Por uma PATERNIDADE
dedicada, amorosa e sem medalhas
Daniel Costa Lima *
O relatório “A Situação da Paternidade no Mundo”, lançado em 2015, é aberto com uma frase curta e direta:
“Pais são importantes”.
No contexto das políticas públicas e das ações programáticas governamentais e empresariais, alvo principal do relatório, essa mensagem pode representar algo novo e abrir caminho para importantes desdobramentos. Já no plano individual, acredito que ela apenas “chove no molhado”.
Quem acha que teve um ótimo pai irá concordar com a frase e rapidamente recordará diversos ensinamentos recebidos, além de momentos de felicidade, afeto e cuidado que marcaram a sua vida. Quem acha que teve um péssimo pai também concordará e, provavelmente, terá um extenso rol de experiências categorizadas como traumáticas para atestar isso. Mesmo as pessoas que nunca conheceram seus pais, ou que tiveram pais extremamente ausentes, vão muitas vezes expressar o quanto isso as afetou. Falarão de um “buraco” nunca preenchido, tentarão colocar em palavras a dor causada por esse vazio e a luta de uma mãe que teve que ser tudo, deixando muitas vezes de ser ela mesma.
Como escrevi no texto anterior, a paternidade sempre foi socialmente celebrada, por isso, é preciso cuidado quando falamos que é preciso “valorizá-la”, sob o risco de jogarmos confete e aplaudirmos homens/pais por fazerem coisas que deveriam representar ações totalmente normais de cuidado. Por sinal, coisas que as mulheres/mães sempre fizeram e para as quais nunca ganharam uma única medalha de reconhecimento.
Eu sou lembrado disso em nove das 10 vezes que saio para caminhar com o meu filho de quatro meses, quando sou generosamente agraciado com olhares doces e sorrisos, especialmente de mulheres. Na semana passada, veja só, uma perfeita desconhecida me parou para dizer que achava lindo ver um homem carregando um bebê, ao que sorri meio sem jeito e respondi educadamente, “Mas senhora, eu não faço nada mais do que a minha obrigação, né?”.
Como qualquer mãe pode atestar, as reações recebidas por elas são bem diferentes… Mesmo quando as pessoas chegam falando com voz de bebê e se dirigindo à criança, a mensagem muitas vezes é revestida de cobrança e temperada com um toque passivo-agressivo: “Tão novinho e já na rua, é?”; “Oh, mãezinha e esse pezinho de fora, eu to com frio!”, “Oh, mamãe, isso lá é hora d’eu estar na rua?”; “Ele ainda mama?!”; “Ele não mama mais?!”; “Se a sua energia se alinhar, ele vai dormir que é uma beleza!” etc. etc. etc.
A valorização social da paternidade também pode ser vislumbrada sempre que homens ricos e poderosos são pegos com a boca na botija. Você pode ter certeza que 10 entre 10 deles vai em algum momento bradar “Eu sou um pai de família e mereço respeito!”, algo que curiosamente eu nunca ouvi sair da boca de uma mulher acusada de algum ato de locupletação.
Uma despretensiosa busca em obras literárias e cinematográficas também chega ao mesmo resultado, a paternidade sempre importou, e não é de hoje. Num esforço compartilhado com amigos e amigas no Facebook, não foi difícil listar diversos livros que trazem a paternidade como tema central, dentre eles:
O Rei Lear (William Shakespeare, 1606); Carta ao Pai (Franz Kafka, 1952); Cheio de Vida (John Fante, 1952); Lavoura Arcaica (Raduan Nassar, 1975); A invenção da solidão (Paul Auster, 1982); Dois Irmãos (Milton Hatoum, 2000); O Filho Eterno (Cristóvão Tezza, 2007); O Filho de Mil Homens (Valter Hugo Mãe, 2011); Diário da queda (Michel Laub, 2011) e A morte do pai (Karl Ove Knausgård, 2013).
