia Americana de Pediatria o faça por ele.”
Os defensores da saúde pública e muitos médicos, enfermeiras, parteiras e consultores de lactação há muito têm criticado os confortáveis acordos financeiros entre os fabricantes de fórmula infantil e as importantes organizações médicas tais como a AAP, the American Medical Association, the American Academy of Family Physicians, e a American College of Obstetrics and Gynecology. A indústria de fórmula infantil – parte do lobby maior da indústria farmacêutica – também é reconhecida como um dos lobbies mais efetivos e poderosos do Congresso.
Os críticos dessa relação entre pediatras e produtores de fórmulas argumentam que como a indústria de fórmula infantil nos Estados Unidos – com vendas anuais de 3 bilhões de dólares – claramente tem um interesse comercial em influenciar a decisão dos pais sobre alimentação infantil, ela não deveria ter qualquer papel na elaboração de mensagens de saúde pública relacionadas ao seu competidor óbvio no mercado, a amamentação.
“Simplesmente não é apropriado que essas companhias tenham algo a dizer sobre as campanhas de educação em amamentação ao público,” comenta a enfermeira, consultora em lactação Marsha Walker, e Diretora Executiva da Aliança Nacional para Ação em Amamentação (NABA), um grupo voluntário de promoção da amamentação. “Seria como convidar um fabricante de cigarros a dizer algo sobre a mensagem da campanha anti-fumo patrocinada pelo governo.”
Christina Pearson, porta-voz do OWA discorda, entretanto, insistindo que o DHHS fez isso às claras e que a agência queria ouvir “todos os lados” a respeito desse tema.
Embora seja razoável perguntar quantos “lados” existem quando se fala de uma campanha de saúde pública que promove uma alternativa saudável, gratuita ou de baixo custo contra uma outra, menos saudável e cara, o presidente da AAP decidiu que sua organização tem lados. Em uma entrevista por telefone com a Hipmama.com, em 3 de Dezembro, o Presidente da AAP, Dr. Johnston, prontamente admitiu que foi abordado por representantes das companhias de fórmula infantil durante a convenção anual da AAP, na primeira semana de Novembro e chamado a participar de uma reunião “privada”, “não agendada” para discutir algumas preocupações da indústria com relação à campanha de amamentação planejada pelo DHHS. Diz que ele e 3 outros membros do comitê executivo da AAP, Dr. Joe Sanders, Dra. Carol Berkowitz, e Dr. E. Stephen Edwards, presidente anterior da AAP, reuniram-se por cerca de 45 minutos com “2 ou 3” representantes da indústria Ross Products “e talvez de uma outra empresa” para ouvir suas preocupações.
“Esta foi a primeira vez que eu ouvi falar sobre esta planejada campanha de promoção da amamentação,” diz o Dr. Johnston. “É triste, mas é a verdade. Eu não sabia que estavam em desenvolvimento até que essas pessoas nos contaram.”
O Dr. Johnston’s relata que seu interesse e conhecimento sobre a campanha do DHHS difere da versão publicada na edição de 4 de dezembro do The New York Times. Na matéria intitulada “Campanha de amamentação retardada na disputa sobre o conteúdo,” a repórter Melody Peterson escreve que os Drs. Johnston e Sanders “…disseram que eles tinham decidido enviar suas cartas antes dos executivos (da companhia de fórmula infantil) expressarem suas preocupações na conferência da Academia, realizada no mês passado em New Orleans.”
Na sua entrevista à Hipmama.com, o Dr. Johnston disse que ele ficou alarmado com o tom e as mensagens dos anúncios depois de ver as amostras apresentadas a ele por representantes da companhias de fórmula infantil em New Orleans.
“Eles nos mostraram mais de 10 e menos de 20 trechos de algo que pareciam ser anúncios. Minha impressão é que eram cópias de alguns dos anúncios,” diz o Dr. Johnston. “Muitos dos anúncios me pareceram simpáticos, mas compartilhei minhas preocupações sobre a abordagem negativa como um todo. Preocupou-me, assim como a eles, que pais cujos filhos tiveram câncer ou não se desenvolveram bem se sentissem culpados se não os tivessem amamentado.”
