O Curso de Especialização em Atenção Integral à Saúde Materno Infantil
CONVIDA
Para a conferência do Prof. Dr. José Ricardo de C. M. Ayres
Docente titular
Departamento de Medicina Preventiva – USP
“Ensinar o Cuidado: Quem? Quando? Como?”
11 de agosto – 4ª. feira – 10h30
Auditório nobre da Maternidade Escola da UFRJ
Rua das Laranjeiras, 180 – Laranjeiras – Rio de Janeiro – RJ
Entrada gratuita
Leitura recomendada:
Integralidade do cuidado, situações de aprendizagem e o desafio do reconhecimento mútuo.
José Ricardo de C. M. Ayres
Médico Sanitarista, Professor Titular do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
O usuário, o profissional e o professor: integralidade numa hora dessas?
Integralidade não é um princípio da atenção à saúde exatamente fácil de conceituar, tampouco de colocar em prática, o que dirá de ensinar! Isso é verdade. Mas talvez seja apenas uma “meia verdade”. Talvez essa escalada de dificuldades, que culmina com a missão quase impossível do ensino, seja mais um efeito daquilo mesmo a que queremos resistir quando buscamos a imagem da integralidade como horizonte norteador de nossas ambições emancipadoras no campo da saúde.
Se a observarmos com atenção, veremos que há embutida na construção acima a idéia de um conceito base, um saber fundador, que levamos à prática para aplicar e que, então, pode ser reproduzido, transmitido para o aprendiz que, em seguida, reiniciará o ciclo, se não até nova transmissão, ao menos até sua reiterada aplicação.
Mas será que o núcleo mais fecundo do princípio de integralidade se conforma a tal modelo? Será que se trata de um preceito abstrato que “desce” às práticas para iluminá-las e orientá-las, podendo ser transmitido como uma ferramenta técnica? Penso que não e, ao afirmá-lo, quero de certa forma subverter a proposição inicial e sugerir que as dificuldades do ensino da integralidade podem ser superadas, ou ao menos minimizadas, se conseguirmos fugir da tradicional rota: fundamento teórico, aplicação prática, ensino e reprodução. Isto porque o mais fecundo da integralidade é justamente seu apelo para que, a partir de situações práticas concretas, identifiquemos modos como diferentes saberes e ações em saúde podem ser chamados a configurar um conjunto intimamente entrelaçado, segundo uma arquitetônica própria, de oportunidades para o conhecimento e a ação em prol da saúde de grupos humanos ou indivíduos.
Então a integralidade não se coloca como ponto de partida de partida, como fundamento, mas sim como organizador do movimento que transita entre partes e todo na definição do irresistível chamado prático do cuidar/cuidar-se (Ayres, 2009b). Se ainda tendemos a ver a integralidade no Olimpo das idéias iluminadoras, é porque talvez a reconstrução tardo-moderna da nossa noção de racionalidade e conhecimento (Gadamer, 2004; Habermas, 1988) seja ainda muito recente para nos permitir conviver produtiva e serenamente com a imanência prática dos saberes, mesmo dos saberes de pretensão transcendental ou quase-transcendental. Nossa “angústia cartesiana” (Bernstein, 1983), leva-nos sempre de volta à busca do conhecido e supostamente sólido refúgio das idéias claras e distintas e sua segura condução em meio ao complexo, mutável e indeterminado em nosso cotidiano. Se aceitarmos na sua radicalidade a idéia de que aquilo que as diferentes ciências da saúde e suas técnicas têm a nos dizer ganham seu sentido mais pleno quanto mais interpretadas em totalidades práticas, conformadas pela compreensão de desafios concretos e singulares (o que não é sinônimo de aplicação particular de uma regra geral), então poderemos reconstruir completamente nossa primeira asserção: quanto mais perto das situações de prática mais fácil aprender integralidade.
