O lugar das enfermeiras e obstetrizes
RADIS – janeiro de 2015
Estudos apontam centralidade dessas profissionais na melhoria da qualidade do atendimento a gestantes e recém-nascidos
A edição especial da revista científica inglesa The Lancet, de junho de 2014, é taxativa ao afirmar a importância e a eficácia da assistência prestada a mulheres e bebês pela figura da midwife, em português, a obstetriz ou parteira com formação profissional. Segundo a publicação, elaborada por 35 especialistas em um grupo multidisciplinar, a assistência ao pré-natal, parto e pós-parto – conceito que em inglês é condensado na palavra midwifery – é vital para enfrentar os desafios de fornecer cuidados materno-infantis de alta qualidade a todas as mulheres e recém-nascidos, em todos os países. Para os autores do estudo, investir nesse profissional especialista no manejo do parto tem retorno tão eficaz quanto o investimento em vacinação. “Desde 1990, os 21 países que foram mais bem sucedidos em reduzir as taxas de mortalidade materna, fizeram isso facilitando o parto através do emprego de midwives”, afirmam.
As conclusões da publicação apoiam a mudança de uma assistência que atualmente é, na maior parte dos países, fragmentada, focada na identificação e tratamento de patologias, para uma abordagem sistêmica que forneça cuidados como um todo. Isso requer trabalho de equipe multidisciplinar e integração entre hospital e comunidade.
A Midwifery é definida nessa série como cuidado qualificado e contínuo ao longo da pré-concepção, gravidez, parto, pós-parto e nas primeiras semanas de vida do recém-nascido, baseado no conhecimento e empatia com gestantes, recém-nascidos e famílias. “Em alguns países, esse cuidado integral é limitado por barreiras culturais e existem sobreposições de papéis entre médicos obstetras, médicos de família, enfermeiras, parteiras tradicionais, obstetrizes, agentes comunitários de saúde e enfermeiras obstetras”, diz o texto.
Redução de cesarianas
No Brasil, os estudos mostram que a presença de enfermeiras obstetras reduz o excesso de cesarianas desnecessárias. Em maternidades onde os partos são assistidos por enfermeiros ou obstetrizes, a taxa de cesariana é 78% menor quando comparada aos hospitais onde não há presença desse profissional no momento do parto, conforme apontou a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Silvana Granado, na Conferência Internacional Ecos da 9th International Research Conference – Normal é natural: da pesquisa à ação, realizada de 14 a 16 de outubro, no Rio de Janeiro. Apenas 16% dos partos no país são assistidos por enfermeiras obstetras, em sua maioria pelo SUS, revelou Silvana, que participou do estudo Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento (Radis 143), coordenado pela Fiocruz. “A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece que os enfermeiros obstetras e obstetrizes desempenham mais adequadamente e com menor custo a assistência aos partos normais”, afirmou.
A pesquisadora relembrou que, desde 1986, é assegurada aos enfermeiros e obstetrizes a tarefa de assistir a parturiente e o parto normal, identificar distócias (dificuldades encontradas na evolução de um trabalho de parto) e tomar providências caso haja alguma complicação até a chegada do médico. O Ministério da Saúde prevê na tabela do SUS, desde 1998, o pagamento de parto normal, realizado por enfermeiro obstétrico, com maior satisfação das mulheres e sem prejuízos nos desfechos maternos e pré-natais.
Casa de parto normal
No hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte, as gestantes de baixo risco são atendidas por enfermeiras obstetras em casa de parto normal (Radis 117), e só são removidas para a maternidade se desejarem anestesia, ou caso haja algum tipo de complicação, quando passam a ser atendidas por obstetras. Ali, o número de episiotomias – corte feito entre a região do ânus e da vagina durante o parto normal – foi reduzido drasticamente e hoje só é feito em 4% dos partos.
