10 Anos de uma trajetória luminosa
Entre 15 e 17 de outubro de 1993, algumas pessoas – entre elas, representantes de grupos e entidades – que comungavam preocupações e indignações, reuniram-se em Campinas para debater o que denominavam: “situação atual do nascer em nossa sociedade”.
O diagnóstico era dramático, conforme atesta a Carta de Campinas, documento elaborado a partir dessa reunião:
“Analisando as circunstâncias de violência e constrangimento em que se dá a assistência à saúde reprodutiva e especificamente as condições pouco humanas a que são submetidas mulheres e crianças no momento do nascimento, queremos trazer alguns elementos à reflexão da comunidade.”
“O Brasil apresenta a maior taxa mundial de cesáreas (vários hospitais brasileiros ainda têm taxas como 80 % ou mais de cesáreas) e este passou a ser o método “normal” de parir e nascer, uma inversão da naturalidade da vida.”
Seguia-se uma análise das razões e motivos e, na seqüência, a proposta de criação da REHUNA, Rede pela Humanização do Parto e Nascimento, que “pretende dirigir-se a mulheres, homens, setores da sociedade civil organizada, profissionais de saúde e educação, planejadores e elaboradores das políticas de saúde, para:
o Mostrar os riscos à saúde de mães e bebês das práticas obstétricas inadequadamente intervencionistas;
o Resgatar o nascimento como evento existencial e sócio-cultural crítico com profundas e amplas repercussões pessoais;
o Revalorizar o nascimento humanizando as posturas e condutas face ao parto e nascimento;
o Incentivar as mulheres a aumentar sua autonomia e poder de decisão sobre seus corpos e seus partos;
o Aliar conhecimento técnico e científico sistematizado e comprovado a práticas humanizadas de assistência ao parto e nascimento.
Estes objetivos vem sendo buscados na prática diária de pessoas, profissionais, grupos e entidades preocupados e atentos à melhoria da qualidade de vida, bem estar e bem nascer, aliadas na luta por uma vida mais humana, digna e saudável”.
O documento continuava com uma relação de estratégias e instrumentos passíveis de serem adotados com vistas ao alcance dos objetivos propostos. Muitos trabalharam muito e, hoje em dia, podemos contabilizar:
o Governos adotando humanização como sua política oficial: municipais (a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro foi a pioneira); estaduais (Ceará, Amapá) e o governo federal, que atualmente tem uma política explícita de redução das taxas de cesáreas, incentivo à humanização e assistência integrada à saúde da mulher, com tolerância zero à violência institucional;
o Muitos hospitais aderindo às propostas de humanização. Felizmente, a instituição do prêmio Galba de Araújo pelo governo federal suscitou inicialmente a curiosidade e, depois, o interesse de profissionais e administradores. Sempre é importante lembrar os pioneiros: Hospital Sofia Feldman, de Belo Horizonte, Maternidade PioXI, de Ceres (GO), e Maternidade Leila Diniz, no Rio de Janeiro. No Ceará, a Maternidade César Cals, a MEAC – Maternidade Escola Assis Chateaubriand e, em Aracati, o Hospital Municipal e a Santa Casa Luiza de Marillac.
o Difusão da iniciativa de implantação e implementação de casas de parto, também com incentivo oficial do governo federal. Pioneiras foram a Casa de Parto ‘Nove Luas, Lua Nova’, em Niterói, a Casa de Partos Monte Azul, e a Casa de Partos de Sapopemba, estas na periferia de São Paulo.
o Muitos profissionais adotando em sua clínica privada, em todo o Brasil, práticas de humanização. Seria injusto mencionar alguns e certamente muitos seriam omitidos, por meu desconhecimento, mas cabe ressaltar a importância do trabalho de pesquisa e assistência ao parto de cócoras de Moisés e Cláudio Paciornik, em Curitiba.
o Instituições de ensino incorporando essas noções em seu currículo: Hugo Sabatino idealizou e implantou na Unicamp (Campinas) o pioneiro Grupo de Parto Alternativo (além de ter sido o organizador da reunião acima mencionada, em que foi criada a REHUNA, e ter lançado, em conjunto com o Professor Caldeyro-Barcia, do Centro Latino-Americano de Perinatologia, um dos primeiros livros que versa sobre humanização na assistência ao nascimento). Depois deste, há instituições de ensino como o Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina e as Escolas de Enfermagem da Universidade de São Paulo, a Anna Nery, no Rio de Janeiro, a Estadual do Sul da Bahia e a da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Com os incentivos oferecidos pelo Ministério da Saúde, muitas outras estão adotando novas práticas de assistência, além de multiplicarem-se os cursos de enfermagem obstétrica.