Em outro ensaio (Ayres, 2009a) referi-me a quatro dimensões em que pareceu possível, ao grupo de pesquisadores ao qual pertenço, flagrar o tipo de efeito organizador que a integralidade exerce sobre os movimentos das práticas de saúde em sua operação técnica: 1) no enriquecimento das necessidades postas para o trabalho em saúde; 2) no aproveitamento e inter-referência das diferentes finalidades em que se estruturam os processos de trabalho em saúde (promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação/re-inserção social); 3) na construção de articulações entre diferentes disciplinas e setores para a construção de respostas às necessidades de saúde; 4) na abertura dialógica e afetual[1] às interações que realizam os encontros entre as pessoas nas situações de cuidado (populações, serviços, usuários, profissionais). Ora, é quase intuitivo perceber em que sentido estas dimensões atraem o olhar. Certamente não será para o pólo abstrato dos discursos teóricos, mas para o pólo concreto onde acontecem as experiências práticas nas quais estão consubstanciados os discursos teóricos, atualizando-os constantemente.
Então podemos ser otimistas: ensinar o cuidado em condições de prática não só facilita o aprendizado da integralidade como ajuda a compreendê-la, ajuda a conhecer melhor os saberes e as técnicas de que os sujeitos cuidadores podem lançar mão quando se trata de responder cotidianamente às necessidades dos sujeitos que buscam cuidar-se. Não podemos nos esquecer, porém, que a integralidade não está dada como rotina em nossas práticas cotidianas de saúde – ou não preocuparíamos tanto com ela e não a encontraríamos tão rarefeita como conceito. A dificuldade de ensinar integralidade não decorre da dificuldade de conceituá-la, mas de praticá-la e nisso, profissional e professor se equiparam em suas angústias e perplexidades, frente ao paciente ou ao aluno. Por isso proponho pensar que, talvez, essa triangulação de papéis no contexto intersubjetivo do cuidado seja não um complicador, mas uma oportunidade de perceber o que em outros encontros não preocupados com o aprendizado permaneceria invisível.
A dor é de quem tem.
Camila, aluna de medicina do quarto ano, realiza estágio prático de uma disciplina curricular sobre atenção primária em nosso Centro de Saúde Escola. A paciente que vai atender é Leila, uma gestante. Eu, seu professor, discuto previamente com ela as informações sobre a paciente contidas no prontuário, discorro um pouco sobre os objetivos do pré-natal e suas rotinas e passo o caso para a aluna, para que faça a anamnese e o exame físico e traga o caso para a supervisão. Algum tempo depois, Camila volta, com a história clínica colhida e o exame apenas parcialmente concluído. Está preocupada justamente com isso: não consegue “pegar o foco”, isto é, auscultar os batimentos cardíacos do feto. Vou com ela até o consultório e, após o correto posicionamento do sonar, conseguimos localizar aquele inconfundível e delicioso som. Felizes, eu e ela nos deixamos ficar ali talvez um pouco mais do que o necessário, ouvindo o “batuque” frágil e apressado, sinal da presença de uma vida que parece ávida de acontecer. Acho que estávamos menos preocupados com o ritmo e com a freqüência dos batimentos que interessados em desfrutar daquele maravilhoso mistério que uma tecnologia simples nos revelava. No meio da rotina de uma sempre agitada manhã de trabalho, momentos como esse sempre têm o efeito de um oásis. Camila, visivelmente emocionada, se volta para Leila: “Tá ouvindo?! É o coração da sua criança!”. Leila, parecendo indiferente àquilo tudo, responde com um seco “Hum hum”, e permanece com um ar distante e a atitude de quem parecia estar só esperando que a gente terminasse logo o exame. Voltamos à minha sala. Camila estava completamente decepcionada e chocada. Como era possível tamanha indiferença diante de um momento tão especial?!
