Partos em Casa Estão a Aumentar em Portugal
O número de partos em casa está a aumentar em Portugal. Depois de durante dois anos ter estabilizado na casa dos 500, no ano passado os partos domiciliários subiram para 751. Uma proposta do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses lançou recentemente o debate: a forma de fazer face à falta de médicos nas maternidades e de combater “a medicalização” de um acto que é natural passa por incentivar esta prática.
Levar adiante a proposta seria “um desastre” e “um retrocesso de 50 anos”, defende por sua vez o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia. No meio da polémica, há pais que insistem em optar pelo caminho mais difícil: ter o bebé na cama onde dormem todos os dias.
Entre 1965 e 1995, o parto hospitalar passou de apenas um quarto do universo nacional para a quase totalidade. Embora residual, o fenómeno não desapareceu e sofreu mesmo um aumento: em 2000 foram 511 os partos domiciliários, em 2001 eram 545, no ano passado foram 751, dizem as Estatísticas da Saúde do Instituto Nacional de Estatística. Ou seja, no total, cerca de 0,5 por cento dos bebés portugueses nascem em casa.
Mas enquanto dar à luz em casa há duas décadas era uma inevitabilidade, decorrente da falta de assistência especializada (a parteira era uma pessoa sem formação, com saber de experiência feito), hoje muitos casais fazem esta opção. A maior parte destes partos ocorrem, segundo dados de 2001, na zona de Lisboa e Vale do Tejo (189), seguida das zonas Norte (150) e Centro (114), mas é na zona de Lisboa que o parto domiciliário mais tem assistência, quer de um médico (80), quer de enfermeira obstétrica (59) ou enfermeira não especializada (5). Já os casos de parto domiciliário sem assistência aconteceram em 158 situações, sobretudo na zona Norte (57).
Fugir ao ambiente hostil dos hospitais
Há, assim, dezenas de casais que procuram cada vez mais o regresso ao parto como um acto natural, que se dá em ambiente familiar. Afastados pelo “ambiente hostil dos hospitais” – onde tudo é apressado e frio, onde se precipitam as cesarianas -, insistem em naturalizar, apesar das pressões vindas de todo o lado, desde a família aos profissionais de saúde, afirma Henrique, agente de viagens de 42 anos e pai de dois filhos que nasceram em casa.
Por insistir em ter “um parto tranquilo”, ele e a mulher foram classificados como “malucos” e “primitivos” pelos médicos. Os entraves que encontraram à sua decisão levaram-nos a interromper o acompanhamento médico ao quarto mês de gravidez – foi nessa altura que contactaram uma parteira em quem tinham confiança.
Tudo se passa de forma “meio velada”, afirma Teresa Leite, enfermeira obstetra no Hospital São Francisco de Xavier, que já fez cerca de 300 partos em casa. “É preciso querer muito, muito, ter um filho em casa”, porque “o sistema não apoia”. Para a maioria da classe médica, “é mal visto”, mas afirma que já chegou a fazer partos em casa a médicas. Se houvesse mais condições, profissionais credenciados e situações de retaguarda, não tem dúvidas de que “havia muita, muita gente que queria”. Nos partos que faz em casa, são os casais que o assumem por sua conta e risco e exige sempre que esteja assinalado um hospital por perto, no caso de haver problemas, embora afirme que até hoje tal nunca aconteceu.
Glória Charrua, 61 anos, com formação em saúde materna e infantil da Faculdade de Medicina de Coimbra, afirma que é sobretudo procurada por mães ligadas à macrobiótica, ao ioga, ao naturismo, e algumas estrangeiras e mulheres do Sul que sentem a deslocação para um hospital longe de casa como um sacrifício que preferem não suportar. Com 30 anos de experiência de partos em clínicas e hospitais, é do tempo em que a prática dos partos domésticos era vulgar, mas acredita que, a haver mais condições, “mais de metade das grávidas gostavam de ter os seus bebés em casa”.
