Participação do pai no processo da amamentação:
vivências, conhecimentos, comportamentos e sentimentos
Cleide M. PontesI; Aline C. AlexandrinoII; Mônica M. OsórioIII
IDoutora em Nutrição, Programa de Pós-Graduação em Nutrição, Centro de Ciências da Saúde – Universidade Federal de Pernambuco (CCS-UFPE), Recife, PE. Professora adjunta, Departamento de Enfermagem, CCS-UFPE, Recife, PE
IIDoutora em Ciências Biológicas, UFPE, Recife, PE
IIIDoutora em Nutrição, Programa de Pós-Graduação em Nutrição, CCS-UFPE, Recife, PE. Professora adjunta, Departamento de Nutrição, CCS-UFPE, Recife, PE
RESUMO
Objetivo:
Identificar vivências, conhecimentos, comportamentos e sentimentos do pai no processo da amamentação.
Métodos:
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório e qualitativo, realizado com 17 casais moradores de uma favela da cidade de Recife (PE), Nordeste do Brasil, em relação ao aleitamento materno do último filho, com idade entre 6 e 8 meses. A entrevista semi-estruturada, conduzida por questões norteadoras, foi utilizada para coletar as informações. Estas foram investigadas à luz do referencial teórico, da construção histórica, social e cultural da paternidade, através da análise de conteúdo, na modalidade temática.
Resultados:
Desta análise, emergiram quatro temas: recordações ambíguas/esmaecidas sobre amamentação durante a infância; conhecimento sobre amamentação centrado na saúde da criança, responsabilidade da mulher e economia para o pai; comportamentos apresentados pelo pai durante a sua participação no ciclo grávido-puerperal direcionados à amamentação; e sentimentos entrelaçados de fragilidades ao amamentar.
Conclusões:
Os conhecimentos e sentimentos presentes na participação do pai na amamentação são produtos da socialização do homem/mulher, centrada no corpo biológico, reforçando que o amamentar pertence apenas à mulher.
Leia o artigo completo no J Pediatr (Rio J). 2008;84(4):357-364: Amamentação, paternidade, sentimentos, parto.
ABSTRACT
Objective: To identify the experiences, knowledge, behaviors and emotions of fathers with relation to the process of breastfeeding.
Methods: This is a descriptive, explorative and qualitative study involving 17 couples resident in a favela in the city of Recife, PE, in the Northeast of Brazil, whose most recent child was aged between 6 and 8 months. A semi-structured interview employing leading questions was used for data collection. These data were analyzed in the light of theoretical references, the historical, social and cultural construction of fatherhood, by means of thematic content analysis.
Results: Four themes emerged from this analysis: faint/ambiguous memories of breastfeeding during childhood; knowledge about breastfeeding is focused on the child’s health, mother’s responsibility and savings for father; breastfeeding-related behavior of father during his participation in the pregnancy-childcare cycle; and interconnected feelings of fragility when breastfeeding.
Conclusions: The knowledge and emotions involved in fathers participation in breastfeeding are the products of socialization of both men and women, centered on the biological body and reinforcing the belief that breastfeeding is the preserve of women.
J Pediatr (Rio J). 2008;84(4):357-364: Breastfeeding, fatherhood, emotions, delivery.
Introdução
Os resultados das pesquisas mostram que, no Brasil, as medianas da amamentação exclusiva (AME) e do aleitamento materno total, 23,4 dias e 10 meses1, respectivamente, não correspondem ao preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)2,3.
As causas deste cenário podem ser originadas na vivência de que o amamentar é visto apenas como uma técnica, sem levar em consideração o contexto histórico, social e cultural, constituindo um processo que envolve sentimentos4,5. Assim, estudos apontam a importância da participação do pai no sucesso desta prática4,6-10. No entanto, a sociedade brasileira delega ao homem a responsabilidade de provedor financeiro, marginalizando-o a uma participação na criação e cuidados com o filho, no cenário da saúde reprodutiva, nas etapas do ciclo grávido-puerperal e, conseqüentemente, da amamentação. É como se tudo isso pertencesse, quase que de forma exclusiva, ao mundo da mulher11-15.
A partir destas observações, faz-se necessário desvendar os fatores que estão facilitando ou dificultando a participação do pai no aleitar desde o pré-natal. Tal compreensão contribuiria, dessa maneira, para aumentar a duração do período da amamentação. Desta forma, o objetivo deste estudo é identificar vivências, conhecimentos, comportamentos e sentimentos do pai no processo da amamentação.
Métodos
Este é um estudo descritivo, exploratório e qualitativo16, realizado em uma favela da cidade do Recife (PE), Nordeste do Brasil, assistida pelo Programa de Saúde da Família (PSF).