A situação acima repete-se, em seus traços gerais, em inúmeras situações de ensino-aprendizado em serviço. Há, com freqüência, desencontros entre as expectativas, os interesses e os valores dos diversos sujeitos em interação. Não estivesse a aluna presente na cena, provavelmente tivesse acontecido o mesmo desencontro. Talvez, porém, passasse desapercebido, ou ao menos não problematizado. A ingenuidade do aprendiz na situação de prática, sua espontaneidade, sua crença ainda quase absoluta no poder resolutivo das ciências e das técnicas, sua surpresa ao descobrir seus limites, seu assumido e explícito desconforto diante da não conformidade do paciente aos seus próprios projetos faz emergir parte substantiva dos desafios práticos aos quais o princípio da integralidade busca responder.
Na discussão posterior com a aluna sobre sua decepção diante da suposta indiferença da gestante aos batimentos cardio-fetais, problematizamos a situação. O que significaria para ela aquele som? Significaria o mesmo que para nós? Ela já tinha ouvido aquele som antes? Se não, que terá parecido a ela? Que terá lembrado? A que experiências terá remetido? Se sim, a que experiências estaria associado? Ela tinha outros filhos? Ela tinha feito outros seguimentos de pré-natal? Como foram essas experiências? E esta mesma gravidez, foi desejada? Com o que ela estaria preocupada? Por que ela está fazendo pré-natal? O que estaria esperando de nós? O que poderíamos oferecer a ela? O que nós estávamos esperando dela? O que ela poderia nos oferecer? Será que ela percebeu nossa emoção? Como a teria interpretado? Como a teria julgado? Como estaria julgando nosso trabalho?
Não importa aqui as respostas que encontramos, ou se estas eram as melhores perguntas a fazer. O que importa aqui é o próprio perguntar. Ao ser desacomodado da condição estrita de profissional pela presença da aluna, minhas perguntas – que, em outra situação em que não precisasse “ensinar”, tenderiam a se limitar ao questionário pré-categorizado e monológico da anamnese – foram atraídas para outra natureza de questionamentos. A ausculta dos batimentos antes responderia basicamente a 4 perguntas: Está presente? Onde está localizado? Está com a freqüência normal? Está com o ritmo normal? Com isso o profissional estaria tecnicamente informado para tomar decisões cientificamente fundadas sobre o quê fazer para propiciar o bom curso da gravidez. Mas a aluna, menos “adestrada” que eu, rompe o curso previsível do exame trazendo para a cena o significado daquele som: “É o coração da sua criança!”.
Com isso as perguntas mudam de sentido. Se atentarmos bem, veremos que das 4 perguntas técnicas fundamentais desdobram-se, sobre um pano de fundo que não é mais a normalidade morfo-funcional da gestação, mas que é agora a experiência concreta da gravidez e do pré-natal daquela mulher, em outras tantas que apontam para as quatro dimensões da integralidade acima indicadas: as necessidades trazidas efetivamente por aquela mulher para o nosso serviço; as finalidades que deviam ser incorporadas ao seu cuidado de saúde e de seu neném; os saberes e recursos que devem ser articulados para fazer isso com competência e qualidade; e modo como podemos interagir para que a compreendamos em suas necessidades e possibilidades, e ela às nossas, para assim construirmos um cuidado integral para ela e a criança.
