Não havia como negar – o bebê era a sua cara – e, pressionado pelas duas famílias, assumiu: assim, aos catorze anos era pai. Difícil, muito difícil: cidade pequena, no começo do século, gente conservadora olhando-o feio na rua. Pior: pouco depois de dar à luz, a namorada, menina triste, recusou-se a ver o bebê; perturbada, acabou sumindo e nunca mais foi vista. Anos depois, correu a história de que havia morrido num hospício.
Ele teve, pois, de enfrentar sozinho a paternidade. Mas estava decidido, tão decidido quanto poderia estar um rapaz de sua pouca idade. Ajudado – não sem relutância – pelos pais, pessoas muito religiosas e responsáveis, dedicou-se por inteiro à tarefa. Trocava as fraldas do bebê, preparava as mamadeiras, dava banho. Era uma atividade contínua; só a interrompia para ir à aula e fazer os deveres de casa, bom aluno que era (mas não passou, infelizmente, do primário). De namoro e de futebol – adorava bater uma bolinha – não poderia mais sequer cogitar. Daí em diante sua vida transcorreria sob o signo da paternidade. Pai era, e pai seria sempre.
O bebê foi crescendo. E, o bebê crescendo eles ficavam cada vez mais parecidos. Os que não sabiam da história – os recém-chegados à cidade, por exemplo – achavam que eram irmãos; ele por constrangimento, não o desmentia: e o filho, quando começou a entender o que se passara, entrou no jogo do pai: “Quem me deu esta bicicleta? Foi o meu irmão mais velho”; ou: “Se você bater em mim, conto pro meu irmão”. Ele, por sua vez: “Tenho um irmãozinho que é uma graça, garoto muito vivo, muito esperto”.
Juntos ficaram pelo resto da vida. Nenhum dos dois casou. Tiveram os seus casos, obviamente, mas nem por isso se separam; continuaram morando na mesma velha casa, e assim a vida se passou.
Agora o pai tem noventa e quatro e o filho oitenta, mas tal diferença pouco significa, como seria de esperar. Fisicamente são parecidíssimos: as mesmas rugas, a mesma boca, desdentada. Mais que isto, tornaram-se senis quase ao mesmo tempo: os dois falam coisas sem sentido, os dois urinam nas calças, os dois tiram a roupa de repente. No asilo para idosos a que ambos foram recolhidos, ninguém sabe quem é o pai e quem é o filho; nem eles próprios, parece. Aquele que chama o outro de “paizinho querido” um dia, no dia seguinte gritará pelo “filhinho amado”.
…
Não faz muita diferença. Algum problema poderá surgir quando do óbito – quem morreu, o pai ou o filho? -, mas o administrador do asilo garante que esta dúvida não prevalecerá. Ele sabe que, quando os dois chegaram, há quinze anos, sendo alojados no mesmo quarto, o pai escolheu a cama da direita e o filho, a da esquerda; em meio a toda a deterioração mental que se seguiu esta escolha se manteve. E se manteria pela eternidade, se eternidade fosse possível, ou se – em sendo impossível – admitisse o perene amor entre pai e filho.
Moacyr Scliar
Este é um dos contos do Médico especialista em Saúde Pública, Moacyr Scliar produzido no final da década de 90. Scliar é colunista dos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo e colabora em vários órgãos de imprensa no Brasil. É um dos escritores brasileiros em atividade mais traduzidos e publicados no exterior.
Porto Alegre: L&PM., 2002.