Nos anos 90, as episiotomias eram praticadas ali em 60% dos nascimentos por parto normal. “Os dados mostram que a queda mais drástica ocorreu entre os anos de 1998 e 1999 quando colocamos enfermeiras em todos os plantões. Caímos para 10%”, explicou o diretor clínico do hospital, João Batista Marinho de Castro Lima ao Blog Maternar, publicado pela Folha de S. Paulo. Segundo ele, após a prática deixar de ser rotineira, as lacerações que acontecem provocam uma lesão mais simples do que a própria episiotomia, que é uma cirurgia e leva a uma laceração de, no mínimo, segundo grau.
“Quando me formei, há 31 anos, a cesariana era vista como um ‘ato de bondade’, para ‘diminuir o sofrimento da mulher’ e a episiotomia era vista como um procedimento para proteger o períneo”, explicou na conferência o médico obstetra Marcos Dias, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueiras (IFF/Fiocruz), em palestra sobre a formação do médico obstetra no Brasil.
No mesmo evento, foram discutidas pesquisas recentes no ramo de epigenética, mostrando que o tipo de parto faz diferença no desenvolvimento do sistema imunológico da criança, por ela ser exposta às bactérias do corpo da mãe antes de entrar em contato com o ambiente externo; e apontando também que as alterações hormonais fisiológicas que ocorrem durante o parto normal são determinantes em muitos aspectos e a alteração do mecanismo natural pode ter consequências evolutivas.
‘Cultura do hospital’
“Para a medicina se apropriar do cuidado das mulheres foi preciso desnaturalizar o parto e a gestação, e criar a cultura do hospital”, explicou Marcos. “O modelo atual é o modelo tecnocrático do parto, em que o corpo feminino é visto como uma máquina defeituosa, sobre a qual o médico tem o poder de normatizar”. O médico contou que, a partir do início dos anos 2000, começou a haver uma inflexão nessa visão do parto no Brasil, embora o número de cesarianas hoje supere o de nascimentos pela via natural. “Os residentes hoje já viram e acompanham muitos partos normais. Refiz minha formação para não ficar para trás”, disse Marcos, que foi diretor da maternidade Leila Diniz, no Rio de Janeiro.
“Pelo modelo centrado no hospital e no médico, estamos longe de ter enfermeiras vinculadas desde o pré-natal à gestante. De um lado tem a cesárea, de outro, o parto conduzido de maneira inadequada, com práticas desaconselhadas. Precisamos mudar esse cenário para que a mulher tenha acesso ao bom parto”, afirmou Esther Vilela, coordenadora do programa Rede Cegonha, do Ministério da Saúde, no evento. “O Ministério da Saúde está induzindo que os hospitais tenham enfermeiras obstetras. Manaus, por exemplo, já contratou para todas as maternidades”, disse Esther. No entanto, para ela, é importante que toda atenção ao parto seja redesenhada, um dos objetivos do Rede Cegonha. “Não adianta levar enfermeiras obstetras para incorporar um modelo antigo”.
Cenário do bom parto
“A Rede Cegonha vem justamente qualificar as práticas de cuidado ao parto e nascimento e ao pré-natal. Queremos superar esse modelo tecnocrático, mecanicista, centrado no hospital e somente na figura do médico, que resultou em 53% de cesarianas. Precisamos colocar o cenário do bom parto para reduzir a cesárea”, declarou a coordenadora, lembrando as normativas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que foram postas em consulta pública em outubro de 2014, com medidas que obrigam o hospital e o profissional a informar as taxas de cesarianas praticadas. Medidas previstas incluem ainda a recomendação de acompanhamento do andamento da evolução do trabalho de parto pelo partograma (reprodução gráfica da evolução do trabalho de parto) e proibição de cesariana eletiva antes das 36 semanas de gestação. A ANS determinou também em novembro que seja distribuído para as usuárias de operadoras de planos de saúde a Caderneta da Gestante (semelhante à utilizada no SUS), contendo a Carta de Informação a Gestante. O documento é um instrumento de registro das consultas de pré-natal que contém os principais dados de acompanhamento da gestação, devendo permanecer em posse da paciente e ser apresentado na maternidade quando for admitida em trabalho de parto.
