O vasto estudo sobre relações familiares de
Andrew Solomon no livro “Longe da árvore – Pais, filhos e a busca da identidade” por F. Bosco e J. Wyllys
Brasil: conservador e preconceituoso em direitos civis de minorias
Francisco Bosco – O Globo
Em suas mais de 800 páginas de texto, Solomon empreende um vasto estudo entrelaçando ciência, psicanálise, política e cultura — tudo isso atravessado e concluído por um relato pessoal que encarna as situações estudadas.
O autor entrevistou centenas de famílias em que os filhos nasceram com ou apresentaram em seu desenvolvimento algum tipo radical de diferença — surdez, autismo, nanismo, esquizofrenia, entre outros — em relação aos pais. O modo como os pais lidaram com essa decepção a seu narcisismo e todas as exigentes consequências, práticas e morais, dessa diferença é uma das questões fundamentais do livro, junto a pelo menos três outras: um debate agudo e complexo, histórico e teórico sobre as noções de deficiência e identidade; os dilemas éticos criados pelas novas tecnologias de análise e manipulação genéticas; as múltiplas formas contemporâneas das relações parentais. Vejamos um pouco mais de perto cada um desses tópicos.
A tentativa de compreensão do amor parental em nossas culturas contemporâneas revela, a um tempo, cruamente a dimensão imaginária egoísta desse amor, e sua frequente superação por uma dimensão altruísta que acata a diferença radical e, a despeito de todas as dificuldades, deixa-se transformar por ela e termina por afirmá-la. A crueza do narcisismo: a maioria dos pais espancadores tende a agredir os filhos que não se parecem com eles. E ainda:
“Os pais costumam levar para casa uma criança com um defeito fatal interno, mas não uma criança com um pequeno defeito visível”.
E, entretanto, “a paternidade foi um desafio para essas famílias, mas quase nenhuma delas parecia arrependida”. Comentando a morte, aos 22 anos, de sua filha, em decorrência de sua deficiência grave, um pai comenta: “E pensar que, se houvesse na época de seu nascimento a tecnologia que permitiria identificar sua deficiência, ela talvez não tivesse nascido. Seria uma tragédia”.
O debate sobre as noções de deficiência e identidade é o grande motor crítico do livro. Quais são as fronteiras entre uma e outra?
Um “surdo de surdo”, isto é, filho surdo de pais surdos, tem na surdez uma condição tão normal, no contexto primal da família, quanto um indivíduo que escuta em contexto igual à sua condição. Uma mulher cega congênita diz: “não desejo a visão mais do que desejo um par de asas”. Essas experiências apontam para a noção de identidade, ao passo que as representações estigmatizantes, as políticas sociais autoritárias e as tecnologias (científicas ou charlatãs) de cura pertencem ao espectro da doença e da “anormalidade”. Um paradoxo apontado no livro lembra que justos na época em que se obtiveram as maiores conquistas sociais na representação das diferenças, as novas tecnologias tendem à sua eliminação. Em 50 anos, homossexuais, por exemplo, eram francamente tachados de doentes pervertidos na revista “Time”, enquanto hoje o casamento gay abre caminho em diversos países do mundo (obviamente as resistências continuam enormes). Por outro lado, o projeto Genoma abre a possibilidade de uma espécie de eugenia liberal, isto é, não encampada por grandes ideologias ou políticas oficiais, como as que assombraram os séculos XIX e XX.
Os dilemas éticos trazidos pelas novas tecnologias são às vezes apresentados em forma de verdadeiras aporias. Como nos pais com deficiências graves que selecionam genes para que seus filhos nasçam com as mesmas deficiências. Ou nos processos de wrongful life (vida injusta), nos quais os pais exigem compensação por não terem sido informados — nos exames de pré-natal, por exemplo — das deficiências de seus filhos, o que significa em alguma medida que os teriam preferido inexistentes.