A quantidade de participantes foi estabelecida pela saturação das falas16, totalizando 17 casais. Pelos critérios de seleção, cada casal deveria ter uma criança entre 6-8 meses (independente da condição de amamentação), morar sob o mesmo teto, com tempo mínimo de convivência de 1 ano, sendo o companheiro o pai biológico do último filho, nascido a termo (com peso ao nascer ≥ 2.500 g, sem patologia e/ou anormalidade ao nascimento).
Antes da coleta das informações, realizamos reuniões com as enfermeiras e com os agentes comunitários de saúde (ACS) do PSF sobre a importância e os procedimentos metodológicos do estudo. Os ACS marcavam a visita ao casal pela pesquisadora, a qual fornecia as explicações necessárias sobre a pesquisa e solicitava a permissão para entrevistá-lo.
Após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, entrevistamos os parceiros individualmente e em momentos diferentes, no dia escolhido por eles, na residência do casal e sem a existência de espaços que permitissem a comunicação entre eles sobre o conteúdo da entrevista. Esta foi gravada e, posteriormente, transcrita na íntegra. Na coleta, optamos pela entrevista semi-estruturada, guiada por questões norteadoras. Para o pai, questionamos:
Como foi a sua vivência/experiência com a amamentação, desde a sua infância até tornar-se pai? De acordo com os seus conhecimentos, você poderia dizer o que sabe sobre amamentação e leite materno? Como foi/está sendo a sua participação durante o processo da amamentação, desde o pré-natal, no nascimento e depois do nascimento do seu filho? O que você pensa/sente ao ver seu filho sendo amamentado no peito da sua mulher?
Já a companheira respondia o seguinte:
Como foi/está sendo a participação do seu companheiro no processo da amamentação desde o pré-natal, no nascimento e depois do nascimento do seu filho? Em relação ao seu companheiro, o que você pensa/sente sobre o comportamento dele durante os momentos da amamentação?
Na análise das falas, optamos pela técnica de análise de conteúdo temática, proposta por Bardin17. Os temas construídos foram interpretados à luz do referencial teórico sobre a construção histórica, social e cultural da paternidade, ancorado em vários autores18-21. Neste referencial, está contemplada uma análise das implicações desta construção no modelo de participação do pai no processo da amamentação22.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Respeitando os preceitos da Resolução 196/96, foram atribuídos nomes fictícios aos participantes, acrescidos de um número (1 a 17) para a identificação do casal.
Resultados e discussão
As características pessoais e os aspectos relacionados à amamentação do filho dos informantes são apresentados na Tabela 1.
Quatro categorias temáticas emergiram da análise em questão: recordações ambíguas/esmaecidas sobre amamentação durante a infância; conhecimento sobre amamentação centrado na saúde da criança, responsabilidade da mulher e economia para o pai; comportamentos apresentados pelo pai durante a sua participação no ciclo grávido-puerperal direcionados à amamentação; e sentimentos entrelaçados de fragilidades ao amamentar. As subcategorias que subsidiaram estes temas estão contempladas na Tabela 2.
Tema 1 – Recordações ambíguas/esmaecidas sobre amamentação durante a infância
Nas falas dos participantes, percebemos que as lembranças sobre a amamentação advindas da época de quando eles eram crianças, ancoradas ou não em informações feitas pelas suas mães, transportam cenários antagônicos desta prática milenar:
Minha mãe dizia que eu mamei só até os 2 meses (…) eu só tomava só mingau (…) (João2); (…) lembro que ela botava o peito pra mim chupar (…) lembro que tomava mamadeira, tomava leite, mas do peito, não! (Pedro1); Minha mãe diz que eu larguei logo o peito dela, nos primeiros meses (…) (Tomé17).
Estes cenários se repetem quando a escola foi trazida por eles como fonte de informações sobre a amamentação:
Na escola se falou muito, na quarta, quinta série (…) (André9); Na escola não falava sobre amamentação não (Vítor8).
Ainda evidenciamos que as vivências/experiências podiam até ter existido nos tempos de criança, mas não permaneceram registradas, segundo as falas dos parceiros:
Experiência de quando pequeno eu não me lembro. Também nem sei se mamei (Vítor8); (…) do tempo de criança, da amamentação, eu lembro muito pouco (…) eu não lembro de muita coisa (Rui7).