O Dr. Johnston diz que ele não achou inapropriado ou mesmo extraordinário que alguém com interesse comercial tivesse cópias antecipadas da propaganda de uma campanha federal multimilionária planejada de saúde pública, desenhada para convencer os norte-americanos a comprar menos de seus produtos.
“Eu nunca lhes perguntei onde conseguiram o material,” diz o Dr. Johnston. “Eu apenas tive a impressão de que suas relações dentro do DHHS eram melhores que as nossas na Academia. Eu realmente fiquei embaraçado por ser a primeira vez a tomar conhecimento dos problemas com esta campanha. Naturalmente, eles tinham que estar preocupados sobre assuntos que afetam seus acionistas.”
A Dra. Carol Berkowitz, que será a presidente da AAP em 2004-2005, confirma que ela também participou dessa reunião, entretanto em entrevista por telefone em 3 de dezembro, contou à Hipmama.com que a reunião estava anotada em seu programa pessoal da conferência quando ela chegou a New Orleans.
“A reunião estava na programação que me entregaram quando cheguei,” diz a Dra. Berkowitz. “Eu presumo que ela tenha sido marcada antecipadamente no escritório da AAP. Não vi nada de extraordinário nisso; eu participei de várias reuniões como essa quando estava lá e tenho sido amiga de vários representantes de fórmula infantil por anos.”
A Dra. Berkowitz diz que ficou preocupada com o tom dos anúncios tendo como base o que os representantes da indústria lhe contaram quando se encontrou com eles na convenção da AAP.
“Ao final da reunião, o Dr. Edwards perguntou o que eles queriam de nós e disseram que queriam apenas que tomássemos conhecimento da situação, ” relembra Berkowitz.
Aparentemente, a recém intensificada conscientização do presidente da AAP levou à ação quase imediata em favor da indústria de fórmula. Em uma carta datada de 3 de novembro –- embora a convenção da AAP ainda estivesse em curso em New Orleans e no mesmo dia que assumiu como Presidente – o Dr. Johnston assinou uma declaração dura ao DHHS colocando objeção à ostensiva campanha de amamentação ainda não divulgada, com base somente naquilo que lhe foi apresentado pelos lobistas da companhia de fórmula infantil.
Nessa carta, Johnston aponta que “chegou a seu conhecimento” que estava para ser lançada uma campanha e que formou suas opiniões “depois de rever a página de internet do Conselho de Propaganda.” Ele não menciona que sua preocupação fora, na verdade, provocada por uma reunião privada que ele acabara de ter com representantes da indústria de fórmula. O Dr. Johnston contou a Hipmama.com que, apesar de suas palavras na carta ao Secretário Thompson, ele não tinha certeza se vira pessoalmente a página da internet do Conselho de Propaganda antes de assinar a carta, e que ele não havia redigido o rascunho da carta; quem a fez foi a equipe do escritório da AAP em Chicago. Mas ele sentiu-se confortável em assinar seu nome na carta.
“Eu senti que era necessário enviar uma carta imediatamente porque as pessoas com quem me reuni disseram que os anúncios estavam para ser lançados em breve,” explica o Dr. Johnston. “Eles expressaram um senso de urgência e eu compartilhei de suas preocupações. Eu pensei que muitos de nossos membros ficariam incomodados se os anúncios fossem lançados naquele formato. Eu senti que precisava agir.”
Enquanto isso, membros do Comitê de Aleitamento Materno dos EUA e outros profissionais médicos interessados na campanha do DHHS não faziam idéia de que o novo presidente da AAP tinha tomado tal atitude. Contudo, dentro de uma semana da convenção da AAP, fontes simpatizantes do DHHS começaram a fazer contatos com profissionais médicos em todo o país e silenciosamente relatar que “algo estava acontecendo” com a campanha de amamentação.
“Começamos a ouvir das pessoas que as companhias de formula infantil estavam fazendo intenso lobby contra os anúncios do DHHS e outros escritórios do governo, incluindo o do Senador Bill Frist,” diz Marsha Walker, da NABA. “Eles diziam estar descontentes com os anúncios que falavam sobre as conseqüências da não amamentação ao invés de seus benefícios.”