A deterioração da tradição, junto às novas tecnologias, propiciou a invenção de múltiplas formas parentais. Pode-se mesmo dizer que a forma ortodoxa da família com pais casados e heterossexuais já não é ela mesma tradicional, uma vez que não tem mais referências estáveis, ou elas não são garantia de nada. O próprio Solomon tem dois enteados (seu marido foi pai biológico de duas crianças que tiveram como mães um casal de amigas lésbicas), um filho com uma amiga e ainda um filho com seu marido, gestado por uma das mães lésbicas dos filhos do marido.
Nota final: não apenas essa última frase, mas todo esse grande livro nos relembra o quão conservador e preconceituoso é o Brasil em matéria de experimentações civis e direitos de minorias.
“A imperfeição é nosso paraíso”.
Jean Wyllys
Este verso do poeta Wallace Stevens – verso contundente para uma cultura em que a cosmética, as cirurgias plásticas, as academias de musculação e a “ortopedia” moral religiosa buscam padronizar os seres humanos, diferentes entre si por natureza – este verso faz parte da epígrafe de um poderoso livro que me chegou às mãos na última quarta-feira: “Longe da árvore – pais, filhos e a busca da identidade”, de Andrew Solomon e publicado pela Companhia das Letras.
Quando recebi o livro, eu estava no plenário da Câmara; como a matéria em pauta era objeto de uma discussão enfadonha, comecei a ler o livro ainda ali. E só interrompi a leitura quando a sessão terminou; mesmo assim, corri pra casa ansioso para retomá-la.
“Longe da árvore…” é um livro imprescindível para quem tem filhos ou parentes com diferenças, deficiências ou “desvios” e também para quem lida com essas pessoas em suas atividades políticas ou profissionais. Solomon traz, à luz, as relações familiares sempre conflituosas de crianças, adolescentes e adultos à margem dos padrões biológicos e sociais estabelecidos; mas o faz no sentido de pôr fim a uma série de preconceitos que lhes infligem sofrimentos.
Surdos, anões, autistas, pessoas com síndrome de Down, esquizofrênicos, transgêneros e etc… Todos esses diferentes e “desviados” figuram em “Longe da árvore…”, mas também os garotos e garotas “prodígios”.
O livro me tocou profundamente não apenas porque a luta pelos direitos das minorias e dos diferentes norteia minha ação parlamentar e política, mas principalmente por ser eu mesmo um diferente… Diferente por ter uma orientação sexual policiada e reprimida desde a infância, mas também – e isso eu nunca disse em entrevistas por ter certa vergonha – por ser uma pessoa com “altas habilidades”, para usar a expressão dos especialistas (a minha inteligência incomum que quase sempre me levava ao isolamento e era incompreendida pelos adultos que me cercavam naquele ambiente de pobreza material só pôde ser desenvolvida adequadamente quando, após rigorosa seleção, tornei-me aluno do colégio da Fundação José Carvalho, instituição filantrópica voltada para alunos “superdotados” oriundos de escolas públicas). O livro tocou, portanto, as fibras mais profundas de minha personalidade. E Solomon – ele também um diferente, já que é gay e tem dislexia – conseguiu fazer isso sem apelar para a autoajuda.
Embora as minorias e diferentes não costumem ser solidários entre si, Solomon age no sentido de elevar essa solidariedade: ele aponta como, por exemplo, a experiência de pais de crianças com síndrome de Down pode iluminar a vida de pais com filhos autistas ou transgêneros, sem, contudo, eliminar o que cada diferença tem de específica. Aliás, é no capítulo dedicado à síndrome de Down que há a reprodução da fábula moderna de Emily Perl Kingsley em que o filho diferente de um casal é comparado a uma mudança inesperada de destino numa viagem de férias planejada. (Leia aqui no aleitamento.com – Para MÃES e PAIS de FILHOS ESPECIAIS por Emily Pearl Kingsley: “Bem vindos a Holanda ?!”
“As famílias infelizes que rejeitam seus filhos diferentes têm muito em comum, ao passo que as felizes que se forçam para aceitá-los são felizes de uma infinidade de maneiras”, diz Solomon.
Recomendamos muito a leitura!