Parto normal ou cesárea?
JORGE FRANCISCO KUHN DOS SANTOS
Atualmente no Brasil, muitas mulheres grávidas têm sido submetidas ao que é conhecido como “desneCesárea”
O PARTO, além de ser um ato fisiológico, é também um evento familiar, pessoal e sagrado e, em mais de 80% dos casos, não deveria ser um ato médico.
A cesárea, indicada em 10% a 15% dos casos, como recomenda a OMS
(Organização Mundial da Saúde), é uma cirurgia de grande porte e maior risco. Sendo assim, somente deveria ser realizada no intuito de salvar a vida da mãe e/ou do bebê ou de evitar risco de dano à integridade da unidade mãe-bebê.
Os índices de cesárea no país e no mundo vêm crescendo, é verdade, na maioria das vezes por razões de conveniência do médico ou da mulher.
Dessa forma, devemos aplaudir todas as tentativas de normalizar a situação e incentivar o parto normal, como aquela recentemente tomada pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
A iniciativa da ANVISA traz um conjunto de medidas como o direito da parturiente de escolher o acompanhante durante o trabalho de parto e o pós-parto imediato e a liberdade de escolha quanto à posição em que dará à luz, entre outras.
Ainda há outras medidas de incentivo ao parto normal, como o são a construção de mais casas de parto -não só para as mulheres menos favorecidas- e a criação de mais cursos formadores de boas parteiras e enfermeiras obstetras.
Quais seriam, então, as situações em que o médico tem, necessariamente, de optar pela cesárea em detrimento do parto normal? Embora em alguns casos essa decisão possa ser tomada com antecedência, ainda durante o pré-natal-como nos casos de placenta prévia centro-total-, na grande maioria das vezes ela só pode ser tomada durante o trabalho de parto, como no herpes genital ativo.
Neste ponto, é importante destacar que situações como falta de dilatação do colo uterino antes do trabalho de parto efetivo,cesárea prévia, bacia estreita, bebê grande e gestação gemelar não são razões para a realização de uma cesárea.
Caso a cesárea seja de fato necessária, aí, sim – mas somente aí-, ela estaria indicada, e não da forma que vem acontecendo atualmente no Brasil, mormente no serviço privado, em que 80% a 90% das grávidas têm sido submetidas, na imensa maioria dos casos, ao que é conhecido como uma “desneCesárea”.
A mulher deve ser incentivada a exercer o protagonismo ativo no processo de dar à luz. A mãe, plenamente informada sobre a evolução de um parto ainda durante as consultas pré-natal, terá ampla participação durante o processo e condições de tomar decisões compartilhadas com o profissional de saúde.
A palavra do médico, sua experiência cotidiana e a bagagem de conhecimento científico que carrega valem muito, evidentemente.
Contudo, há toda uma exaustiva literatura científica que aponta ser a parteira a melhor profissional para acompanhar um parto normal numa gestante de baixo risco.
Ao médico caberia o atendimento dos 10% a 15% dos casos em que estaria verdadeiramente justificada a operação cesariana e dos 5% dos casos em que seriam necessárias intervenções, tais como o fórcipe e a vácuo-extração.
Humanização? Sim! Não humanização do parto, pois este já é um evento humano e nós, profissionais de saúde, não somos desumanos, mas humanização da assistência ao parto e nascimento, evitando procedimentos muitas vezes ineficazes, danosos e dolorosos.
Para finalizar, é preciso dizer que devemos melhorar também a formação dos médicos, pois estes comumente terminam o período de residência, após a faculdade, com uma visão muito distorcida de um evento natural, o parto.
JORGE FRANCISCO KUHN DOS SANTOS, 54, é professor assistente do departamento de obstetrícia da Unifesp/EPM (Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina), plantonista do Hospital e Maternidade Leonor Mendes de Barros, do SUS. Médico obstetra e
ginecologista, acompanha partos há 33 anos.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do
jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate
dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas
tendências do pensamento contemporâneo. [email protected]
CONSELHO de MEDICINA edita PARECER sobre CESÁREA a pedido da GESTANTE
PARECER CREMERJ Nº 190/2008
INTERESSADA: Dra. A. T. C. de M.