Em meados de novembro, o Dr. Lawrence Gartner for a alertado pela equipe do DHHS sobre a existência da carta do Dr. Johnston enviada em nome da AAP. Gartner diz que ele estava muito preocupado que o próprio departamento de Amamentação da AAP não havia sido consultado ou mesmo notificado sobre o conteúdo da carta do Dr. Johnston ao Secretário Thompson, embora ele e seus colegas do departamento de amamentação tivessem participado da convenção da AAP. Depois de investigar o assunto, o Dr. Gartner sentiu-se compelido a enviar sua própria carta ao Secretário Thompson, assim como a todos os membros da AAP.
Em sua carta aos companheiros da pediatria em todo o país, o Dr. Gartner escreveu, ” Há muitos motivos para acreditar que (as companhias de formula infantil) estão passando por cima de tudo para conseguir que essa campanha seja enterrada ou, pelo menos, modificada para ser menos efetiva… Esse assunto é muito grave e levanta muitas questões acerca da liderança da AAP e a influência da indústria de fórmula sobre as atividades da AAP.”
Mardi K. Mountford, Diretor Executivo do Conselho Internacional da Formula, grupo que representa os interesses dos produtores de fórmula infantil se contrapõe à afirmação do Dr. Gartner de que a indústria tenta desacreditar ou retardar a campanha do DHHS.
“Nós incentivamos as mães a amamentar se puderem, mas não acreditamos que as mulheres precisam se sujeitar a táticas assustadoras como algumas que estão presentes nesses anúncios,” explica Mountford. “Nosso único interesse na revisão das chamadas científicas desses anúncios é que elas sejam acuradas de maneira que os pais recebam a informação que necessitam para sua tomada de decisão sobre o que é melhor para suas famílias.”
O comentário de Mountford destaca algo que os defensores da saúde pública notaram há muito tempo; sabe-se que as táticas da indústria de fórmula infantil ao fazer lobby contra iniciativas tais como a regulação de seus produtos pelo FDA, a padronização de ingredientes em seus produtos e agora, a campanha de amamentação do DHHS são notadamente similares às estratégias empregadas pelas companhias de tabaco nos anos iniciais do movimento de saúde pública anti-fumo.
De acordo com o PRWatch.org, a indústria de tabaco criou aquilo que se tornou conhecido como o Conselho para Pesquisa sobre Tabaco [Council for Tobacco Research (CTR)] em 1953, anunciando que a missão da organização era “descobrir se o fumo era perigoso…’” Durante os anos 1980, os memorandos internos da CTR revelaram que “o CTR na verdade trabalhou na “promoção dos cigarros, protegendo-os desses e de outros ataques,” por meio da “criação de dúvidas sobre os danos para a saúde sem, de fato, nega-los, mas defendendo o direito do público em fumar, sem de fato incentiva-lo a deixar essa prática.” Exatamente como a indústria de fórmula infantil hoje paga para muitas pesquisas sobre amamentação nos EUA, por muitos anos o CTR financiou a maioria das pesquisas sobre efeitos do tabaco sobre a saúde e tentou se projetar como uma corporação de cidadãos “preocupada” no início das campanhas anti-fumo do governo.
Enquanto a carta do Dr. Johnston ao DHHS referia-se apenas ao “tom negativo” nos anúncios, os lobistas da indústria fizeram contato com funcionários do DHHS e do Conselho de Propaganda desde a primavera de 2003 e insistiram que as pesquisas específicas sobre as quais algumas das mensagens dos anúncios se baseavam eram falhas. Christina Pearson, porta voz da OWH confirma que a indústria de formula levou suas preocupações aos funcionários do DHHS e admite que os anúncios agora foram modificados no sentido de retirar as referências a dados específicos que quantificam os maiores riscos para algumas doenças. Entretanto, ela diz que essa mudança de maneira nenhuma é resultado da pressão da indústria.
Várias fontes dentro do Conselho de Propaganda, que dependem fortemente do financiamento das companhias farmacêuticas que também produzem fórmula infantil – tais como a Mead Johnson – expõem de outra forma. Eles dizem que a Mead Johnson ameaçou suspender seus milhões do orçamento do Conselho de Propaganda se essas referências a números específicos de risco não fossem retiradas dos anúncios da campanha. O Conselho de Propaganda não quis comentar nessa reportagem, em vez de encaminhar todas as questões a Christina Pearson da OWH, que diz que sua agência não pode confirmar nem negar este alegado incidente.
