Uma palmada na consciência
Nas duas últimas semanas o projeto de lei da deputada Maria do Rosário (PT-RS), que acaba de ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados ganhou protagonismo na mídia e abriu um importante espaço para a discussão sobre o tema do projeto que “estabelece o direito da criança e do adolescente a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos…”
O projeto em questão, que vem sendo apresentado como um instrumento de proibição da palmada, trata também de uma importante questão de direitos humanos: a de que todas as crianças e adolescentes têm direito ao respeito por sua integridade física e dignidade humana. Ele é também um agente para uma tomada de consciência. O motivo de tanta preocupação, a ponto de gerar os mais variados estudos e a mobilização de leis em mais de 15 países em todo o mundo deve-se ao fato de as crianças serem as últimas a desfrutar de proteção igualitária contra a agressão e a humilhação deliberadas. Quando você discute com um adulto e ele não concorda com você a sua primeira atitude é bater no seu interlocutor? Esse cenário parece absurdo, no entanto é dessa forma que muitos pais, educadores e familiares se portam na relação diária com crianças e adolescentes.
Outro enfoque mais amplo que precisamos dar ao tema âncora do projeto de lei é a definição de castigos físicos, moderados e imoderados que se tratam desde bater na criança com uma simples palmada, passando pelos pontapés, empurrões, beliscões, puxões de cabelo, até a utilização de objetos (varas, chicotes, cintos e sapatos). Se considerarmos apenas estes exemplos (que, aliás, não representam a totalidade das práticas punitivas utilizadas nas mais variadas sociedades) já estaremos jogando luz sobre o problema podendo concluir que não se trata de uma simples palmada. Estamos falando sim de violência doméstica e violação de direitos humanos.
Para sermos mais precisos em nossos exemplos citamos um estudo do Núcleo de Estudo e Combate à Violência Doméstica do Rio de Janeiro (RJ), que revelou que crianças e adolescentes são os principais alvos de agressões dentro de casa, principalmente crianças na faixa de 1 a 9 anos. Em 2003, foram registradas 6.186 denúncias de Violência Doméstica Contra a Criança e o Adolescente, e, em 2004, um total de 6.110, sendo 80% por agressões físicas. Dentre as agressões, por ordem de maior freqüência, estão: socos, tapas e chutes; uso de pedaços de madeira, cordas, arames e cintos para bater; queimaduras, em sua maioria feitas com colher e garfo quentes, cigarros, água quente e ferros de passar. Também foram relatados alguns castigos humilhantes e degradantes tais como: pôr ovo cozido quente na boca da criança, obrigá-la a ingerir as próprias fezes ou fazê-la transitar pela rua com o lençol em que fez xixi sobre a cabeça.
Casos como estes nos parecem distantes da realidade e dos nossos âmbitos familiares, no entanto ocorrem diariamente, ao nosso lado. Legitimar uma simples palmada educativa e disciplinadora é uma forma de aceitar a invasão da integridade física de uma criança e Portanto, reformar explicitamente a lei, neste sentido, é uma maneira de a sociedade acabar com a aprovação social que essa forma de violência desfruta.
Sabemos que, para mudar estas práticas profundamente arraigadas na sociedade, será preciso mais do que a aprovação de um Projeto de Lei. Precisamos gerar mudanças de atitudes e práticas em relação à educação de nossos filhos, visando a criação de uma cultura de paz , se contrapondo aos valores da violência e da agressão legitimados de maneira geral em nossa sociedade. A palmada é, sem dúvida, um dos fios da meada que envolve a complexa rede das manifestações de violência nas diversas esferas sociais de todo o mundo.
É importante refletir sobre o fato de que a imposição de um ponto de vista pela força, pautando a relação de pais e filhos, gerando castigos psicológicos e físicos está no cerne da construção de valores da sociedade. É também um tema de suma relevância para o debate das soluções em prol da construção da sociedade pacífica tão ambicionada nesta era marcada pelo conflito. Portanto, o Projeto de Lei da Deputada Maria do Rosário não se trata apenas de uma simples palmada, mas de uma palmada na consciência.
Saiba um pouco mais sobre o Projeto de Lei:
O projeto de lei 2654/2003 está tramitando no Congresso Nacional desde o final de 2003 e já foi avaliado e aprovado de forma unânime em duas Comissões – Comissão de Educação e Cultura (CEC) e Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). No momento, o PL encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), com parecer favorável, aguardando votação. Em seguida, o projeto segue para o Senado.
O PL foi elaborado pela equipe do Laboratório de Estudos da Criança da USP – por meio de um estudo feito a partir de anos de pesquisa e em colaboração com milhares de alunos de pós-graduação no país. Atualmente, a iniciativa também é apoiada por um conjunto de organizações da sociedade civil, que esperam que o Brasil possa seguir as diretrizes da ONU e abolir definitivamente da nossa cultura a idéia de que as crianças só podem ser educadas por meio de tapas, palmadas, gritos e demais violências psicológicas.
O projeto de lei se fundamenta no seguinte:
1. A proteção contra qualquer forma de violência é um direito assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 5°) e pela Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (art. 19). Hoje, a proibição dos Castigos Físico e Humilhante está presente na legislação de 17 países (Suécia, Finlândia, Noruega, Áustria, Chipre, Dinamarca, Letônia, Croácia, Alemanha, Bulgária, Israel, Islândia, Romênia, Ucrânia e Hungria, além de Itália e Portugal, que mesmo sem ainda terem realizado alterações em suas legislações, as Supremas Cortes dos dois países também declararam a punição corporal como ilegal). Grécia, Países Baixos, Lituânia, Luxemburgo, República Eslováquia e Eslovênia assumiram o compromisso de proibir esse tipo de agressão ainda este ano. Na América Latina também há propostas de projetos de lei em andamento na Costa Rica, no Peru, no Uruguai e na Colômbia.
