A separação aos olhos deles
Na maioria das vezes, a mãe fica com a guarda dos filhos. E os pais, como suportam a ausência, a saudade? Como transformar a dor em convivência? Cada vez mais, eles começam a abrir seu espaço e a brigar por um tempo maior do que meros fins de semana
Todo álbum de fotografia conta uma história, mas o do médico José Marques Neto, 41 anos, e da filha Marina, 7, diz um pouco mais. Lá estão o berçário, o Cristo Redentor, o frescor após o banho de mar, as risadas, o cavalo, os diferentes cortes de cabelo, a primeira bicicleta, a paixão pela corrida. A cada imagem, provas de um relacionamento feliz – se é que o amor entre pai e filho precisa de alguma comprovação. O passar de olhos pelas fotos vem acompanhado de um sorriso e um suspiro dos dois, como se cada dia vivido junto fosse um prêmio conquistado. E é.
Neto está separado da mãe de Marina desde que a filha tinha 6 meses de idade. Não havia passeios de shopping centers nem idas ao parquinho: Neto levava a bebê ao berçário todos os dias, como faz hoje com a mocinha, que já lê sem grandes dificuldades e adora exibir um tererê no cabelo. Eles são muito companheiros, diz a avó paterna, Rosângela. Na ânsia de passar sempre mais tempo com a filha, ele conseguiu uma permissão da diretora da escola quando Marina estava no maternal, aos 3 anos de idade, e passava 40 minutos da hora do almoço brincando com ela. Por mais que eu ficasse junto, achava que não era suficiente. A falta que eu sentia dela ia se agravando a cada dia. Se tive algum conflito com a mãe dela, era sempre por causa do tempo, afirma Neto.
Lei e sociedade
Os homens aprenderam a aproveitar o tempo de forma mais intensa do que seus pais e avôs e incluíram no pacote algo mais do que levar junto para lavar o carro, curtir um jogo de futebol ou brincar no balanço. Participam do dia-a-dia das crianças, conversam com elas por telefone, decidem que roupa vão usar, explicam a importância de experimentar brócolis. Segundo a psicanalista e especialista em psicologia jurídica Maria Antonieta Pisano Motta, até pouco tempo, quase a totalidade dos pais aceitava o papel de provedor material a eles atribuído, sem cogitar qualquer questionamento em relação aos parâmetros estabelecidos pela sociedade. Nas últimas três décadas, cresceu a participação da mulher no mercado de trabalho. Com isso, os homens reivindicaram uma parcela maior na vida e na educação dos filhos. São homens e mulheres questionando suas posições, afirma. Os números mostram que o movimento ainda acontece nos bastidores. Em 2004, na maioria dos casos a responsabilidade pela guarda dos filhos era da mãe – 91,3% nas separações e 89,7% nos divórcios. Daí uma grande contradição no tema pai separado: se ele é mais presente por que vai ficar distante após a separação? Para o psicólogo Evandro Luiz Silva, é uma questão cultural. Acredita-se ainda que a mulher está mais preparada do que o homem para cuidar dos filhos, afirma.
Os homens aprenderam a aproveitar o tempo de forma mais intensa do que seus pais e avôs. Após a separação, desejam continuar a participação
Mas aos poucos esse quadro tende a mudar. Dados do IBGE mostram que nos últimos 4 anos aumentou em 22% o número de filhos que queriam ficar com o pai após a separação. Provavelmente, o número de pais que participam da vida dos filhos também aumentou nessa proporção e eles desejam continuar a sua participação, diz Evandro. O psicólogo, além de estudioso do assunto, é um pai separado que vive em um sistema de guarda compartilhada, ainda não bem entendido pela sociedade brasileira: das separações concedidas em 2004, em apenas 2,85% a responsabilidade era de ambos os cônjuges e, no divórcio, 2,69%. Nesse sistema, mãe e pai têm os mesmos deveres e as mesmas obrigações na criação dos filhos, e também o maior objeto de desejo de todos: a convivência.