A subsunção da totalidade morfo-funcional à totalidade prático-moral reorientou a dialética de perguntas/respostas que guiavam o trabalho ali realizado, favorecendo a transformação de seus objetos, meios e produtos na direção da integralidade do cuidado daquela grávida. Com efeito, em todo o trabalho em saúde está implícita uma hermenêutica, isto é, um processo de compreensão/interpretação de uma situação singular orientado pela necessidade prática de saber o que está em questão e, indissociavelmente, decidir o que fazer. A questão reside em como construímos essa hermenêutica, a natureza da totalidade que conduz nossa atenção para as partes que, no mesmo processo, darão inteligibilidade à totalidade. Quanto mais exclusivamente nos orientamos pelo pólo tecnocientífico das práticas de saúde mais esta hermenêutica vai assumindo o sentido “fraco” de uma aplicação técnica de leis gerais a situações particulares de intervenção. Mas em processos de trabalho em saúde concretamente operados não há êxito técnico independente dos significados da intervenção frente à situação sócio-cultural, econômica, política e existencial de populações e indivíduos, isto é, vai depender de que se torne, simultaneamente, um sucesso prático (Ayres, 2009b). Então precisamos realizar uma hermenêutica no sentido forte, de um encontro entre sujeitos, que visa construir objetos e instrumentos capazes de produzir o que as pessoas precisam, em cada situação, para alcançarem seus projetos de felicidade. Na busca exclusiva do êxito técnico, a totalidade que buscamos para agir em saúde é morfo-funcional; só formas e mecanismos poderemos encontrar como subsídios para a ação. Se consideramos, porém, a mútua dependência de êxito técnico e sucesso prático no trabalho em saúde, isto é, se o entendemos como cuidado integral, então a totalidade visada buscará a experiência vivida, na qual essas formas e mecanismos ganham significado prático para os sujeitos.
Mas o leitor deve estar se perguntando, e com razão, se a mudança de perspectiva na situação descrita – de uma hermenêutica fraca da anamnese tecno-centrada à hermenêutica forte do questionamento prático-moral – só foi possível pela presença da aluna. Certamente que não! Mas a presença do aprendizado, essa sim, foi indispensável!
A resposta pode parecer paradoxal, mas não é. O que quero dizer é que a aluna, diante da surpreendente indiferença da paciente aos batimentos cárdio-fetais, poderia ter se calado. Ou o professor, frente ao espanto da aluna, ter ele próprio se calado. Poderiam, ambos, calados ou não, ter passado por aquela experiência buscando não se deixar afetar pelo desencontro vivido, ou poderiam ter respondido a este desencontro com paixões tristes (Teixeira, 2004), que desqualificassem o forte apelo da situação à reflexão, diálogo e reconstrução, respondendo, ao invés, com pena, condenação moral ou desqualificação. Ou, ainda pior, poderiam ter buscado resistir à presença inusitada daquele sujeito, que irrompe inesperadamente a previsível cena do pré-natal, com sua “re-objetificação” em algum diagnóstico médico ou psicológico. Igualmente, mesmo sem estar desempenhando a função de professor, um profissional de saúde interpelado pelos móveis prático-morais de seu ofício pode abrir-se, espontaneamente, à “suspensão” crítica de seu raciocínio morfo-funcional, para re-situá-lo frente aos sucessos práticos reclamados.
O ponto que quero destacar é que tanto as vivências práticas, para o ensino, quanto o ensino, para as vivências práticas, têm um expressivo potencial sinérgico. A agudeza com que a cena descrita elucida os sentidos em que a integralidade do cuidado é reclamada por uma atenção à saúde efetiva dificilmente teria sido obtida em uma situação de aula expositiva, por mais sofisticada que fosse a pedagogia e arrojados os recursos didáticos. No mesmo sentido, em direção inversa, cabe indagar que outro elemento teria tanta força para desacomodar um profissional de saúde do quase automático operar de seu ofício quanto a necessidade de compreender e explicar a alguém as infidelidades que lhe são impostas pelas diversas situações de prática. Mas o que está por trás deste sinergismo? O que diferencia práticas com aprendizagem e aprendizados em situações de prática que os torna tão fecundos para a compreensão e operação da integralidade do cuidado? A resposta me parece uma só: a presença menos abstrata e mais exigente dos sujeitos a quem se dirigem as ações de saúde, em sua constitutiva alteridade em relação à identidade do profissional e em sua resistência à completa “objetificação”. Em outras palavras, o que estas situações agudizam, e que é um dos pilares fundamentais do cuidado integral, é a importância do reconhecimento mútuo entre profissionais e destinatários das ações de saúde para a construção de práticas de atenção e ensino bem sucedidas.