De acordo com o Dr. Gartner, as reclamações da industria sobre o tom “negativo” dos anúncios, assim como seu questionamento da ciência que dá sustentação à campanha são na verdade intrigas e sinais vermelhos para retardar e afundar a campanha tanto quanto possível.
“Quanto mais negativo for o tom, mais bem sucedida serão as campanhas de saúde pública que dependem muito de tornar o público consciente sobre as conseqüências negativas de certos comportamentos. Embora essa seja uma nova maneira de abordar a promoção da amamentação ela é um tipo de propaganda comum.” Diz o Dr. Gartner. “Nós não falamos aos pais sobre os ‘benefícios’ dos assentos para carro. Nós lhes falamos que os estudos indicam que se eles não usarem o assento, seus bebês correm um grande risco de serem machucados ou mortos em um acidente. E isto os tem levado a usar. Milhares de vidas são salvas por ano porque essas mensagens funcionam.”
O Dr. Johnston admite que lastima não ter discutido a carta que enviou ao Secretário Thompson com os “especialistas em amamentação” da própria AAP, inclusive com o Dr. Gartner. Mas a notificação é feita dentro do possível, diz Johnson. Ele deixa de molho suas preocupações sobre a campanha.
“Eu conto com a ajuda dos especialistas em amamentação para me ensinar mais sobre o assunto, mas parte da ciência por trás das chamadas da campanha não é sólida. Apenas não é sólida ainda e você sabe como pode faltar objetividade a esses entusiastas da amamentação.
Quando questionado se esta falta de objetividade científica que ele observou se estende aos membros do Departamento de Amamentação da AAP, ele respondeu “alguns, não todos.”
O Dr. Gartner diz que considera a declaração do Dr. Johnston sobre a objetividade entre os médicos do Departamento de amamentação da AAP “ultrajante.”
“Eu li milhares de artigos científicos sobre amamentação e alimentação com formula nos últimos anos assim como os meus colegas do Departamento da AAP,” diz o Dr. Gartner. “Eu desafio o Dr. Johnston a discutir a sólida ciência com relação a esse tem a qualquer hora. Eu adoraria essa oportunidade. Francamente, eu não acredito que ele seja qualificado para comentar sobre as pesquisas porque eu duvido que ele leia muito sobre o tema, exceto – parece – aquilo que as companhias de fórmula têm mostrado para ele.”
De acordo com muitos consultores de amamentação e médicos que trabalharam como consultores na criação da campanha do DHHS, a data proposta pelos funcionários do DHHS para lançamento da campanha era outubro de 2003, para coincidir com a Semana Mundial da Amamentação. Aquela data se foi e os participantes esperavam que a próxima data fosse 3 de dezembro, para coincidir com a reunião de especialistas em amamentação e saúde infantil, que estava prevista para ocorrer em Washington. Na sua edição de 4 de dezembro, o New York Times citou uma carta do Conselho de Propaganda que anunciava dezembro de 2003 para o lançamento da campanha.
Christina Pearson, da OWH, coloca em dúvida o anúncio acerca dessa data e nega enfaticamente que qualquer mudança tenha sido feita nas mensagens da campanha como resultado da pressão dos representantes da indústria de fórmula à AAP.
“A campanha ainda está na fase de preparação e tanto quanto eu saiba nunca saiu disso,” explica Pearson. “Quem quer que pense que estamos para lança-la está enganado. Nós continuaremos com a revisão das mensagens e o conteúdo até que todos se sintam confortáveis de que os fizemos corretamente.”
* Katie Allison Granju é autora do livro Attachment Parenting (Pocket Books/1999). Seu blog é www.locoparentis.blogspot.com.
Traduzido pela Dra. Tereza Toma, da IBFAN BRASIL e coordenadora do Núcleo de Investigação em Saúde da Mulher e da Criança do Instituto de Saúde daSecretaria de Estado de Saúde de São Paulo.
Revisado por Marcus Renato de Carvalho.