Glória faz partos em casa, mas é exigente nas suas escolhas. Acompanha toda a gravidez e há uma série de requisitos: as mães não terem factores de risco, doenças, o bebé não ser demasiado grande. “Só aos seis meses é que digo se faço o parto.”
A grande diferença destes partos? Há todo o tempo do mundo para se “esperar”. Cada mulher tem o seu ritmo, a sua posição de dar à luz, comenta. Equipada com um “kit” onde leva batas de papel, lençóis descartáveis, equipamento para limpar os nascituros, aguarda que “o bebé se resolva a nascer”. Costuma chegar antes e espera, às vezes numa cadeira à beira da cama, noutras até fica a dormir lá em casa e toma o pequeno-almoço com a futura mãe. Depois de nascerem os bebés, não lhes dá a clássica palmada, mas sim um banho morno na banheira devidamente desinfectada. “O bebé sofreu ao nascer, naquele momento sente calma, é lindo, descontrai, só vendo, é lindo.”
Holanda como exemplo
A Holanda é o exemplo na boca dos adeptos deste nascimento. Neste país, cerca de 35 por cento das crianças nascem em casa e outros 20 por cento dos partos começam em casa mas acabam no hospital. Um dos requisitos para o parto em casa é a proximidade do hospital, tem de ficar entre 20 a 30 minutos da casa, e é acompanhado por uma parteira ou um clínico geral.
O exemplo holandês não serve, defende o presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia e Obstetrícia, Carlos Santos Jorge. Neste país, “traz-se o hospital até à casa da mulher”. Uma ambulância à porta de casa, contacto com infra-estruturas de retaguarda, fazem-no “uma opção segura”. Em Portugal, “ter um parto em casa é uma aventura”, reitera, em que devem ser conhecidos os riscos. Depois, é uma questão de os assumir.
“Entre nós não existe estrutura, não há acompanhamento, não há rigorosamente nada preparado.” Refere-se às dificuldades de acesso aos hospitais e à impossibilidade de transferência rápida para um hospital. Junta-se a este factor a falta de monitorização do bebé em casa. “Neste momento e nos próximos tempos”, aceitar a proposta do Sindicato dos Enfermeiros “seria andar 50 anos pata trás”, “seria um desastre”, porque temos hoje um nível de mortalidade infantil “das melhores do mundo”.
É assim que, na sua opinião, a proposta dos enfermeiros “não tem ponta por onde se lhe pegue”. Ver esta medida como uma forma de fazer face à escassez de médicos é esquecer a outra metade do problema, a enorme escassez de enfermeiros ainda especializados. “Não íamos resolver um problema, íamos criar mais um.”
É preciso humanizar o parto
Divergências à parte, numa coisa o médico está de acordo. É essencial humanizar o ambiente do parto e lembra uma experiência que conhece e que está algures no meio termo entre as duas posições. Em Inglaterra, no hospital onde trabalhou existia uma zona do hospital despida de camas metálicas, metais reluzentes, batas brancas. As camas são “como aquelas que temos em casa”, podem entrar os outros filhos, a família alargada, as mães escolhem se querem a monitorização ou não. Mas, perante a aparente normalidade de um ambiente como o de lá de casa, está-se numa zona de tranquilidade, de um hospital, e a qualquer momento se pode acorrer a uma emergência.
Não nega que o ambiente do hospital pode ser stressante e que cria terror ao parto e ansiedade. “É necessário maior acompanhamento humano” e os enfermeiros são os mais adequados para o fazer, defende.
Carlos Santos Jorge também vê o parto como um acto natural, diz mesmo que em 95 por cento das gravidezes não há qualquer necessidade de acompanhamento médico, é natural que tudo ocorra naturalmente. Mas e os restantes cinco por cento? Por mais que a gravidez seja acompanhada, o parto continua a ter muitos factores imprevisíveis, mesmo que aparentemente esteja tudo bem. “Tudo depende do risco que cada um quer correr.”
Jornal Público – 24 de Dezembro de 2003