o Organizações não-governamentais, como o Grupo Curumim e Cais do Parto, já há muitos anos vêm trabalhando no sentido de treinar e organizar as parteiras tradicionais, que muito sabem de assistência humanizada, complementando essa sabedoria com esse aperfeiçoamento técnico. Hoje em dia as parteiras tradicionais são reconhecidas pelo Ministério da Saúde e seu programa de parceria com o Curumim, de treinamento de parteiras tradicionais, recebeu o Prêmio Hélio Beltrão da Administração Federal em 2002.
o Vem aumentando o número de pesquisadores e de grupos de pesquisas sobre o tema. Em termos de grupos, cabe salientar o trabalho conjunto da Secretaria de Saúde do Maranhão com a Universidade Federal, que editaram um primoroso livro com sua pesquisa sobre a qualidade da assistência dos quatro principais provedores na capital. Entre outros, ainda ha o Grupo de Estudos de Gênero, na Escola Nacional de Saúde Pública, e o Grupo de Estudos sobre Nascimento e Parto – GENP, do Instituto de Saúde, de São Paulo. Embora não seja parte da ReHuNa, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP também publicou uma muito reveladora monografia em que reporta sua pesquisa sobre 99 estabelecimentos paulistas que atendem partos.
o Iniciativas individuais, como a de Marilia Largura, que assumiu como sua a responsabilidade de difundir a banqueta auxiliar de parto, para partos semi-sentados.
o Preparadoras para o parto: na medida em que, no processo civilizatório, nos afastamos de nossos instintos e nos alienamos dos processos fisiológicos de nossos corpos, essa reaproximação pode e deve ser conseguida. Algumas profissionais estão há muitos anos oferecendo essa oportunidade às mulheres e quero salientar, principalmente, o trabalho de Fadynha, do Instituto Aurora, no Rio de Janeiro, introdutora da massagem Shantalla para bebês em nosso país e organizadora das plenárias da ReHuNa desde seu surgimento, do Espaço Gen, em Brasilia, e de Lívia Pavitra, em Alto Paraíso.
Não menos importante do que as práticas humanizantes é a difusão de nosso ideário. Nestes anos todos, houveram várias publicações, vídeos, assessorias a órgãos de imprensa, e outros. A partir de 1996, com a organização do 1 Seminário sobre Nascimento e Parto do Estado de São Paulo, cujo tema era ‘O resgate da qualidade na assistência ao Nascimento e Parto’, vários foram organizados, no Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Fortaleza, Recife, Curitiba. Cabe mencionar, especialmente, a formidável campanha realizada pelo Grupo Curumim em 1997 na região metropolitana do Recife, cujo slogan ‘Parto Humanizado: Pense nisso!’ repercutiu por algum tempo, visto ter sido veiculado em outdoors nas principais avenidas da cidade, nas rádios e nas principais cadeias de TV (Globo, SBT e Bandeirantes). Acoplada a essa estratégia de divulgação para o público em geral, foram realizados seminário, workshop, lançamento de livros e conseguiu-se efetivamente mobilizar a opinião pública e sensibilizar os poderes locais. Também é importante deixar registrada a atuação do Instituto Aurora em publicações e organização dos Encontros de Gestação e Parto Natural Conscientes, do Grupo de Ceres (GO) na produção de vídeos (‘A vida pede passagem’ e ‘De volta às raízes’), da ReHuNa de Vitória (ES) com seu video ‘Sagrado’, do Cais do Parto na produção de material destinado as parteiras , o jornal ‘O Ventre’, da Casa de Partos de Niterói, e as publicações da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e do Grupo de Estudos sobre Nascimento e Parto. Também foi Fadynha quem teve a luminosa idéia de criar uma lista de discussão que tem sido um ponto de encontro e trocas muito fertilizante para todos os que tiveram oportunidade de a ela se conectar (endereço: <[email protected]).