O reconhecimento mútuo e o cuidado.
O adensamento conceitual de uma filosofia do cuidado ainda aguarda o desenvolvimento consistente de uma reflexão sobre a questão do reconhecimento mútuo. Já é em larga medida compreendido e aceito o caráter intersubjetivo de nossas identidades de agentes e destinatários das ações de saúde, conformadas no plano macropolítico das instituições e normas, onde se tornam legitimadas como práticas sociais, e no plano micropolítico dos diversos contextos de ação técnica, nos quais sua conformação e legitimidade se atualizam e reconstroem continuamente. É, por isso mesmo, também razoavelmente aceito que práticas de saúde emancipadoras dependem substantivamente de diálogos o mais possível livres e simétricos entre os diversos sujeitos envolvidos nos seus processos macro e micro políticos. O que, contudo, segue reclamando melhor compreensão é o modo como tais processos dialógicos podem chegar, de fato, a acontecer. O que está a exigir de nós maiores investimentos teóricos é o esclarecimento dos processos que nos permitem fundir horizontes e reconstruir de modo dialógico as práticas de saúde em contextos de profundas desigualdades de poder entre seus sujeitos e de um penetrante monólogo tecnicista, que resiste à alteridade (de projetos, de valores, de formas de expressão) por meio de um onipotente discurso objetivante, que busca traduzir toda a diversidade das experiências de saúde e doença como variações (de extensão ou intensidade) de uma mesma fenomenologia biomédica. O que nos falta é compreender como podem os sujeitos chegar a se reconhecerem mutuamente, para que possa haver diálogo de fato.
O que aconteceu quando Leila reagiu com uma inesperada indiferença ao convite da jovem aluna à emoção da maternidade? Por que Camila se sentiu tão frustrada com a indiferença da gestante? O que se revela nesse (des)encontro terapêutico? Como poderia decorrer dessa situação um diálogo capaz de levar ao sucesso prático o cuidado daquela paciente?
Independente das razões que a levaram a isto, certo é que Leila não era, frente à aluna, a mãe emocionada que ela buscava. Não podemos sequer saber se ela estava emocionada, a despeito de não aparentá-lo, ou se a emoção da maternidade se expressaria mais abertamente em outras oportunidades ou situações. Só sabemos é que, ali, não era como mãe emocionada que a pessoa Leila se apresentava. Diante disso, a primeira tendência de Camila não foi procurar reconhecer quem se apresentava como Leila, mas espantar-se com a “gestante incompleta” que se lhe apresentava. De outro lado, como interpretar a atitude de Leila? Sua não resposta (o que é diferente de responder negativamente) ao convite de Camila à emoção maternal foi sinal de impotência ou um corajoso modo de resistência a uma identidade que não queria assumir ali, uma luta, aquela possível ali, por fazer-se reconhecer de outro modo?
Axel Honneth, filósofo alemão contemporâneo, é um dos poucos, na atualidade, a tomar o reconhecimento como questão para um estudo sistemático, o que, como aponta Ricoeur (2006), não deixa de ser surpreendente, dada a inequívoca relevância do tema – do que nos dão conta a freqüência e pervasividade do termo no léxico comum e nos discursos filosóficos, não obstante a polissemia e dispersão aí observadas. É fundamentalmente de sua obra “Luta por reconhecimento, a gramática moral dos conflitos sociais” (HONNETH, 2003) que virão as preliminares aproximações que aqui faremos à questão.