2. Também é consenso entre especialistas da área da infância que a proibição da punição corporal – juntamente às ações educativas às famílias – é uma maneira de reduzir a incidência de violências mais graves, como espancamentos e conseqüentes óbitos de crianças e adolescentes.
3. Crimes desse tipo representam a maior parte das reclamações feitas ao Disque-Denúncia da Subsecretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Compõem 50,4% das ligações recebidas pelo serviço.
Sobre a campanha contra o castigo físico
Visando fortalecer a causa, organizações nacionais como ANDI, Instituto Promundo e Comunicarte, em articulação com Save the Children Suécia, iniciam uma campanha pela erradicação de castigos físicos e psicológicos impostos às crianças no Brasil. O objetivo é ampliar a discussão do tema, estimulando a construção de ambientes familiares e comunitários mais harmoniosos. Além da difusão de informações que contribuem para o esclarecimento do tema, a mobilização envolve a participação de representantes dessas entidades nos principais fóruns de debate sobre Direitos Humanos.
Um exemplo foi a presença da deputada federal Maria do Rosário em audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, em Washington no dia 20 de outubro de 2005, quando o assunto foi discutido com outros especialistas da América Latina.
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Violência ou afeto ?
O projeto de lei 2.654/03, que já foi aprovado pela comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, prevê a interdição do castigo físico, suscitando várias questões polêmicas. Por trás do tema está o prazer profundo pelo poder da posse do corpo de nossos filhos, crianças e adolescentes, em lugar da responsabilidade. Essa distorção patrocina a ação desgovernada de mentes patológicas na prática de espancamentos que tanto nos horrorizam.
Segundo a Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência, as mães ocupam o primeiro lugar nas estatísticas: 52% dos casos de violência física são praticados por elas, contra 24% praticados pelos pais, 8% por padrastos e madrastas e 13% por outros parentes, restando 3% por não-parentes. Se acrescentarmos as “palmadas moderadas educativas” a estes índices obtidos com base em denúncias, chegaremos a 70% ou 80% de mães batendo em seus filhos. É a distorção da maternidade: saiu do meu corpo, é meu.
NUTRIZES com SÍFILIS AMAMENTAVAM para se “CURAR”
A violência é um componente da mente humana que a civilização e a cultura vêm tentando reprimir. Na Roma antiga, o pai detinha o poder de jogar os filhos nas prisões, flagelá-los e mantê-los acorrentados. Em outra época, mulheres sifilíticas davam de mamar a bebês na crença de que se livrariam da doença. O infanticídio foi tolerado até o fim do século XVII.
Já não aceitamos essas condutas, nem mesmo a palmatória que era usada pela professora nas escolas. Mas, com toda a civilidade que conseguimos, a Humanidade ainda não é competente diante de seu impulso destrutivo. Guerra, terrorismo, corrupção são perversões humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre “fracos”, o prazer do exercício da opressão.
Ouvi um educador falar em defesa da palmada “educativa”. Para ele, a nova lei seria uma interferência na vida familiar, com “o Estado entrando em casa onde a supremacia tem que ser dos pais”. Concordando, estaremos legitimando o desrespeito ao corpo do outro visto como posse: o pai, a mãe que bate no(a) filho(a), que abusa sexualmente do(a) filho(a), o marido que bate na mulher, ou seja, o mais forte exercendo o poder segundo sua arbitragem. Aliás, vale lembrar que os pais param de aplicar castigos físicos quando seus filhos crescem, e a relação das dimensões corporais entre eles deixa de ser assimétrica.
É preciso ter a garantia da fragilidade do outro para banir o insuportável medo de sua própria impotência, que então cede lugar a uma ilusória, mas prazerosa sensação de onipotência. É assim que fazem os pais com seus filhos, é o que fazem estes filhos como autores de bullying na escola, é o que continuam a fazer como pitboys nas festas e é desse modo que passam a fazer de novo com seus filhos, numa repetição doentia.
O dr. Aramis Lopes Neto, coordenador do Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes, da Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência, aponta as condições adversas na família que favorecem a agressividade nas crianças. “Pode-se identificar a desestruturação familiar, o relacionamento afetivo pobre, a permissividade e a prática de maus-tratos físicos ou explosões emocionais como forma de afirmação de poder dos pais.”
Nas últimas semanas assistimos à sucessão de notícias de crianças vítimas de maus-tratos físicos: Lucas, dois anos, tinha queimaduras e hemorragia nasal; o bebê de Nova Iguaçu, ainda com o cordão umbilical, foi jogado na rua e atropelado; uma levou um chute e rolou uma escada; outra, foi espancada pela mãe e o padrasto até a morte. Esqueceremos estas monstruosidades, como esquecemos de uma Paloma, de nove meses, que morreu de traumatismo craniano, há quatro anos. Castigo físico não é educativo.
Como especialista, afirmo que bater, gritar e humilhar causam dano permanente à mente em desenvolvimento. Sabemos todos que a violência é endêmica. Portanto, é preciso escutar melhor e se responsabilizar, porque a violência nasce quando morrem a palavra e o afeto.
ANA MARIA IENCARELLI é psicanalista e presidente da Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência.
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