Três projetos de lei tramitam no Congresso para incluir a opção de guarda compartilhada no Código Civil. Entenda como isso pode mudar a vida dos filhos de pais separados
Cristiane Rogerio
Um comentário qualquer do dia-a-dia, a maneira de arrumar a cama, as preferências musicais. São referências como essas que contribuem para a formação da personalidade, o jeito de pensar e agir das crianças. Observando e participando da vida familiar, elas vão aprendendo com os pais como o mundo funciona. Isso só acontece quando há convivência. E depois da separação? Como os pais criam os filhos sem estar perto deles todos os dias? Hoje a legislação brasileira determina que fica com a guarda aquele que tiver melhores condições de exercê-la. Para chegar a essa decisão, coloca-se o pai e a mãe diante de uma disputa e quem vencer fica com o troféu. No Congresso Nacional, há três projetos em tramitação que prometem equilibrar o confronto. São propostas que transformam em primeira opção a guarda compartilhada. Significa que mãe e pai têm os mesmos deveres e as mesmas obrigações na criação dos filhos, e também oportunidade igual de convivência com eles.
Parece óbvio, mas não é. O tema está sendo abordado até na novela Senhora do Destino (veja quadro na página 44). Ainda que o Código Civil de 2003 tenha tirado a exclusividade de poder das mães, a lei determina a guarda única. Advogados até encontram brechas na lei, mas a decisão final cabe ao juiz. O novo sistema que se pretende está previsto na lei norte-americana desde 1975 e em países da Europa há mais de 20 anos. No Brasil, ainda não. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados no fim do ano passado, o número de separações judiciais e divórcios vem aumentando gradativamente, mas a responsabilidade ainda recai sobre a mãe em quase a totalidade dos casos. No ano de 2003, a guarda dos filhos foi concedida à mãe em 91,4% das separações e em 89,7% dos divórcios registrados no país. Somente em 3,5% das separações e 4,2% dos divórcios, ambos os pais eram responsáveis pela guarda.
Só a guarda compartilhada permite que pai e mãe tenham contato mais intenso com os filhos, analisa o advogado Marcial Barreto Casabona. Se a lei for sancionada, o papel do juiz será o de apontar caminhos. O projeto de lei do deputado federal Tilden Santiago (PTB-MG) – o mais adiantado no Congresso e que deve ser aprovado até o meio do ano – estabelece que, na audiência, o juiz explicará às partes o significado da guarda compartilhada, incentivando a adoção do sistema. A nova lei, apostam os especialistas, vai provocar mudanças culturais. Como é preciso definir quem terá mais tempo com o filho, costumo dizer que hoje a Justiça leva o casal à briga. Com a mudança, a primeira opção será a conciliação, diz a advogada Sandra Vilela, voluntária da Associação Pai Legal, em São Paulo.
A guarda compartilhada é também um reflexo da família moderna, com homens e mulheres inseridos no mercado de trabalho – e, portanto, com a mesma disponibilidade de horários para ficar com os filhos. Há muito se foi o tempo em que a ocupação feminina era apenas cuidar dos filhos. Nada mais justo, então, que os pais dividam igualmente todas as tarefas que lhes cabem. Sem falar no mais importante: conviver com o pai e a mãe, como lembra a advogada Sandra, é um direito das crianças previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada na Assembléia Geral das Nações Unidas em 1989. Está escrito: É direito da criança separada de um ou de ambos os seus pais de manter regularmente relações pessoais e contatos diretos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário ao interesse superior da criança.
Nome aos bois
Por tratar-se de uma questão complexa, vale desfazer as confusões que o termo suscita. A psicóloga Eliana Nazareth costuma falar em palestras para advogados e juízes e observa que falta informação. Eles temem que a criança fique de um lado para o outro, constantemente trocando de casas. Assim, confundem guarda compartilhada com guarda alternada, que é quando a criança mora um período com o pai e outro com a mãe. É bem diferente, porque, dessa maneira, ela fica afastada do outro por muito tempo, diz. A guarda compartilhada não é uma divisão de tempo e espaço do filho: 50% para o pai, 50% para a mãe. Os genitores devem decidir juntos a vida da criança: onde mora, onde estuda, quem é seu médico, quem são os seus amigos, se vai ou não a um curso de natação. O filho pode ter o seu cantinho em duas casas, mas a recomendação é que exista uma residência fixa e horários pré-estabelecidos. Um ex não pode invadir o espaço do outro, muito menos o da criança. O ser humano precisa de uma organização física para entender seu mundo, afirma a psicóloga.