Entre os diversos sentidos que o reconhecimento foi assumindo na linguagem filosófica, Ricoeur identifica três grandes núcleos de significação: o reconhecimento como identificação de algo, o reconhecimento como identificação de si mesmo e o reconhecimento como identificação mutuamente referida do si mesmo e do outro. Focaliza neste último a contribuição de Honneth, como uma espécie de atualização da filosofia hegeliana do período de Iena, no momento que precedeu a construção da Fenomenologia do Espírito. Demonstra como a filosofia do reconhecimento (anerkenunng), tal como formulada por Hegel, foi uma resposta ao desafio moderno de construir uma compreensão da coesão social em uma sociedade cuja normatividade não promanava mais de qualquer atribuição a priori e transcendente de identidades e relações, mas, ao contrário, apoiava-se ideologicamente na liberdade dos indivíduos frente a um mundo naturalmente aberto ao seu saber, querer e agir. Ricoeur aponta a filosofia hegeliana como uma resposta à visão contratualista de Hobbes, que via as normas sociais como um contrato decorrente do medo de não sobrevivência em um mundo onde cada um quer fazer valer seus próprios interesses. A esta concepção, Hegel opôs uma visão dialética, onde o saber, o querer e o agir de cada um já esta sempre em relação com a consciência que temos de nós no outro e do outro em nós, de modo que a contratualidade é substituída por uma racionalidade historicamente imanente na compreensão da normatividade social.
Honneth retoma a filosofia hegeliana da anerkennung, mas, como legítimo herdeiro da Teoria Crítica frankfurtiana pós-habermasiana, ele a reconstrói nos marcos do diálogo entre a reflexão filosófica e a pesquisa empírica, de um lado, e da Teoria da Ação Comunicativa, de outro. Assim, não é mais a consciência, como expressão de um espírito absoluto que se realiza na e como história, que responde pela aposta normativa no reconhecimento mútuo como categoria central da filosofia política, mas a efetividade pragmática de uma racionalidade discursivamente construída; da mesma forma, não serão mais de caráter especulativo as bases proposicionais da reflexão, mas buscarão sempre mais apoiar-se na validação oferecida pelos diversos ramos da pesquisa nas ciências humanas. E, acima de tudo, é fundamentalmente na perspectiva de uma reconstrução crítica ética e politicamente situada que se buscará delimitar as pretensões e condições de validade pretendidas pela teoria. É a partir destas premissas que Honneth vai identificar na luta por reconhecimento o movimento que funda o sincrônico processo de construção da identidade pessoal dos sujeitos e das normas que regulam suas relações sociais, identificando, contrafaticamente, o desrespeito como a “patologia” social que nos cobra ativamente um esforço crítico-reconstrutivo de natureza emancipatória.
Em termos bastante sintéticos, Honneth, apoiando-se reconstrutivamente em autores como o próprio Hegel, Mead, Winnicott, Weber, Marx, Sorel, Sartre, entre outros, delimita três planos em que se dá a construção do reconhecimento mútuo. Em um primeiro plano, situa a experiência do amor. Este é o plano em que, a partir de um núcleo singular e insondável da individualidade (o Eu), constroem-se dinamicamente delimitações e “deslimitações” da identidade pessoal (o Si mesmo) por meio das trocas afetivas com aqueles que se responsabilizam por seu cuidado. Honneth assume, com Winnicott, que é a partir dessa relação com a mãe (ou quem ocupe esse papel), do modo como ela sinaliza sua presença no mundo (com base na presença dela própria), que os processos de delimitação da identidade do Si (e a do outro) vão se plasmando. Mas este movimento de delimitação é indissociável de um movimento no sentido oposto, em que o Eu busca deslimitar-se, na busca incessante de responder aos modos como este passa a ser afetado desde o mundo externo de formas cada vez mais ricas ao longo de seu amadurecimento físico, psíquico e social. É primariamente a figura materna, mas progressivamente também os demais sujeitos com quem vai estabelecendo contacto afetivo, que, acolhendo seus impulsos deslimitadores, mas conferindo a eles novos limites (a “mãe suficientemente boa”), dá ao indivíduo a segurança e auto-confiança de que necessita para sua individuação/socialização.
