Pai, e quando o vírus passar?
À princípio não soube bem o que fazer com essa pergunta, mas gostei do fato dela possibilitar que eu me distanciasse, mesmo que brevemente, dos medos e das necessidades de agora e dirigisse o meu olhar para o futuro próximo
por Daniel Costa Lima publicado no Vermelho.org.br
Eu e Carol chegamos à maternidade no dia 8 de março pouco antes das 11h da manhã. Às 13h38, vinha ao mundo Luís e poucos minutos depois, Caetano, ambos com saúde e com fome.
Desde o momento em que descobrimos que a desejada segunda gravidez era gemelar monocoriônica diamniótica, ou seja, gêmeos semelhantes (e não “idênticos”, obrigado mestre Winnicott), um sentimento que só consigo descrever como “assombramento” me tomou. A ideia de cuidar de gêmeos recém-nascidos para quem já tem um filho de menos de três anos soava nada mais, nada menos do que uma revolução prestas a eclodir; e nada me levava a crer que eu tivesse hoje outro tema sobre o qual escrever. Mas eu tenho.
No dia 10 de março a nossa agora grande família já se encontrava em casa e menos de uma semana depois, como milhões de outras, iniciávamos o nosso período de isolamento sem data para acabar. Curiosamente, após mais de vinte dias, foi numa raríssima saída que surgiu a inspiração para este texto – “E quando o vírus passar?” -, dizia a pichação quase inelegível no muro descascado.
À princípio não soube bem o que fazer com essa pergunta, mas gostei do fato dela possibilitar que eu me distanciasse, mesmo que brevemente, dos medos e das necessidades de agora e dirigisse o meu olhar para o futuro próximo. Ao alcançar esse bem-vindo fôlego, me recordei de um trecho da letra de “Anthem” (Hino), do poeta e cantor canadense Leonard Cohen:
Ring the bells that still can ring / Toquem os sinos que ainda podem soar
Forget your perfect offering / Esqueça a sua oferenda perfeita
There is a crack, a crack in everything / Há uma fresta, uma fresta em tudo
That’s how the light gets in / É assim que a luz entra
Profissionais dos mais diversos campos afirmam que o mundo que conhecemos já não existe mais e empreendem grandes esforços para mitigar os impactos da pandemia do Covid-19 para a população mundial. Leituras que discorrem sobre economia, trabalho, entretenimento, urbanismo, tecnologia, saúde, educação, segurança pública, religião etc., buscam identificar frestas para iluminar os caminhos que agora precisaremos trilhar.
De todas as que veem sendo debatidas para que possamos não apenas sair, mas sair com imprescindíveis aprendizados desta crise, a fresta que posso ajudar a identificar vem no formato de um chamado à reflexão e a ação por parte de nós, homens e, mais especificamente, dos pais. Penso eu, e espero que não esteja enganado sobre isso, que a concretude e magnitude do desafio presente nos ajude a finalmente compreender a importância de nosso engajamento no combate à desigualdade de gênero, via uma mudança urgente e permanente de nossa postura em relação a como vivenciamos as nossas masculinidades e as nossas paternidades.
A desigualdade de gênero é seguramente um dos principais e mais persistentes problemas enfrentado por sociedades ao redor do mundo, com impactos profundos e ramificados que vão desde os menores detalhes da vida de meninas e mulheres até a sustentabilidade da economia global. Sobre isso, não paira a menor dúvida (excetuando-se entre as pessoas que refutam evidências científicas básicas, claro), mesmo assim, seguimos sem enxergar no horizonte uma solução para o assunto. Para ser mais preciso, no ritmo em que estamos andando, a lacuna entre homens e mulheres irá demorar 99,5 anos para fechar.
Obviamente, mudar tal realidade não é simples, já que essa desigualdade é vital para a manutenção do patriarcado e está presente em todas as instituições. Além disso, é preciso reconhecer que muita coisa está longe do alcance do homem comum, nós, que temos ilusões de poder, mas pouco poder de fato (privilégio sim, esse todos temos vários). Mas há muito o que podemos fazer e não existe melhor lugar para começar do que com as nossas famílias, ao diminuirmos a absurda disparidade entre o trabalho doméstico e de cuidado feito por homens e mulheres, pais e mães.
De acordo com a campanha MenCare, em todo o mundo, as mulheres gastam muito mais tempo do que os homens – por vezes, até 10 vezes mais – com trabalhos não remunerados. Essa disparidade representa um dos pilares da desigualdade de gênero, impedindo o avanço e o bem-estar de mulheres, famílias, comunidades, países e do mundo.
Paridade nas atividades domésticas
Tendo isso em vista, a campanha lançou o “Compromisso 50/50”, afirmando que para atingir a justa paridade, os homens precisariam aumentar a sua carga de atividades de cuidado da casa e dos/as filhos/as em 50 minutos por dia, permitindo assim que as mulheres diminuam a sua em 50 minutos. Esse passo necessário está ao nosso alcance direto, o resto do caminho, que ainda é longo, depende de políticas públicas, legislação (como a licença familiar/parental) e serviços que possibilitem que pais e mães possam criar suas filhas e filhos com dignidade.