Com os dois filhos do designer Márcio Palermo, de São Paulo, as regras são seguidas à risca. Separado há dez anos, ele diz que não houve discussão sobre a guarda. Juridicamente, Lucas e Amanda ficaram com a mãe, mas Márcio sempre esteve próximo. No começo, eu tinha horário mais flexível e ia às reuniões na escola ou levava as crianças ao médico, conta Márcio. A vivência deu tão certo que há quatro anos Lucas mora com o pai. Hoje, os filhos passam um final de semana com o pai e outro com a mãe, mas se vêem também durante a semana. O fato é que as divergências entre o casal não interferem no papel de pais. Lucas e Amanda têm, por exemplo, horários mais rígidos na casa do pai quanto ao tempo em frente da TV. Foi um processo gradativo, mas eles se acostumaram bem, conta Márcio.
Pouco tempo
Será que é mesmo possível passar as referências de vida visitando os filhos de 15 em 15 dias como determina a lei na maioria das vezes? Para os especialistas, a resposta é não. Quinze dias é tempo demais para uma criança, afirma o psicólogo Evandro Silva, de Santa Catarina, que, além de estudar o assunto, há cinco anos pratica a guarda compartilhada. Seus dois filhos têm quartos nas duas casas e dividem os dias da semana. Assim ele e a ex-mulher desfrutam do cotidiano e do lazer dos filhos.
Especialistas acreditam que a lei provoca mudanças culturais
Cada família encontra saídas para a sua realidade. A guarda compartilhada não tem um modelo pré-definido e o casal deve discutir o que é melhor para sua família. A divisão do tempo e das tarefas dos pais deve se modificar com a faixa etária dos filhos e depende da rotina que vier a ser estabelecida, diz a proposta de projeto de lei que deve ser apresentada ainda em 2005 pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam). É preciso essa flexibilidade porque as crianças crescem, adquirem novas necessidades e os pais também podem casar e ter até outras famílias, o que altera a rotina de todos, destaca a psicóloga Eliana Nazareth. Flexibilidade é a principal aliada da administradora de empresas Bianca*, de São Paulo. Separada há cinco anos e com uma filha de 6, houve muita conversa para ela acertar a agenda da menina com o ex-cônjuge. Mas, se for necessário, eles abrem exceções. Eu permiti todas as possibilidades porque sou filha de pais separados e sei como o pai faz falta, analisa. E ela admite: Não tenho vergonha de dizer que criar filho sozinha dá muito trabalho sim.
Ônus e bônus
Problemas financeiros à parte, o próprio advogado Marcial Barreto Casabona admite que a guarda compartilhada é muito mais um assunto de psicologia do que de Direito. Por isso, os especialistas esclarecem que ela não deve ser imposta pela Justiça. Hoje em dia a lei é vista também pela sua função pedagógica. Aos poucos será incorporada pela sociedade brasileira, como é atualmente na Inglaterra e na França, aponta Casabona. É o que pensa também Iáris Ramalho, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea), advogada e assistente social. Ela se refere aos movimentos feministas e lembra que uma lei pode, sim, antecipar grandes modificações sociais. A licença-paternidade era ridicularizada no início porque acreditava-se que o pai ia usar os dias livres para beber cachaça no bar da esquina. Hoje o benefício é indiscutível, destaca.
Amor por decreto?
