MODELO BIO-MÉDICO TECNOCRÁTICO É DOMINANTE
Enquanto continuarmos atrelados à idéia do risco iminente (eu chamei há meses atrás esta questão de “o tratamento da mulher bomba”) continuaremos a escutar a mesma retórica dos médicos.
Mais uma vez sou obrigado a citar a antropóloga americana Robbie Davis-Floyd: “Segurança é o disfarce que esconde a verdade que subjaz: o poder”
A tal “era Leboyer” em verdade entrou para a história como um marco conceitual no sentido de que, pela primeira vez na história, havia uma preocupação consistente com os rumos que a hospitalização do nascimento imprimiria no psiquismo fetal, antes tido como inexistente ou insignificante. Leboyer certamente nasceu em um parto domiciliar, e como pediatra observou uma modificação radical nos rumos da história ao presenciar “in loco” um dos maiores movimentos migratórios da história da humanidade: a ida das mulheres para parirem em hospitais e sob o controle dos médicos. Diante da magnitude desta transformação, e preocupado com as repercussões deste novo e avassalador modelo, escreveu um livro em que solicita que o recém-nascido seja tratado com o devido respeito e consideração.
Como sabemos, o prof. Leboyer não emprestava uma atenção muito grande à mãe e sua dinâmica afetiva, espiritual ou mesmo fisiológica. Os partos eram realizados às escuras e o bebê era banhado logo após, com carinho e proximidade, mas as mães ainda pariam em decúbito dorsal e eram episiotomizadas. Não havia ainda, no início dos anos 70, um debate mais aprofundado sobre as violências cometidas contra a mulher nas maternidades. Esta falha, que aponto apenas por ser um obstetra humanista, são por conta de sua época, e não diminuem a importância do mestre, tratado por Michel Odent como o “pai de todos”.
No contexto da segurança, nada mais natural que pediatras coloquem o nascimento humano como algo absolutamente arriscado, cheio de espinhos e terrivelmente perigoso. Pediatras ganharam importância no cenário do atendimento médico ao utilizarem a sua arte no atendimento de recém nascidos graves, asfixiados e em mau estado geral. Nada mais fácil de entender que sua importância (e seu poder) se expresse demonstrando que a fragilidade do recém nascido justificaria a presença de um profissional da área ao lado de cada parturiente.
Apesar de entender a legítima preocupação dos colegas pediatras com tal questão, somos obrigados e contextualizá-la dentro de um sistema de poderes conflitantes que se exercem sobre a medicina. Pediatras, tanto quanto obstetras, são treinados para o atendimento de patologias, e não para o acompanhamento de recém nascidos normais. A nossa formação é iatrocêntrica e etiocêntrica, isto é, centrada na figura do médico e da doença. Acreditamos que os hospitais são disseminadores de saúde assim como padres acreditam que as igrejas são disseminadoras da fé, mesmo que se lhes argumente que Deus está em toda a parte e, portanto, a Igreja não teria tal importância. Quem já observou um pediatra recém formado em sala de parto percebe a sua ansiedade para agir, a sua volúpia por pegar o bebê da mãe e poder usar a sua arte, a sua técnica e o seu saber, mesmo sobre uma criança absolutamente normal. Tanto isso é verdade que iniciei, na minha prática pessoal em hospitais, a prática de NÃO cortar o cordão umbilical logo após o nascimento dos bebês. Primeiro porque os dados me mostravam a inutilidade de tal conduta e os possíveis efeitos deletérios para o recém-nascido ao ser privado de seu próprio sangue retido no tecido placentário; segundo, porque isso permitia que os bebês obviamente em boas condições não fossem “seqüestrados” por um jovem pediatra intervencionista e ansioso. No hospital que eu atendia, até uns anos atrás, o padrão de atendimento pediátrico era o mais intervencionista possível. O afastamento imediato da mãe e seu bebê era a rotina. Por causa de minhas idéias humanistas, TODOS os meus bebês eram diagnosticados como “dispnéia transitória” e ficavam “em observação” pois ao nascerem de cócoras e de parto normal eram considerados “de risco”, mesmo que de forma velada. É óbvio que TODOS esses bebês desenvolviam “Síndrome da Angústia de Separação”, mas isso era pouco valorizado por neonatologistas tecnicistas e frios.
