Consumismo papainoélico
Transferido o presépio de Belém para o balcão das lojas, substituído Jesus por Noel, o Natal perde progressivamente seu caráter religioso.
Frei Betto, O Globo, 9 XII 2017
O Natal se aproxima. Com ele, a preocupação com a lista de presentes. Em círculos familiares e corporativos se torna quase uma obrigação dar presentes, até mesmo para quem não se conhece ou se nutre antipatia. Há inclusive quem dá presente para não se fazer presente.
Presente compulsório amarga o Natal. É pagar pedágio para prosseguir na estrada da indiferença. E “amigo oculto” é uma loteria de afetos. Oculto é, por vezes, o desafeto que se tem para com o sorteado.
Transferido o presépio de Belém para o balcão das lojas, substituído Jesus por Papai Noel, a festa perde progressivamente seu caráter religioso. O Menino da manjedoura, que evoca o sentido da existência, cede lugar ao velho barbudo e barrigudo, símbolo do fetiche da mercadoria.
O consumismo hedonista nos afasta da religiosidade. A Missa do Galo, outrora à meia-noite, reduz-se ao galeto das celebrações, às oito ou nove da noite, driblando a madrugada que favorece a violência urbana. O apetite da ceia e a curiosidade em abrir presentes parecem falar mais alto que os bons e velhos costumes: oração em família, cânticos litúrgicos, narrativas bíblicas e a memória dos eventos paradigmáticos de Belém da Judeia.
A tradição de troca de presentes é atribuída a vários santos que teriam o hábito de distribuir presentes às crianças pobres: são Nicolau, são Basílio de Cesareia etc. Hoje, poucos se lembram dos excluídos na festa de Natal.
São Francisco de Assis criou, no século XIII, o presépio. O nascimento de uma criança em um curral, filha de uma família sem teto, virou um bucólico cenário que encobre o fato histórico. José e Maria, rejeitados em Belém, ocuparam uma cocheira premidos pela proximidade do parto.
Hoje a festa religiosa é ofuscada pela figura lendária de Papai Noel. O velho gorducho foi popularizado, a partir de 1822, pelo poema “Uma visita de São Nicolau”, que Clemente Clark Moore escreveu, em Nova York, para seus filhos. Os trajes e o gorro eram verdes. Em 1863, o cartunista Thomas Nast, da “Harper’s Weeklys”, o desenhou em traje vermelho, incorporado, a partir do início do século XX, à propaganda de bebidas não alcoólicas, como a Coca-Cola.
Filho de um remediado carpinteiro e uma pobre camponesa, o Menino logo se irmanou às gerações de refugiados ao se exilar no Egito para escapar à sanha repressiva do rei Herodes.
Toda a vida de Jesus consistiu em semear as bases de um novo projeto civilizatório que se resume, nas relações pessoais, à predominância do amor e da compaixão; e nas relações sociais, à partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. Esta é a proposta do Reino de Deus, oposto ao de César.
Tal ousadia subversiva resultou-lhe em prisão, tortura e morte na cruz. No entanto, sua ressurreição atesta que a vida supera a morte. Essa esperança nos move para que, um dia, a paz prevaleça como fruto da justiça.
Celebrar o Natal é, portanto, partilhar com outras pessoas, em especial as necessitadas, nossos talentos, aptidões, recursos e bens, para que vivam com dignidade. É ousar fazer nascer o novo nessa velha ordem social marcada pelo preconceito e pela exclusão.