Para ampliar a inserção da enfermagem obstétrica e a melhoria da qualidade da assistência ao parto, Esther afirma que é preciso investir em formação profissional e em espaços adequados. Segundo ela, existe carência de profissionais. “Estamos investindo em dois eixos. Um é a formação de enfermeiras obstetras, pois temos muito poucas”, contou ela. O Reino Unido, por exemplo, tem cerca de 100 milhões de habitantes e 40 mil midwives registradas, enquanto que o Brasil, com população de 190 milhões, conta com apenas 5 mil profissionais registrados na Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo). “Entre cursos de aprimoramento, especialização e residência, estamos abrindo um total de 1.154 vagas”, contou. “Algumas profissionais precisarão se atualizar, pois nunca puderam atuar efetivamente”. O outro eixo é a construção de centros de parto normal, onde a assistência ao parto natural é feita integralmente pela enfermeira obstetra. “Entre construção e reformas, temos 115 projetos em andamento”, anunciou. O site do ministério dispõe de projeto de Centros de Parto Normal, com plantas e maquetes para baixar (ver Saiba mais).
Currículo integrado
Segundo Carlos Maciel, diretor do IFF/ Fiocruz, “a lei dá possibilidade, mas no dia a dia tem sido muito difícil o enfermeiro atuar no parto”. Ele revelou que o projeto do novo hospital que será construído para o Instituto na região de São Cristóvão, no Rio de Janeiro prevê um centro de parto normal anexo. As mudanças incluem também a formação profissional, durante o internato (estágio) e residência “Haverá um internato conjunto, e residências conjuntas para médicos e enfermeiras”, contou.
Segundo Holly Powell Kennedy, do American College of Nurse-Midwives (Faculdade de Enfermagem Obstétrica, localizada em Maryland, EUA), o trabalho colaborativo na equipe profissional é fundamental. A enfermeira, que atuou no exército dos Estados Unidos por mais de 30 anos, afirmou que a tendência é a adoção do currículo integrado e universal. “Está aumentando o número de enfermeiras obstétricas atuando na formação médica”, declarou, reforçando que a colaboração entre as profissões é necessária e benéfica para as mulheres. “Somos membros de equipes interdisciplinares, mas fomos educados e socializados nas nossas profissões. Há falhas na comunicação e competição entre as categorias”, observou. A plateia, em sua maior parte formada por enfermeiras, reagiu positivamente e quis saber da palestrante como mudar a visão de que o enfermeiro é um médico frustrado. “O desrespeito entre profissões existe em outros países também, mas isso pode mudar”, disse Holly, acrescentando que “não adianta ir embora para a casa chorando ao presenciar práticas inadequadas ou após uma discussão com um colega de equipe”.
A Universidade de São Paulo (USP) oferece, desde 2005, um curso de graduação em Obstetrícia, que pertence à Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH). Localizado no campus Leste, na capital paulista, o curso forma bacharéis em Obstetrícia, com entrada direta. De acordo com a coordenadora do curso, Nádia Zanon, as egressas são registradas e têm encontrado espaço para atuar no mercado de trabalho. Durante o estágio no Hospital Universitário da USP, no entanto, conforme contou Nádia, as alunas se deparam com um cenário no qual as práticas não se respaldam em evidências – como uso de fórceps de rotina e episiotomia em todas as primíparas (grávidas que vão dar à luz o primeiro filho), nos partos assistidos por médicos obstetras e residentes. Segundo ela, para mudar esse cenário violento, “o Brasil precisa de obstetrizes”.