Tenho um irmão que é pneumopediatra e professor da universidade local (PUC). Tenho inúmeros amigos pediatras. Nada tenho contra a pediatria como especialidade, aliás, minha segunda escolha como estudante de medicina. As críticas que faço ao atendimento pediátrico são as mesmas que faço à minha própria especialidade. Usamos intempestivamente tecnologia, e de forma equivocada. Tratamos as mulheres (e seus bebês) com uma desconfiança básica, surgida do especial viés que criamos para analisar a sociedade: a tecnocracia.
Este sistema de poder, que coloca em destaque os que controlam a tecnologia, determina que os acréscimos tecnológicos são assimilados rapidamente sem que se tenha o tempo adequado para avaliar seus efeitos sobre as pessoas. A tecnologia (ou como Maximilian a chama: “Deusa Techné”) tem um valor mitológico e pré racional em nossa sociedade. Ela é mais poderosa que a razão, pois é uma Deusa. Aplica-se a ela a máxima de São Tomás de Aquino: “Se a razão e a teologia (tecnologia) entrarem em conflito, a teologia estará com a verdade, porque a razão facilmente se perde e se engana.”
A hospitalização do nascimento, o uso de drogas na gestação e no parto, o afastamento de crianças de suas mães e o confinamento em berçários, o aleitamento artificial etc.. são exemplos de iatrogenias provocadas pelo nosso particular sistema de crenças tecnocrático biomédico contemporâneo.
Lembrem-se que, em se manifestando como a sucedânea da religião no imaginário social, a medicina trata seus pressupostos como dogmas, e seus críticos como hereges. Como a presença de médicos no atendimento ao parto é um mito médico, se você tratar desta questão de maneira crítica, científica e aberta, estará atacando um dogma religioso da medicina, e pode facilmente ser tratado como herege, na medida em que ameaça as arquitetura fundamental de nossa importância social. Um intelectual qualquer que se aventurasse a questionar a virgindade de Maria, como era tratado pelos inquisidores? Da forma mais penosa possível, porque ameaçava o poder verticalmente construído da eclésia.
Quando atingimos um nível de agressão preocupante sobre as bases estruturais da nossa sociedade começam a brotar, de forma espontânea, manifestações de preocupação que se expressam na cultura de forma esparsa porém consistente, e apenas ilusoriamente desconexas. Quem teve atenção adequada, pôde perceber a proliferação de filmes que tratam da questão da humanidade e da civilização em si, e a forma como estamos conduzindo o porvir de nossa espécie no contexto do afastamento da natureza e em direção à tecnologia infinita. Barbarella (e a maravilhosa cena de sexo “à distância”), Tron, MATRIX, O Exterminador do Futuro, Minority Report, ExistenZ, Inteligência Artificial, etc… exploram a questão das máquinas tomando o lugar do homem, naquilo que os antropólogos modernos chamam de “a questão cyborg”, ou a “cyborguificação da humanidade” (desculpem a tradução horrível, mas o termo é de Robbie “Cyborgification of Humanity”. Essas manifestações expressam, na arte, a mesma questão que os humanistas discutem na medicina: o que estamos fazendo da feminilidade, do nosso corpo e do futuro da humanidade?
Este específico sistema de crenças contemporâneo, a tecnocracia, possui um especial modo de ver a realidade. Para fazer valer seus pressupostos precisa entender a mulher e o processo de nascimento como essencialmente defectivos, falhos, anômalos e equivocados. Só assim o poder da tecnologia (e de quem a controla) poderá se expressar e se manter. Se entendermos o parto como um fenômeno fisiológico, diminuiremos a importância dos especialistas, pois afinal não há mais tanta gente a salvar, visto que nossa visão seria focada na normalidade.