Rompimento sem sentido
A cumplicidade resiste ao tempo: para o pequeno João, sentar-se à mesa de plástico na sala e chamar o pai para brincar de fazer minhoca de massinha acontece tão naturalmente quanto ir ao estádio de futebol. E Fábio sente que está tudo ali: o vínculo se formando, o respeito valorizado, a convivência garantida.
Guarda, convivência, respeito, cumplicidade é o que procura recuperar o coordenador de marketing Fábio Côrtes, 34 anos. Ele quer desenhar sua história com o filho, João Ricardo, 4 anos, da melhor maneira possível. Ele aproveita quanto pode os fins de semana alternados que passa com a criança. Às vezes, desanima-se com a limitação. Mas basta o menino pular em seu colo para ele recuperar a esperança. Ele vive perguntando pai, quando eu vou morar com você?, diz Fábio. Mesmo desconfiando de ser apenas coisa de criança, sente-se convicto do amor do filho. Ainda sofro muito, mas não quero brigas e sei quanto é importante para ele ter a mãe perto.
Se Fábio consegue conversar hoje sem tanta dor, a voz embarga quando se lembra do começo da separação, há pouco mais de dois anos. Como foi a mãe do garoto que saiu com ele para a casa da avó, Fábio ficou em casa, sozinho com as lembranças. Por dois meses, deixou os brinquedos do filho espalhados, como se João ainda estivesse lá. Depois, percebeu a tortura e guardou tudo, inclusive as fotos. Eu chorava todos os dias. Chegava a trabalhar até as 3 da manhã, só para não voltar para casa. Era fuga, não queria mais sofrer. Para Fábio, a mudança na rotina foi uma perda brusca demais. Como a mãe do menino fazia faculdade à noite, era o pai quem buscava na escola, dava banho, jantar e colocava João para dormir. Vive-se um sofrimento sem causa e, portanto, injusto. O pai está sempre com o filho e, de repente, vê rompido o dia-a-dia e se pergunta: O que fiz para merecer isso?, afirma a psicanalista Giselle Groeninga, do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam).
Resta a ele correr contra o relógio: liga todos os dias, até na escola. Estou muito presente, levo ao médico e o tempo que ele fica comigo não é só diversão. Por mais que a gente saia, porque é fim de semana, eu também educo, afirma. No começo, tinha receio de repreender o filho. Achava que o tempo era muito pouco para ser chato. Mas logo vi que quanto mais regras eu colocava, mais ele me amava e se sentia bem. Não passo do limite e vou aprendendo.
Criar é parceria
Esse aprendizado tem de acontecer a dois, independentemente de os pais estarem juntos ou separados. Coisa bem difícil de engolir, quando o casamento acaba sob mágoas e ressentimentos. O fato é que as funções de pai e de mãe são complementares. Não existe espaço para competição, apenas para cooperação. E os papéis de marido e de esposa ficam em segundo lugar. Ou seja: o homem pode não ter sido o companheiro ideal, mas ainda pode ser um excelente pai. O problema começa porque a ligação da mãe com o filho é anterior. Vem da biologia e depois se torna psíquica, e a entrada do pai nesse relacionamento depende da mulher, diz a psicanalista Giselle.
Para criar filhos, não existe espaço para competição, mas apenas para cooperação. As funções de pai e de mãe são complementares
Mesmo que isso esteja bem resolvido no casal de pais, é necessário entender que essas funções não são independentes. Pelo contrário, criar o filho continua sendo uma parceria. Está na lei: a responsabilidade de educar a criança é de ambos, independentemente de qual for o tipo de guarda. Tanto que, mesmo quando é de apenas um dos pais, o outro, que tem o desagradável título de visitador, faz as vezes de supervisor. Como a lei reflete os costumes, o Novo Código Civil alterou o conceito e trocou o termo pátrio poder para poder familiar. O primeiro nome surgiu em uma época anterior à supervalorização do papel da mãe. Na criação do antigo Código Civil, em 1916, quem exercia o poder sobre os filhos era somente o pai. Considerava-se que ele detinha as condições materiais para sustentar seus filhos, assim como as psicológicas e educacionais, afirma a psicanalista Maria Antonieta. A industrialização fez com que esse pai ficasse muito tempo fora de casa e a mãe, por sua vez, se tornasse cada vez mais a maior, quando não a única, encarregada do cuidado dos filhos.