Em continuidade a esse processo, Honneth enxerga no plano dos direitos a experiência de delimitação/deslimitação de pessoas autônomas, para as quais as interações eu-outro encontram-se já plenamente mediadas por processos racionais comunicativamente operantes. Seus impulsos transformadores relacionam-se não com o núcleo familiar das (quase)incondicionais relações afetivas, mas com a polis, regulada pela co-presença de outros cidadãos. A regulação social, como delimitação, é internalizada e já dialoga autonomamente com os interesses deslimitadores. Por fim, e já sob pleno desenvolvimento pessoal, o afetivo pode transitar livremente com a mediação dos processos cognitivos (racionais) de pertencimento, em uma busca de reconhecimento que se dá na experiência da solidariedade. Aqui, segundo Honneth, se pode falar de sujeito no sentido pleno do termo, onde os processos de delimitação/deslimitação ultrapassa a própria esfera do direito, sobredeterminando-a como a busca da boa vida social, à qual os direitos devem responder.
Nos três planos de experiência do reconhecimento, Honneth sustenta a idéia de luta, seja no sentido de simples resistência ou de uma atitude ativamente propositiva, sem o que, já desde as experiências amorosas, não podemos reconhecer quem é o outro nem fazer-se reconhecer pelo outro. Embora possa ser questionada sob este aspecto (Ricoeur (2006), por exemplo, o relativiza e chama a teoria da dádiva, de Mauss, em seu auxílio), a teoria de Honneth abre um importante caminho para, nos marcos de uma concepção dialógica de racionalidade, jogar luz não sobre como os processos comunicacionais podem vir socorrer-nos na solução dos inelutáveis conflitos da vida social, mas sobre as situações e motivos que justificam e orientam sua interveniência.
No caso das práticas de saúde tal contribuição não me parece pouco importante, e nos três planos de experiência delimitados por Honneth. Embora não possamos explorar aqui este tema com toda a propriedade, cabe apontar algumas potencialidades de sua discussão para a questão do cuidado.
No plano do amor, aponte-se a relevância do suporte acolhedor e lúcido do cuidador para que o outro ganhe auto-confiança e se aproprie criticamente de seus pertencimentos identitários, colocando-se em melhores condições de participar criativamente da construção de alternativas para compreender sua dor, identificar suas vulnerabilidades e superar os obstáculos aos seus projetos de felicidade (SALETTI FILHO, 2007).
O plano dos direitos é cada vez mais valorizado na promoção e proteção da saúde. De um lado, os direitos oferecem uma referência normativa fundamental para que os indivíduos e grupos possam identificar suas necessidades de saúde de modo integral e, de outro lado, lutar pela obtenção de respostas a elas nos serviços e políticas de saúde (FRANÇA JÚNIOR; AYRES, 2004). Do lado negativo da experiência dos direitos, isto é, do seu desrespeito, tem sido também denunciado o efeito danoso do estigma e da discriminação sobre a saúde física e mental de indivíduos e populações (MALUWA, AGLETON, PARKER, 2003).
Por fim, talvez um pouco menos explorado, mas igualmente instigante, as recentes discussões e ações sobre vulnerabilidade, especialmente no contexto da epidemia de HIV/aids, nos mostram o valor da solidariedade como caminho para a transformação de contextos e relações sociais que nos expõem ao adoecimento e ao sofrimento, de diferentes modos e intensidades, conforme nosso pertencimento social (AYRES, PAIVA, FRANÇA JÚNIOR et al., 2006).
E o professor numa hora dessas?
A situação prática que discutimos acima é, talvez, insuficiente para explorar em sua plenitude as potencialidades e desafios que a categoria do reconhecimento traz para prática do cuidado integral à saúde e seu ensino. Para isso seria necessário expandir “o caso” para as condições mais amplas que cercaram aquele encontro (identidades e pertencimentos sociais de Leila, as características do serviço, as condições da gravidez e suas necessidades, etc). É especialmente difícil encontrar os planos do direito e da solidariedade no espaço da atenção individual, dado o viés individualizante e naturalizante que caracteriza a maior parte das práticas de atenção individual.