A questão levantada da “banalização” do parto é respeitável, mas não parte de nenhum humanista sério esta proposta. Hegelianamente falando, a humanização do nascimento propõe-se a acrescentar a ponta faltante da tríade dialética: ela se oferece como a síntese dos paradigmas conflitantes. De um lado o naturalismo, que banaliza o nascimento humano e acredita piamente que a “vis medicatrix naturae” dará conta de todo o processo. No outro extremo encontramos o paradigma dominante: a tecnocracia biomédica, que acredita que a tecnologia é o único meio de salvaguardar o bem estar de mães e bebês, visto que a mulher não é um veículo confiável para a tarefa fabulosa de trazer “nossas” (e não mais “delas”) crianças para o mundo social. No naturalismo, uma confiança irrestrita na natureza; na tecnocracia uma desconfiança básica na mulher e nas suas capacidades. Nesse cenário a Humanização do Nascimento se propõe a suprir a falta de um meio termo, de um modelo que ofereça segurança e suporte social e afetivo. No dizer de Wenda Trevathan, antropóloga americana, “temos pela primeira vez na história a possibilidade de oferecer o melhor de dois mundos, no que tange ao nascimento humano”. A proposta dos humanistas é a utilização adequada de tecnologia para suprir as necessidades de segurança para os atendimentos que VERDADEIRAMENTE necessitam de suporte tecnológico, associado a uma compreensão clara da dinâmica afetiva das pacientes que estão atravessando um rito de passagem de tal magnitude. Preconiza que todo o aporte tecnológico é bem vindo, mas somente quando seus benefícios claramente suplantarem suas notórias e conhecidas desvantagens.
Banalização eu observo no uso da tecnologia, e disso não resta mais nenhuma dúvida. Hospitais em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo com mais de 80, 90% de cesarianas dispensam comentários. Que repercussões isso produz na civilização, como pergunta o mestre Odent? O que isso representará para as novas gerações? O que importa a fecundação sem sexo para a sexualidade das crianças que chegam a este mundo? O que significa o nascimento sem a “vaginalização” pela qual nossas gerações precedentes passaram? Qual o impacto recôndito, psicológico, afetivo, emocional e social destas novas tecnologias que retiram de nós porções consideráveis daquilo que até então nos definia como cultura e sociedade?
Tenho certeza que o colega pediatra assistiu muitas circunstâncias em que um atendimento adequado e pronto de um colega salvou a vida de um recém nascido. Eu também já presenciei. Vários inclusive, principalmente nos hospitais escola, pelo treinamento que era realizado pelos estudantes. Entretanto, presenciei muito mais vezes momentos em que um parto absolutamente normal foi atrapalhado pelas atitudes de obstetras e pediatras, porque agiram demais, cortaram demais, afastaram demais e sentiram de menos. Também meu colega pediatra deve reconhecer que muitas das vezes em que houve um atendimento de emergência ao recém nascido havia o uso abusivo de drogas no trabalho de parto, como ocitocina, morfina (ou outros opióides), analgésicos, cytotec, analgesias peridurais e a própria adrenalina, produzida endogenamente pelo medo insuportável desta uma mulher que foi afastada do marido, da mãe e de seus afetos. Além disso, essas mulheres estavam confinadas ao leito, com monitores fetais que as deixavam em decúbito dorsal e sem a presença do médico ao seu lado, lhe dando apoio e cuidado.
Num contexto de afeto, amor, tranqüilidade, carinho, SEGURANÇA subjetiva (sensação de estar segura), qual seria a real necessidade de intervenção?
Existem alguns exemplos importantes de citar: Na Holanda, que tem os índices mais adequados de morbi-mortalidade perinatal do mundo, 33% dos partos são realizados em domicílio, por parteiras treinadas no atendimento ao parto e ao recém-nascido. Porque este modelo é desconsiderado quando se aborda partos sem médico?
A parteira Ina May Gaskin, no Tennesse, comanda há mais de 30 anos um centro de nascimento em que já nasceram mais de 2000 crianças. O hospital mais próximo fica há 1 hora de viagem de carro. Seus índices de cesariana são de 1.4 % (menos de 2%) e a mortalidade perinatal é menor do que qualquer hospital americano, mesmo se considerarmos apenas os atendimentos de baixo risco. São 30 anos de atendimento e um “n” de mais de 2000 casos. Nenhuma morte materna.