Transformação
João Carlos acredita que passa
mais tempo agora com Lorena
do que antes da separação.
Sente prazer em conferir a lição, ajudar a escolher uma roupa,
ensinar a quantidade de xampu. Quando fica lá, Lorena aproveita. Adoro dormir na cama do meu pai.
O vaivém da história da sociedade pode refletir na lei, mas demora para ser incorporado à cultura e aos sentimentos das pessoas. A advogada Sandra Vilella já viu muitos pais chorar em seu escritório. A separação não é novidade, claro. Mas o sofrimento do pai é. Talvez antes ele não se permitisse esse sentimento. Não estão acostumados a lidar com emoções, diz Sandra.
Tanto o pai quanto a mãe estão desgastados e ressentidos, independentemente de quererem ainda ficar juntos. Afinal, investiram tempo, dinheiro e sonhos, afirma a advogada e psicóloga Verônica Cezar-Ferreira, autora de Família, Separação e Mediação – Uma Visão Psicojurídica (Editora Método). Assim, tudo chega um tanto mal resolvido na Justiça e, na hora de decidir a guarda, não há consenso. Muitas vezes, é necessária a ajuda de profissionais para a mediação familiar. Essa família não acabou, mas está se transformando. Vai ajudar a restabelecer a comunicação entre os pais, garantir a visão de presente e futuro, diz Giselle. Segundo a psicanalista, esse é um momento de discutir a guarda compartilhada. Ela deve ser empregada como um princípio norteador para esse conflito. Daí, organizar a rotina, a divisão de tarefas e funções.
O rearranjo para essa vida transformada pode se dar de muitas maneiras. Para Sandra, é preciso ajustes, como tentar morar no mesmo bairro. Talvez evite brigas e a guarda fique realmente dividida, afirma. Aconteceu com o médico João Carlos Papaterra Limongi, 54 anos. A vida dele mudou muito após a separação da mãe de Lorena, sua filha, de 7 anos. Do primeiro casamento, ele já tinha a experiência da separação de um filho. Conhecia as dificuldades, a saudade. Não quis repetir a dose com Lorena e fez diferente. Sacrificou a vida pessoal e ia todos os dias à casa da filha, mesmo tendo de se encontrar com a ex-mulher mais do que gostaria. Essa vida levou um ano, até a solução cair em seus braços: a compra de um apartamento no mesmo condomínio em que morava com a ex-mulher e a filha. Hoje, quem equilibra o tempo com o pai e com a mãe é Lorena: sobe e desce um elevador e está na casa de um ou de outro. Chego em casa, ela não está lá, mas está perto. Dá menos culpa. Ela não sente a distância. Nem eu, diz João.
Dá trabalho
Se dá para ser feliz? Sim, mas requer sacrifícios. A vida mudou e deve se buscar o ideal dessa situação. Tem de organizar, falar com o ex-cônjuge, lidar com a saudade, pensar muito, discutir. É difícil ser feliz quando não se pode estar perto dos filhos. Mas deve se manter a calma, fazer o possível para não entrar no jogo de poder, neutralizar o ex-cônjuge no campo de batalha, não comprar a provocação, afirma o psicólogo Evandro Silva. E ter sempre em mente que, em uma família, o bem-estar de um implica no bem-estar de todos.
Fotos:André Spinola e Castro
O arranjo de horários de Neto é em nome do bem-estar de Marina. Para ele, o dia sempre deveria ser um pouquinho mais comprido. Como se separou quando a filha tinha 6 meses, ela não se lembra do pai em casa: mas ele não se esquece da fralda trocada, do choro à noite, da primeira febre.