Parece simples, não é? Apenas 50 minutos…, Mas no meio do caminho existe algo extremamente difícil de ser reprogramado, a visão que a nossa cultura e sociedade transmitem – e que a grande maioria de nós homens compramos – do que é ser um “homem de verdade” e um “pai de verdade”. Mesmo com as bem vindas mudanças sociais que vem ocorrendo há no mínimo 70 anos e que alteraram para sempre como as mulheres (protagonistas dessa verdadeira revolução) vivem, e a configuração das famílias, continuamos perseguindo ideais de masculinidade e de paternidade que são não apenas irreais, como também danosos.
Nos agarramos com afinco a essas ilusões e achamos que se não continuarmos as perseguindo nos tornaremos obsoletos. Pior, achamos que as mulheres estão nos tornando obsoletos, quando, na verdade, é justamente o nosso medo e a paralisia dele decorrente que tem nos colocado nessa posição.
Chegamos então ao momento de hoje, confrontados por uma pandemia que expõe a nossa profunda fragilidade pessoal, familiar, comunitária e social. Se este não for o momento para quebrarmos definitivamente algumas de nossas ilusões e acelerarmos o processo em direção à igualdade de gênero, então creio que estamos de fato fadados a nos tornarmos obsoletos e não terá sido por falta de apoio e aviso das mulheres que nos cercam e, em especial, das temidas feministas.
Do dia para a noite, a rua, o trabalho, os encontros com a turma de amigos, o bar, o futebol, em resumo, os espaços desde sempre incrustados em nossa mente como supostamente de “domínio masculino”, se tornaram lugares a ser evitados. Escrevi uma vez que a revolução feminina foi (está sendo) para “fora”, para a rua e para o ambiente de trabalho e acadêmico e que a revolução masculina, por sua vez, deveria tomar o sentido oposto, para “dentro”, para a casa, para as famílias e para mais próximo de nossos sentimentos e emoções. Pois bem, o isolamento social em que agora nos encontramos nos forçou repentinamente a fazer esse movimento.
Homens de diferentes classes sociais estão sendo confrontados (evidentemente, em condições bastante diversas) com uma verdade um tanto inusitada e, espero eu, inquietante, o fato de se descobrirem ignorantes em relação ao funcionamento de suas próprias casas e, por que não dizer, de suas próprias famílias. Homens que talvez pela primeira vez tenham que olhar de frente e sentir o peso da rotina de se cuidar de todos os afazeres domésticos e das crianças, dia, após dia, após dia, após dia.
Homens que também descobrirão momentos felizes, mas primeiro, eu torço muito que encontrem o cansaço que chega a beirar o esgotamento físico e mental tão bem conhecido pelas mulheres. Infelizmente, acho que só assim para não saímos dessa como entramos, voltando para nossas rotinas, para o nosso estranhamento e distanciamento com a vida doméstica e familiar, para a nossa falta de empatia com as nossas parceiras ou mães de nossos filhos e filhas.
Para os que como eu são cercados de privilégios, esse momento também pode finalmente nos levar a reconhecer e valorizar (com respeito e melhor compensação financeira) o trabalho das empregadas domésticas e babás, começando por permitir que possam ficar em casa, cuidando de si e de suas famílias.
Saúde masculina
Um outro assunto, que daria outro texto, mas tentarei abordar rapidamente aqui, tem a ver com a saúde da população masculina ou, mais precisamente, com a falta de saúde. Há anos, eu e diversos/as colegas que militam e pesquisam no campo de gênero e masculinidades temos falado que o maior problema para a saúde dos homens é o machismo e que ao não cuidarmos de nossa saúde (obviamente, não tirando a responsabilidade de governos e outras instituições), também colocamos em risco a saúde de nossas parceiras ou parceiros e filhas e filhos; sem falar na saúde mental e financeira de nosso núcleo familiar. Seguindo nessa busca por frestas, torço para que nós finalmente consigamos compreender o que significa cuidar de si e cuidar das pessoas ao nosso redor.
Aquele que não é mais Presidente disse que precisamos “enfrentar o vírus como homem”. Vindo dele, nenhuma novidade. Dos duelos de honra (que acontecem até hoje, só que sem os rituais de outrora), passando pelos feminicídios e chegando a basicamente todas as guerras já travadas entre povos ou países, homens têm demonstrado que preferem matar e morrer a ter seus pontos de vista e estilo de vida contestados.
Como as rédeas do mundo ainda permanecem dominadas por essa ótica, as palavras, ou o melhor, o desejo que tento aqui expressar talvez seja apenas uma grande e ingênua ilusão. Provavelmente, quando tudo isso passar, continuaremos os mesmos.
Mas talvez não.
Numa rara entrevista em que aceitou comentar sobre uma letra, Leonard Cohen disse: “Toque os sinos que ainda podem soar: eles são poucos e raros, mas você pode encontrá-los.”
No meu lar e nos demais espaços que ocupo, continuarei tocando esse sino e, a cada dia, ensinarei Francisco, Caetano e Luís a também tocá-lo.