De que forma os homens do século 21 estão exercendo a Paternidade?
Quem reflete sobre esse cenário são os coordenadores da ONG Instituto Papai, Benedito Medrado, Marina Azevedo e Jorge Lyra.
De opressor a amigo, o conceito de pai ganhou novos contornos nas últimas décadas, como assinalou a historiadora Mary Del Priore em História dos Homens no Brasil (Ed. Unesp, 2013):
“Hoje, os pais não ocupam – ou não desejam ocupar – um papel de puro autoritarismo. Gritos e ordens não funcionam mais como reguladores do equilíbrio familiar. Apenas denunciam um indivíduo violento, contra o qual existem sanções. O papel do pai, ao contrário, é tornar possível o encaminhamento da criança, desde sua realidade biológica de pequeno ser vivo até a maturidade e sua integração social”.
Entre afetos e dispositivos de regulação
Em 1979, a telenovela Pai Herói trazia como tema de abertura a música Pai, composta e interpretada por Fábio Júnior, em homenagem a seu pai (já falecido na época). Sua melodia é ainda hoje lembrada no Dia dos Pais. Em sua letra, os encontros e desencontros, dores e alegrias da relação entre um homem de 20 ou 30 anos e suas memórias em busca do pai e de paz.
Quase 40 anos depois, narrativas heroicas de paternidade ainda povoam o imaginário social, e muitos se emocionam com enredos que carregam de afeto a paternidade e que alimentam a publicidade. Neste ensaio, buscamos abordar a paternidade para além dessa dimensão relacional. Entendemos que as relações de cuidado produzidas por homens são atravessadas por memórias e afetos, mas também por regimes de verdade que se constroem a partir de diferentes instituições que (re)produzem e regulam modos de ser homem, em nossa sociedade. Regimes que inscrevem a paternidade num campo simbólico particular em que o cuidado muitas vezes não é compreendido como experiência masculina genuína.
Chamamos essa rede complexa e heterogênea – que envolve palavras e outras ferramentas – de dispositivo, tomando emprestado o conceito do filósofo Michel Foucault. Assim, para pensar o dispositivo da paternidade nos dias atuais, precisamos enfatizar que, nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 1990, tem havido um conjunto de iniciativas que provocaram deslocamentos no modo como se percebe e se vive a paternidade atualmente.
Nesse cenário, destacam-se duas conferências internacionais de grande relevância para esse campo:
– a IV Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Egito (1994), e
– a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada na China (1995).
Nesses fóruns de discussão, afirmou-se como diretriz a busca de maior participação masculina na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos, especialmente no que se definia como “saúde materno-infantil”.
No Brasil, em 1997, surge o Instituto Papai, ONG feminista, sustentada em muitos dos argumentos produzidos naqueles dois fóruns e em consonância com princípios e diretrizes do movimento feminista, ao reconhecer que, por lutar pela emancipação das mulheres e ressignificação dos ordenamentos de gênero, esse movimento social impôs, inevitavelmente, uma reavaliação da noção de masculinidade e deslocamentos dos sentidos de paternidade. Emancipação que influenciou diretamente o modo como pensamos e vivemos hoje a paternidade.
Assim, como parte desse projeto político institucional, propomos, aqui, uma reflexão crítica sobre o exercício da paternidade, a partir de uma perspectiva feminista de gênero. Para tanto, é necessário operarmos com a lente da desnaturalização dos lugares tradicionais de gênero, fazendo com que questionemos comportamentos e características usualmente associados ao masculino em nossa sociedade. Ou seja, não podemos compreender as relações pessoais sem considerar o contexto político e social no qual estão inseridas.
Por exemplo, no campo das relações de trabalho, é preciso reconhecer que a grande diferença entre o tempo da licença-maternidade (120 dias) e o da licença-paternidade (cinco ou 20 dias) pressupõe que ainda cabe à mulher a responsabilidade quase exclusiva pelo cuidado infantil, desconsiderando a possibilidade de divisão equitativa do cuidado e negligenciando diferentes configurações familiares. E se o pai for solteiro? E se forem dois pais? Parece que ainda há muito por caminhar até a desejada “licença parental”.
Muitos homens que desejam se envolver mais no cuidado de seus filhos e filhas se veem impedidos disso em diversas situações. Não podemos esquecer que, numa sociedade capitalista, que valoriza e reconhece apenas o trabalho remunerado como produtivo, não se envolver no cuidado das crianças ainda é um privilégio para os homens e uma sobrecarga para as mulheres.
No campo da educação, também observamos uma recorrente separação entre as brincadeiras “de menina” (associadas ao cuidado infantil e ao lar) e “de menino” (associadas a competições e violência). Até mesmo em espaços institucionalizados de cuidado, como creches, raras vezes encontramos homens como educadores. Seja por resistência deles ou dos pais e gestores, que temem deixar crianças pequenas sob os cuidados de um homem. A escassez de trocadores (fraldários) em banheiros masculinos é outro exemplo dessa “arquitetura de gênero”.
Essas são apenas algumas situações que exigem, de todos, uma leitura mais complexa sobre paternidade. Especialmente nos dias atuais, em que modelos coloniais de paternidade ocupam o cenário político nacional e nos exigem tomadas de posição críticas.
Além disso, se para os homens em geral tais barreiras se fazem sentir cotidianamente, é importante refletirmos sobre como homens que têm suas experiências de vida entrecortadas por diferentes marcadores de desigualdade possuem menos condições para o exercício da paternidade. Homens adolescentes, pobres, negros, gays, solteiros e transexuais, por exemplo, encontram-se em contextos de desigualdade e estão associados a estereótipos que os afastam da ideia e da possibilidade de exercício do cuidado.
Dessa forma, pensar o exercício da paternidade a partir de uma perspectiva feminista de gênero nos coloca o desafio de, primeiramente, pensar na forma como a nossa cultura (re)produz, em suas instituições, sentidos sobre o que é ser pai, (in)visibilizando práticas. Em segundo lugar, questionar como esse universo simbólico e as desigualdades sociais informam as práticas de sujeitos diversos (marcados por classe, raça, idades e contextos). Por último, refletir sobre diferentes sentidos atribuídos à paternidade e como eles podem construir, ou questionar, desigualdades de gênero.
Benedito Medrado é psicólogo social, cofundador da ONG Instituto Papai e do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidade da Universidade Federal de Pernambuco (Gema-UFPE), além de coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE.
Mariana Azevedo é doutoranda em Sociologia e atual coordenadora do Instituto Papai.
Jorge Lyra é psicólogo social, doutor em Saúde Coletiva, cofundador do Instituto Papai e do Gema-UFPE, docente dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da UFPE.
Não podemos esquecer de que, numa sociedade capitalista, que valoriza e reconhece apenas o trabalho remunerado como produtivo, não se envolver no cuidado nas crianças ainda é um privilégio para os homens e uma sobrecarga para as mulheres
O GT Homens pela Primeira Infância da RNPI (do qual Mariana Azevedo foi coordenadora) e Marcus Renato de Carvalho, também membro endossamos essas reflexões.
Publicado originalmente na Revista SESC SP fevereiro 2018