Não obstante, vimos como o desencontro vivido pela aluna abriu uma chance rara, se considerados os ambientes habituais de aprendizado formal, para a experiência da alteridade e do desafio de reconhecimento mútuo no cuidado em saúde. É isso que me parece ser precioso no ensino em serviço, especialmente na perspectiva da integralidade, e que configura uma oportunidade que não se pode perder.
Em que outra experiência se poderia colocar em cheque, de modo tão convincente, a onipotência tecno-científica que nossa cultura já incute em nossos alunos antes mesmo de que entrem na universidade? Diversamente do que acontece no ensino estritamente interessado no adestramento técnico, e mais ainda nas aulas teóricas, experimenta-se em espaços de aprendizado deste tipo o vivo contraste entre o que idealizamos como objeto, meio e produto do trabalho em saúde e aquilo que efetivamente ocorre na complexidade da vida cotidiana e do cuidado integral. Leila ensinou a Camila, no mínimo, que as gestantes não eram todas como ela imaginava.
O estar em contacto com as exigências do cuidado integral convida nossos jovens alunos a experiências de reconhecimento que, como vimos, podem remeter a problematizações nas dimensões das necessidades, finalidades, articulações e interações. Dependerá em grande medida de nós, seus professores, a capacidade de demonstrar como estas dimensões se relacionam com os três planos apontados por Honneth – do amor, do direito e da solidariedade – na situação singular do encontro interpessoal da consulta individual, e de como interessá-los em explorar essas dimensões e planos em outros espaços de construção da saúde, especialmente da saúde pública.
Como se vê, os processos de reconhecimento mútuo em questão aqui não se limitam às relações entre os diversos sujeitos sociais e o Estado, entre os cidadãos e as políticas e serviços de saúde ou entre os pacientes e seus cuidadores. O ensino do cuidado depende também de progressivos refinamentos no reconhecimento mútuo de quem somos nós, professores e alunos, aprendizes, todos, do lugar do cuidado nos caminhos da integralidade.
Referências bibliográficas
AYRES, J. R. de C. M. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.18, s. 2, p. 11-23, 2009a.
AYRES, J. R. de C. M., PAIVA, V., FRANÇA JÚNIOR, I. et al. Vulnerability, human rights and comprehensive health care needs of young people living with HIV/AIDS. American Journal of Public Health, v. 96, n. 6, p. 1001-1006, 2006.
AYRES, José Ricardo de C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO, 2009b. 282 p.
BERNSTEIN, Richard J. Beyond objectivism and relativism: science, hermeneutics and praxis. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1983, 284 p.
FRANÇA JÚNIOR, Ivan, AYRES, José Ricardo de C. M. Saúde pública e direitos humanos. In: FORTES, Paulo Antônio de C., ZOBOLI, Elma Lourdes C.P. (Orgs.). Bioética e saúde pública. São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2004, p. 63-69.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2004, 631 p.
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa I: racionalidade de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1988. 517 p.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003. 291 p.
MALUWA, M., AGLETON, P., PARKER, R. G. HIV and AIDS related stigma, discrimination and human rights. Health Hum Rights, Boston, v.6, p. 1-18, 2003.
RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. 279 p.
SALETTI FILHO, Haraldo César. Cuidado e criatividade no contínuo da vulnerabilidade: contribuições para uma fenomenologia hermenêutica da atenção à saúde. 2007. 304 p. Dissertação de Mestrado (Mestre em Ciências) – Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
TEIXEIRA, R. R. A grande saúde: uma introdução à medicina do Corpo sem Órgãos. Interface – Comunic., Saúde, Educ., Botucatu, v.8, n.14, p.35-72, 2004.
[1] Utilizo o neologismo para remeter ao conceito de afeto no sentido espinosano, tal como reaproveitado por Teixeira (2004).