Parteiras pelo mundo
Leslie Page, presidente do Royal College of Midwives – instituição corporativa britânica que regula a profissão de obstetriz – compareceu ao evento no Rio de Janeiro e contou que, no Reino Unido, “nem todas as grávidas e parturientes são acompanhadas por médicos, mas todas passam por uma midwife”. O ofício é regulado e tem formação específica, explicou Leslie, lembrando que existem também homens entre os profissionais. A parteira veterana, que administrou diversos serviços no Reino Unido e no Canadá, elogiou os esforços brasileiros em modificar o modelo de atenção. “O Brasil está fazendo muito. Por estudos, sabemos que no mundo todo, quando a assistência é privada, as taxas de cesariana são altas. O tipo de mudança que queremos é de visão, e a equipe é importante. Aumentar o respeito entre os profissionais e pela mulher aumenta a segurança dos partos”.
Leslie também apresentou números de estudos internacionais que trazem evidências dos benefícios das parteiras. “O parto é mais seguro, tem menos intervenções, menos prematuridade, menos morte fetal”, resumiu. No mundo todo, apontou Leslie, existem grandes contrastes entre mulheres desassistidas e o excesso de intervenções. “O apoio humano é o mais importante, é algo crucial para qualquer sociedade civilizada. É preciso também ajudar a melhorar o status da mulher na sociedade para salvar vidas. Existem lugares onde as parteiras são ameaçadas de morte. É difícil trabalhar eficazmente sob opressão e invisibilidade”, defendeu Leslie, para quem é importante ainda não deixar de lado o aspecto psicológico, da satisfação da mulher com a assistência e o apoio obtidos na gestação e no parto. “Em muitos países o suicídio é a principal causa de morte materna. A saúde mental é crucial”, declarou.
Hanna Dahlen, docente em obstetrícia na University of Western Sydney, na Austrália, contou que em seu país o medo dos maus-tratos durante o parto tem levado mulheres a realizarem parto desassistido, ou seja, sem acompanhamento de nenhum profissional de saúde. “Muitas mulheres têm se recusado a ir para hospitais terem seus filhos. Isso é uma espécie de termômetro, que mostra que a atenção ao parto não é satisfatória”. Ela afirmou ainda que o que motiva muitas vezes a mulher a evitar os serviços de saúde são traumas anteriores. “Há casos de mulheres que se sentiram ‘evisceradas’ e não tiveram respeitadas suas decisões”. Hanna defendeu que não se deve “julgar essas mulheres, achando que elas não se importam com a saúde dos seus bebês”, uma vez que têm sido observados melhores desfechos de saúde física e mental em partos domiciliares naquele país. “Se o parto no hospital não respeitar a mulher, vamos empurrá-la para situações perigosas. A orientação é de que se a mulher diz não, é não. Acabou a história. Temos que oferecer um serviço que as mulheres aceitem, e não o contrário. O maior órgão envolvido no nascimento é o cérebro”, concluiu.
No Brasil, algumas mulheres optam por ter seus filhos em casa, sob supervisão de médico(a) obstetra ou de enfermeiro(a), mas esse tipo de assistência não está prevista pelo SUS. Waldecyr Herdy, presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo) defende que o assunto seja discutido. “Devemos pensar no parto domiciliar como processo político de saúde pública”, afirmou na mesa de abertura da conferência. Sobre o assunto, Esther Vilella respondeu com cautela. “Temos que olhar com muito cuidado para essa questão, porque a discussão sobre o modelo de parto ainda não tem maturidade. O parto domiciliar é de domínio da vida privada. Eu não vejo condições políticas e técnicas neste momento. Estamos avançando cuidadosamente para não haver retrocesso, e para não por em risco a vida e a autonomia das mulheres”.
Para Waldecyr, é importante “não perder a possibilidade de inclusão da enfermagem obstétrica e construir a rede de mudanças em trabalho coletivo com gestores, para garantir a inserção da enfermeira obstétrica e da obstetriz”. Ele lembrou que mais de 20% das internações pelo SUS são por razão de trabalho de parto, parto e puerpério: “Precisamos mudar a qualidade dos partos, que hoje são violentos. O desafio de redesenhar o cuidado é de toda a sociedade brasileira”, ressaltou.
Autor: Elisa Batalha