Houveram várias outras atuações importantes da ReHuNa. Por exemplo, angariando várias centenas de assinaturas em abaixo-assinados com propostas às vezes mais especificas, ou mais gerais, em prol da humanização, em eventos como o VI Encontro Internacional de Mulher e Saúde (1997, Rio de Janeiro); Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (1997, Águas de Lindóia); e IV Congresso Brasileiro de Epidemiologia (1998, Rio de Janeiro). Essas petições foram aprovadas como moções oficiais em todos esses eventos e encaminhadas ao Ministério da Saúde onde, felizmente, encontraram boa receptividade e contribuíram para a instituição de políticas mais favoráveis a práticas humanizantes. Outra conquista importante foi a inserção de propostas concretas de humanização nas plataformas eleitorais de vários e várias candidatos(as), nas eleições municipais.
Paralelamente, nos últimos anos as enfermeiras obstétricas revitalizaram sua organização na Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiras Obstétricas – ABENFO e reavivaram a discussão sobre o seu papel profissional. Organizadas, conseguiram influenciar algumas das políticas do Ministério com respeito a sua formação, com abertura de financiamento para realização de cursos de especialização e habilitação, assim como seu reconhecimento como prestadora de assistência, havendo hoje em dia remuneração para enfermeiras na assistência ao parto. E foi com mui grata satisfação que a ReHuNa acolheu a filiação da ABENFO, como entidade, a seus quadros.
Um dos pontos culminantes na história da ReHuNa foi sua participação na organização e no desenvolvimento dos trabalhos da Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e Nascimento, realizada em Fortaleza de 2 a 4 de novembro de 2000, em excepcionalmente produtiva parceria com a Agencia Japonesa de Cooperação Internacional – JICA. Excedendo a nossa expectativa, foi um estrondoso sucesso e mostrou a grande receptividade que há para nossas propostas: eram esperados cerca de 1000 participantes e, um pouco antes da abertura, já somávamos cerca de 1200. Ao final, foram contabilizadas cerca de 1800 participações provenientes de cerca de 20 países. O nível das conferências, mesas-redondas, workshops, apresentações de trabalhos e pôsteres foi excepcional – e a Conferência ainda ofereceu oportunidade a manifestações artísticas relativas ao tema. Também a adesão a ReHuNa cresceu significativamente. Isso, sem contar a imensa alegria com que saímos de lá, tendo compartilhado por três dias nossas aspirações, preocupações e esperanças de estar oferecendo, às atuais e futuras gerações, a possibilidade de uma entrada mais aconchegante para a vida neste mundo dos opostos. E foi nessa ocasião que nasceu a Relacahupan – a Rede LatinoAmericana e do Caribe pela Humanização do Parto e Nascimento, nossa grande parceira e aliada. Depois desta, tivemos a Conferência Internacional Ecologia do Parto e Nascimento em 2002, no Rio de Janeiro e em Florianópolis e já estamos preparando, em parceira com a revista Midwifery Today, a II Conferência Internacional Ecologia do Parto e Nascimento, a realizar-se em maio de 2004 no Rio de Janeiro.
Em janeiro de 2003 tivemos a alegria de receber Debra Pascali Bonaro, do Doulas of North America – DONA, para treinamento de capacitadoras em formação de doulas. Foram realizados dois cursos, um no Rio de Janeiro, outro em Brasilia. O programa de doulas comunitárias está sendo incorporado pelo Ministério da Saúde e em breve haverão mais cursos no Brasil. Além disso, este ano constituiu-se a ANDO – Associação nacional de Doulas, cuja presidente é Fadynha e a vice-presidente é Lucia Caldeyro-Barcia.
Outro dado importante foi a constituição de grupos de consumidoras: www.amigasdoparto.com.br foi um site pioneiro e tem sido o grande multiplicador e informativo para mulheres que desejam partos amistosos e respeitosos. Mais recente é o grupo ‘Parto e Companhia: amigas e amigos do parto’, com um projeto principalmente didático.
Muitos outros e outras trabalharam para que chegássemos onde estamos agora e, em nosso movimento, contamos com vários importantes e apreciáveis parceiros. Alem da JICA e da ABENFO, temos contado com o apoio do Ministério da Saúde, do Instituto de Saúde (SES/SP), da Rede Ibfan, da Rede Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, a OPAS, UNICEF, o Projeto Qualis, Deputados e tantos outros… E atualmente contamos com o apoio de muitas organizações nacionais e internacionais, que inclusive deram seu apoio a realização da Conferência Internacional, a quem somos e seremos sempre muito gratos.
Hoje em dia, podemos afirmar com alegria e tranqüilidade que é possível reverter a dramática situação constatada por ocasião de nosso surgimento — é o que vemos acontecer e estamos construindo. E vemos, contentes, nosso movimento assumindo dimensões internacionais, como a criação da Relacahupan durante a Conferência Internacional. Estamos nos articulando com a CIMS – Coalition for Improvement of Maternity Services – nossos aliados naturais, e assim poderemos potencializar mutuamente nossas atuações.