Quando o pai aceita pagar a pensão, mas não tem interesse em participar mais da vida dos filhos? A agente de atendimento Ana Paula Costenplatt, do Rio de Janeiro, sofreu muito com a ausência do pai de seu filho, de quem se separou ainda grávida. Apesar de sua disposição em ajudar nas despesas, ele não demonstrava interesse em participar do crescimento da criança. Eu levava o bebê até ele, com certa insistência. Não queria que meu filho crescesse sem pai, recorda. A estratégia deu certo. Hoje o pai de Marcos César, de 3 anos, não consegue ficar uma semana sem ver o filho. Foi um pouco humilhante, mas ele se tornou um ótimo pai e meu filho vive por aí falando: Meu pai é bonito, é o máximo, diverte-se Ana Paula. Nem todas as tentativas, é bom que se diga, têm final feliz. A relações-públicas Tânia Homsi não alimenta muitas esperanças com o pai dos dois filhos adolescentes. Quando eles eram crianças, a falta do pai era mais evidente. Hoje acho que ele nem contribuiria mais, mas isso é uma decisão deles, esclarece. O filho mais velho, George, já demonstra o desapego. Acho que a raiva não vai passar e hoje estamos muito bem nós três, sozinhos.
Cada casal deve discutir o que será melhor para sua família
A guarda compartilhada é um objetivo nobre, que todo pai e toda mãe devem perseguir. Porque os filhos, esses, sim, o verdadeiro foco de toda e qualquer decisão do casal, só têm a ganhar. Ela sempre funcionará melhor em famílias que tiveram um vínculo forte antes da separação. Pais participativos no casamento continuarão a sê-lo depois do divórcio. E amor não se estabelece por decreto. Não se obriga ninguém a amar, pondera a psicóloga Sylvia Van Enck Meira. Mas vale tentar uma aproximação. E vale também facilitar a vida dessas famílias. A aprovação da lei, que está sendo analisada pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados, abre um novo caminho. O do entendimento.
No horário nobre
Na novela Senhora do Destino, os personagens Plínio, vivido por Dado Dolabella, e Yara, interpretada por Helena Ranaldi, estão brigando para ver quem fica com o filho dos dois, Dado. No início da trama, Yara decidiu por uma produção independente e só apresentou o filho para Plínio quando, desempregada, precisou deixar o bebê aos cuidados do pai. Só que agora, Plínio apegou-se ao menino e Yara quer levá-lo para longe. A briga promete bons pontos de audiência. Aqui, o autor, Aguinaldo Silva, fala sobre a guerra dos pais para ficar com as crianças e também sobre produção independente.
CRESCER: Existe a possibilidade de a história terminar em guarda compartilhada?
Aguinaldo Silva: A questão será decidida pela Justiça, já que a mãe insiste em dizer que o filho é apenas seu. Os dois brigam, ela chega até a fugir com o filho, para não ter de se separar dele. Tudo isso, claro, será levado em conta na disputa judicial.
CRESCER: Por que você abordou esse tema?
Aguinaldo Silva: Eu queria discutir, na verdade, a produção independente. Sou um homem conservador e portanto adepto dos métodos tradicionais de paternidade. Ou seja, duas pessoas resolvem construir uma vida juntas e ter filhos. E, se por qualquer motivo acontece a separação depois, é outra história.
CRESCER: Você acredita que a novela pode ajudar a sociedade a entender o assunto?
Aguinaldo Silva: Eu acho que esse é um dos aspectos mais traumáticos da vida em família, quando ela se dissolve e há a briga pelos filhos. A novela, que fala das relações em família, não poderia esquecer esse assunto.
* Alguns nomes foram trocados nesta reportagem a pedido das famílias
Ilustrações Ricardo Ferré
Para quem não está em paz com o ex, a lei de hoje funciona como um grande empecilho. O engenheiro carioca Armando*, de 40 anos, vive todo o imbróglio que a situação pode apresentar. Com uma filha de 7 anos, ele briga na Justiça pelo direito à convivência com a menina. Não quero que ela fique mais comigo ou mais com a mãe, mas preciso mostrar a ela os meus valores e contribuir na sua formação, lamenta. O caso tem ainda outro ponto de discórdia: a pensão alimentícia. Quero ter o ônus e o bônus. Ou seja, continuo arcando com a parte financeira, mas também quero ter o prazer de estar com ela, reclama. Há quem acredite que a guarda compartilhada abre um caminho para diminuir o pagamento da pensão. Pura bobagem, segundo a advogada Sandra Vilela. Pesquisas nos Estados Unidos comprovam que quanto mais o pai convive, mais paga. Se o homem ganha mais, ele vai continuar custeando. Afinal, ela precisa ter as mesmas condições quando estiver com um e com outro, para que não viva realidades muito diferentes, explica.