RELATOR: Cons. Arnaldo Pineschi de Azeredo Coutinho
Comissão de Bioética do CREMERJ
DIREITO DE A GESTANTE ESCOLHER O TIPO DE PARTO.
EMENTA: A literatura médica é controversa ao pesar os riscos e benefícios existentes entre o parto vaginal e o cesáreo. Na escolha ética deve ser respeitada a autonomia da paciente, após consentimento livre e esclarecido, e a não-maleficência da conduta médica. Em relação à saúde pública, há que se levar em conta, também, a condição orçamentária, considerando que devem ser previstos gastos com partos cesáreos a pedido, uma vez que a saúde psicológica integra a visão biopsicossocial no cuidado à saúde dos indivíduos.
CONSULTA: Consulta encaminhada pela Dr. A. T. C. de M., a qual deseja ser esclarecida acerca do direito de a gestante escolher entre o parto normal ou cesáreo, tendo em vista as atuais demandas bioéticas, em especial os princípios da autonomia e da não-maleficência.
PARECER: A presente questão envolve dois conflitos:
1. Conflito entre a não maleficência ao colocar a paciente em risco desnecessário e a autonomia da paciente em suas escolhas.
– É correto permitir que a gestante corra o risco desnecessário de um parto cirúrgico, submetendo-se a procedimento cirúrgico sem indicação técnica médica?
– É correto desrespeitar a vontade da paciente em sua autonomia em relação ao seu próprio corpo na escolha do procedimento para o parto, mesmo quando sem indicação técnica?
2. Conflito entre a justiça de direitos iguais individuais e a justiça na alocação de recursos públicos de saúde.
– É correto que o dinheiro público financie procedimentos mais caros e desnecessários, assim como com as despesas conseqüentes das eventuais complicações deste procedimento, para atender ao desejo da gestante?
– É correto que as gestantes usuárias do serviço público não tenham o mesmo direito que as gestantes das camadas sociais mais favorecidas, na escolha do tipo de parto?
Para deslinde dessas questões, há que se considerar:
a) A literatura médica é controversa neste tema. Não há evidências robustas sobre a melhor forma de parto, considerando os riscos e os benefícios existentes entre o parto vaginal e o cesáreo.
b) Dentre os fatores responsáveis pelo aumento do número de partos cesáreos, no Brasil, encontram-se:
1- Do ponto de vista médico:
• Possibilidade de programação prévia e menor duração da intervenção.
• Imprevisibilidade do parto vaginal em relação ao início do processo, à duração e às complicações obstétricas.
• Pouca orientação da mulher para o processo da maternidade quanto às alternativas de parto e os riscos e benefícios de cada alternativa.
2- Do ponto de vista materno:
• Receio quanto à dor sentida durante o parto e as seqüelas físicas e emocionais decorrentes.
3- Do ponto de vista da saúde pública:
• Gestão orçamentária – distribuição de recursos.
• Condições locais de atendimento à gestante para propiciar um parto vaginal com o máximo de bem-estar (ex. pouco acesso à analgesia).
c) Existe uma distribuição desigual do número de cesarianas, que é muito maior no setor privado, nas classes mais favorecidas e de maior escolaridade do que na população carente.
d) É dever de o Estado proporcionar condições adequadas de infra-estrutura técnica, humana e material para que o tipo de parto escolhido possa transcorrer de forma satisfatória, proporcionando o melhor bem-estar possível para a parturiente e o neonato.
e) O Ministério da Saúde incentiva a redução das taxas de cesarianas, só aceitando aquelas que se enquadrem nos critérios preestabelecidos de indicação, e limitando o número destes partos cirúrgicos pagos pelo governo.
f) A indicação técnica do parto mais adequado é atribuição do médico, levando-se em conta que a cesárea a pedido passa a ser considerada uma indicação médica, além das outras já conhecidas.
g) Os artigos 48 e 56 do Código de Ética Médica dizem ser vedado ao médico:
“Art. 48. Exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar.”