Quando partimos para o cinema, o exercício foi ainda mais fácil:
Kramer vs Kramer (Robert Benton, 1979); O Rei Leão (Roger Allers e Rob Minkoff, 1994); Kolya (Jan Svěrák, 1996); A vida é bela (1997, Roberto Benigni); Billy Elliot (Stephen Daldry, 2000); O quarto do filho (Nanni Moretti, 2001); Uma lição de amor (Jessie Nelson, 2001), Procurando Nemo (Andrew Stanton, 2003); O Abraço Partido (Daniel Burman, 2004); À procura da felicidade (Gabriele Muccino, 2006); Cidade dos Homens (Paulo Morelli, 2007); Gonzaga, de pai para filho (Breno Silveira, 2012); Nebraska (Alexander Payne, 2013); Moonlight (Barry Jenkins, 2016) e Capitão Fantástico (Matt Ross, 2016).
Digo sem medo de errar que tanto a literatura quanto o cinema têm historicamente abordado o tema da paternidade mais do que o da maternidade e que as personagens desses homens/pais são dotadas de mais nuances, complexidade e profundidade do que as das mulheres/mães. Como escreveu Ana Júlia Gennari, Virgínia Woolf já havia desvelado essa questão em 1929, quando denunciou a falta de representatividade feminina de qualidade em obras ficcionais.
Em uma sociedade extremamente machista, misógina e heteronormativa como a brasileira, o desenvolvimento de iniciativas que buscam valorizar a paternidade dissociadas de uma leitura crítica de gênero podem ser não apenas injustas, por gratificar homens por coisas que as mulheres sempre fizeram, como também perigosas.
No livro “Angry White Men: American masculinity at the end of an era”, o professor e pesquisador Michael Kimmel mostra como o movimento de direitos dos pais (Father’s Rights Moviment) dos EUA teve início com um objetivo louvável – o direito a continuar sendo pai após o divórcio – mas rapidamente se transformou em algo bastante negativo. A pesquisa de Kimmel identificou que os principais ativistas e as principais lideranças desse movimento são pais “…furiosos que zombam de leis, das batalhas de custódia, das “putas” (suas ex-mulheres), de seus(uas) advogados(as) e do mundo feminista que os impede de manter a família que construíram, algo que tomam como um direito inalienável.” (2013, p. 137. Tradução nossa).
Ao tomar como ponto de partida a importância do papel dos pais sem, no entanto, empreender uma discussão sobre poder e privilégios masculinos, esse movimento rapidamente se converteu numa plataforma revanchista, composta quase que exclusivamente por homens brancos, de classe média e alta, que bradam contra suas ex-mulheres e contra o feminismo, supostamente, responsáveis por todos os males de suas vidas. Ainda que em menor escala, algo semelhante está começando a ser observado no Brasil e merece a nossa atenção.
Acredito que podemos e devemos sim falar sobre as mudanças positivas que vêm sendo demonstradas por tantos pais. Agora, será que podemos fazer isso sem nos colocar num pedestal? Da mesma forma, penso ser totalmente possível falar sobre a guarda compartilhada e sobre a importância do papel dos pais sem culpabilizar e atacar as nossas ex-parceiras e sem nos agarrar aos nossos privilégios como se fôssemos meninos mimados.
Torço para que o debate sobre as paternidades e as masculinidades cresça cada vez mais, mas que isso aconteça mirando a mudança, em especial no campo das políticas públicas voltadas à equidade de gênero.
Como saímos à pouco do período dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher, finalizo este texto saudando e evocando paternidades revolucionárias, solidárias, equitativas, feministas e não-violentas e lembrando que, sim, novas paternidades são possíveis.
*Daniel é pai de Francisco, psicólogo, mestre em saúde pública e consultor independente no campo de gênero, masculinidades, paternidade e cuidado e violência baseada em gênero.
Esse artigo foi publicado no Portal Vermelho em dezembro de 2017. [email protected]