A história da ReHuNa é uma história sempre incompleta: por um lado, muita coisa aconteceu antes de e durante esses dez anos de existência, e esta cronista nem chegou a ter notícia; por outro, ela vem sendo cotidianamente ampliada. Por exemplo, em vista da complexidade e dimensão continental de nosso país, conceber como poderíamos funcionar demandou-nos algum tempo. Um primeiro grupo de filiados se reuniu em São Paulo em novembro de 1999, constituindo o primeiro núcleo da ReHuNa. Este núcleo foi que, com base em estatutos previamente esboçados e outros de redes similares, como a Rede Feminista, elaborou uma minuta de estatuto para a nossa Rede, cuja discussão foi aprofundada em plenária nacional realizada em São Paulo, em junho de 2000. A versão final foi aprovada em plenária ocorrida durante a Conferência Internacional de Fortaleza, em novembro de 2000. Com esse estatuto, constituir um núcleo da ReHuNa ficou muito fácil: basta haver cinco filiados a Rede com vontade de compor um. A partir da Conferência Internacional, vários núcleos se estruturaram, com propostas de atuação extremamente interessantes, e outros ainda estão em fase de concepção. Ainda estes dias tivemos notícias da energia rolando no núcleo de Florianópolis, com mil propostas extremamente viáveis, vivas e positivas. Além de ter conseguido que houvesse uma lei estadual de obrigatoriedade da presença do acompanhante durante o trabalho de parto e no parto, participaram de uma audiência no Senado Federal, depondo em favor de uma lei nacional do acompanhante. Ambas as leis foram propostas por Ideli Salvatti, então quando deputada estadual de SC e atualmente como senadora – e também filiada à ReHuNa.. Regulamentação referente ao acompanhante foi pioneira no Rio de Janeiro e já estão em andamento projetos no Rio Grande do Sul e no Paraná. Nas maternidades municipais de Recife já há permissão para a presença de acompanhante de escolha da parturiente, em resultado da parceria da ReHuNa com a RedeSaúde no Conselho Municipal de Saúde. Ainda há núcleos em formação ou atuação mais estruturada em Vitória (ES), Campinas (SP), Curitiba (PR), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), Brasilia (DF), Belo Horizonte (MG) e Montes Claros (MG).
O núcleo de São Paulo foi responsável, em maio de 2000, pelo lançamento da campanha pela concretização de artigo da lei estadual 10.241 de 17/03/99 pela presença de acompanhante de escolha da mulher durante o trabalho de parto e no parto. Também foi este núcleo quem lançou, em 12 e 13 de junho de 2003, a Campanha pela Abolição da Episiotomia de Rotina, com a presença da Dra. Giselle Tomasso do Centro LatinoAmericano de Perinatologia – CLAP e com parcerias com a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, do CLADEM, da FEBRASGO, da ABENFO, da Biblioteca Cochrane do Brasil, do Ministério da Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde, da Secretaria Municipal de Saúde e outras. Esta campanha foi lançada também em Recife, num feliz conjunção com a visita da Dra. Giselle Tomasso, em 15 e 16 de junho de 2003.
A ReHuNa é uma organização aberta a todos que quiserem partilhar e comungar em nossas esperanças de um futuro pleno de nascimentos para uma vida mais humana, digna e saudável. Seus profissionais de dispõem a compartilhar suas vivências e práticas com outros setores da sociedade (governos federal, estaduais, municipais, escolas, faculdades, serviços de saúde, profissionais, outras organizações governamentais e não governamentais, etc.). Mais informações, assim como a ficha de filiação, podem ser conseguidas com a nossa Secretaria Executiva (sob responsabilidade atualmente de Daphne Rattner com a colaboração de Maria Angelina Pita), cujo e-mail é [email protected] ou [email protected], ou pelo correio:
Rua Cardeal Arcoverde, 1749-B, cj. 78-B, São Paulo – SP – CEP 05407-002 – BRASIL.
Daphne Rattner, médica sanitarista e epidemiologista, coordenadora do Grupo de Estudos sobre Nascimento e Parto (Instituto de Saúde – SES/SP) e integrante da coordenação nacional – Secretaria Executiva -da REHUNA – Rede pela Humanização do Parto e Nascimento