“Art. 56. Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.”
h) A gestante deve ser informada e esclarecida sobre as diversas formas de parto, riscos e benefícios de cada uma e orientada para a opção.
i) A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 25, número 2, preconiza que “a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais.”
j) Há uma tendência mundial crescente de cesáreas a pedido, à medida que as técnicas cirúrgicas se aperfeiçoam. É reconhecido que, embora haja uma progressão nos avanços tecnológicos em saúde, nem todos podem usufruir desses avanços. Mesmo considerando que todos contribuem para os serviços de saúde existentes, esses são escassos, principalmente para as mulheres das classes sócio-econômicas menos favorecidas.
k) É responsabilidade médica não colocar pacientes em risco desnecessário, escutar e orientar, esclarecendo a gestante a respeito das diversas formas de parto e seus riscos.
A cesariana a pedido será ética, desde que a decisão seja compartilhada pelo médico/equipe e paciente/família, e esta for considerada a melhor opção, depois de esgotadas todas as alternativas relacionadas. Se a opção for por desinformação ou receio, a paciente deve ser esclarecida e o receio trabalhado com a equipe de saúde.
Mas pode ter a paciente a opção de se submeter ao parto cirúrgico quando, mesmo após devidamente esclarecida e orientada, assim o desejar. Nesta situação, cabe ao médico e à equipe de saúde, considerar as demandas da mulher e conhecer as razões de sua escolha.
Por justiça social, as mulheres menos favorecidas economicamente deveriam ter o mesmo direito de opção que as mais favorecidas, sem este direito negado. Devem ter a mesma orientação em ações educativas e de apoio da equipe de saúde durante o pré-natal e estarem aptas a compartilhar a decisão com o médico e não se sentirem tolhidas em sua liberdade.
O fato de as usuárias do serviço público de saúde não compartilharem com o médico a opção do método para seu parto, faz com que o procedimento cirúrgico seja ainda mais valorizado pela população. O exercício da autonomia é desenvolvimento de responsabilidade e ação educativa, devendo as pacientes do sistema público ter o mesmo direito das demais em, após os devidos esclarecimentos, poderem exercer a autonomia da escolha.
Se a demanda materna por parto cesáreo for considerada, o processo deve ser documentado e obtido o consentimento livre e esclarecido da mulher, por escrito. Porém, a mulher deve estar ciente de que o parto realizado pode ser diferente do previamente acordado, devido a circunstâncias presentes, o que deve estar expresso no termo de consentimento.
Adicionalmente, devem-se considerar as questões de ordem técnica, administrativa e gerencial. A escolha deve garantir o maior suporte e segurança para mãe e neonato, considerando, no processo decisório, se a mulher não fez o pré-natal e se as questões não foram discutidas previamente.
Na escolha ética devem ser respeitadas as condições orçamentárias do serviço, a fim de não prejudicar outros pacientes. Contudo, deve o orçamento da saúde pública prever gastos com partos cesáreos a pedido, até o limite que garanta a distribuição de recursos para outras práticas de saúde, lembrando que a saúde psicológica também faz parte da visão biopsicossocial no cuidado à saúde dos indivíduos.
É o Parecer, salvo melhor juízo.
Aprovado na Sessão Plenária de 23/07/2008.
OPINIÃO:
Há claro “conflito de interesses” do obstetra em “aceitar”
este “desejo” feminino fruto da ignorância sobre os malefícios da cirurgia e os benefícios do parto normal,
em uma sociedade de consumo equivocada, do corpo feminino como vitrine,
da desumanização do parto, da medicalização do ciclo gravídico-puerperal…
Marcus Renato de Carvalho