Um intensivista meu amigo me dizia: “Para mim, a pior doença que existe é a gravidez”. Perguntei para ele qual a razão de tal comentário e ele explicou: “Trabalho na UTI de um hospital materno-infantil. Não tenho nenhum contato com a especialidade obstétrica, e tudo o que recebo de vocês é mulher sangrando, mulher com eclâmpsia, mulher com infecção. É um horror”
Esse viés negativo sobre o nascimento é típico dos especialistas que têm dificuldade em ver a abrangência maior de um evento. É o mesmo fenômeno que ocorre com as pacientes que são transferidas das Casas de Parto para os hospitais americanos. Os médicos afirmam: “Viu? Das parteiras só chegam bombas”, sem perceber que para cada transferência de pacientes em maior risco, dezenas de partos absolutamente normais foram realizados e com sucesso. E exatamente as “bombas é que necessitariam ser transferidas, oferecendo aos médicos, pediatras e obstetras, a excelência do seu atendimento, qual seja, a atuação diante de uma patologia.
Existe, além disso, um fato sobre o qual não cabem muitas discussões. A biblioteca Cochrane deixa muito claro que o atendimento prestado por parteiras em Casas de Parto é tão ou mais seguro do que aquele em que as pacientes são atendidas em hospitais, quando pertencentes ao mesmo grupo de baixo risco (mesmo se considerando as transferências). O modelo desmedicalizado é um sucesso insofismável na Europa, com as menores taxas de intervenção e os melhores resultados maternos e neonatais. Fechar os olhos para estas evidências é negar os fatos científicos atualizados.
As vantagens do modelo são claras, a não ser que entremos mais uma vez na senda racista e de menosvalia nacional, achando que “na Holanda é possível, mas no Brasil não dá”. Isso é absurdo e interesseiro. É acreditar que a corrupção, a desorganização, ou as cesarianas desmedidas estão na “alma” do povo brasileiro, e portanto nunca sairemos de um patamar de inferioridade no contexto internacional. Isso é inaceitável e indecente.
Não vou me estender demasiadamente na defesa das Casas de Parto desmedicalizadas porque já fiz isso de forma por exageradamente intensa em mensagens anteriores. Apenas ponderaria com os colegas pediatras para que atentassem para as questões menos evidentes que permeiam esta discussão. Falar de Casas de Parto sem médico é tratar de uma ferida que a gente (nós médicos) pretende esconder: a ferida do poder médico. Fomos ensinados a sermos poderosos e exercer nosso poder sobre mães e bebês, no que tange ao nascimento. Abrir estabelecimentos onde não existe a “ordem médica” de Lacan é percebido como uma afronta aquilo a que tanto lutamos para conquistar. Entretanto, o abuso de tecnologia em que fomos treinados nos impede de ter, em curto prazo, uma visão mais fisiológica do nascimento. Acrescente-se a isso a vitoriosa experiência européia com a matéria e teremos criada a necessidade de Casas de Parto, gerenciadas e conduzidas por enfermeiras comprovadamente experientes na condução de partos.
Casa de Parto é alternativa ao modelo dominante; não é imposição.
Casas de Parto desmedicalizadas não vão acabar com os hospitais, apenas oferecerão uma opção a mais para as mulheres que pretendem ter uma assistência mais centrada na família e nas suas necessidades afetivas e espirituais e ao mesmo tempo com segurança atestada pelas organizações internacionais, como a OMS, Biblioteca Cochrane, OPAS. e o Ministério da Saúde.
Casas de Parto NÃO diminuem a necessidade de se humanizar médicos obstetras, pediatras e instituições hospitalares; apenas abre mais uma oportunidade para um novo paradigma de atenção às mulheres e seus filhos.
Um abraço fraterno
Ricardo Jones
Obstetra
Coordenador Nacional da ReHuNa