Pelas falas recortadas, cinco dos entrevistados nasceram antes da década de 70. Os demais, nos anos 1970 e 1980. As suas parceiras, exceto Nara6, Carla7, Ana13 e Luzia14, nasceram nas décadas de 70 a 90 (Tabela 1). Nessas décadas do século XX existiram vários movimentos pró-amamentação2. Mesmo assim, percebemos que, durante a infância dos informantes, em casa e/ou na escola, as conversas ou orientações sobre amamentação não foram substanciadas e/ou consistentes, visto que, nas suas falas, emergiram recordações ambíguas ou esmaecidas: ora não lembravam de nada; ora mamavam ou tomavam leite que não era o materno; ora a escola falava, ora não orientava sobre amamentação. Reforçando este formato de recordação, podemos inferir que os informantes, na fase adulta, não provocaram este tipo de conversas recordatórias, e as suas companheiras não os estimularam a trazer à tona a sua história de vida pregressa sobre amamentação. Então, estes atores reproduziram que o amamentar pertence somente ao mundo da mulher, pois ela é a “provedora do leite materno”23. Este modelo foi construído ao longo da evolução da humanidade, durante a organização social referente às diferentes formas de famílias encontradas18-21.
Tema 2 – Conhecimento sobre amamentação centrado na saúde da criança, responsabilidade da mulher e economia para o pai
Alguns pais possuem conhecimentos corretos sobre leite materno e amamentação:
O leite materno (…) evita infecções (…) (Nilo12); (…) o leite materno tem tudo (…) fósforo, ferro, vitaminas, sais minerais (…) em dosagens certas, específicas para o bebê, né? Pra aquele bebê, né? (Pedro1); Amamentação é (…) começar assim que ela (criança) nasce (…) já tem direito a amamentação (Igo5); É bom dar leite materno à criança (…) até 1 ano, 2 anos, quantos anos puder (…) (Diogo10).
Estes conhecimentos podem ser um dos fatores que favorecem a escolha e a manutenção da prática do amamentar7. Diante deste contexto, percebemos outro significado, que está permeando estes conhecimentos: o amamentar está fortemente ligado à saúde da criança e direcionado à economia financeira do próprio pai:
Vantagem tá na vista né? (…) quando a criança nasce, com 1 mês de idade empurram leite (artificial) nele, ele não vai ter uma saúde do bebê que mama até 1 ano de maneira alguma (José3); O leite materno (…) a amamentação é importante (…) pra saúde da criança (…) livra de (…) doenças que sola em crianças (…) (Artur14); O leite materno economiza um bocado de coisa, né? O bolso! O cara não vai comprar leite (…). O menino quando ela (mãe) tira é bronca. É leite, é mucilon, tem que comprar um bocado de coisa. É ruim demais (Diogo10).
Entretanto, percebemos que não foram referenciadas as vantagens da amamentação para a mulher24. A falta deste enfoque nas falas dos homens pode desestimular a mulher na continuidade do amamentar, tendo em vista que apenas oito dos 17 filhos estavam sendo amamentados (Tabela 1). Além disso, nos entremeios destes conhecimentos, e corroborando outros estudos25,26, percebemos que o amamentar é de responsabilidade apenas da mulher:
Amamentação? Eu tô por fora. Isso aí é mais pra mulher, né? Saber dessas coisas aí (Diogo10).
Desta forma, estes significados emergidos do conhecimento sobre amamentação estão guiando o comportamento destes pais e, assim, podem estar trazendo atrelados outros atributos do modelo machista27, dificultando a manutenção da AME por 6 meses e a sua continuidade por 2 anos ou mais. Este pensamento é corroborado pela prática da amamentação dos filhos dos atores deste estudo (Tabela 1).
Tema 3 – Comportamentos apresentados pelo pai durante a sua participação no ciclo grávido-puerperal direcionados à amamentação
Durante a gravidez, a participação de alguns pais no processo da amamentação ocorreu de forma precoce, compartilhando as consultas pré-natais. Neste período, alguns deles procuravam alternativas para que a mulher pudesse produzir leite e ainda conversavam com a companheira sobre o assunto:
Participei do pré- natal (…) Participei de palestra (…) Participava das consultas (…) (Pedro1); (…) ele sempre me acompanhava ao médico (…) Ficava sempre procurando saber mais (…) (Maria1); (…) eu comprava muitas coisas (…) que dizem que puxa leite (…) (Tiago13); Eu conversei (…) para ela se alimentar bem para ter bastante leite para a menina mamar até quando fosse necessário (…) Tomar muito líquido, muito suco para gerar mais leite (…) (Artur14); alisava a minha barriga (…) conversava comigo (…) (Vânia11).
Por outro lado, outros homens, por diversas razões, não participaram das consultas pré-natais e quando participaram, não eram levados em consideração. Além disso, não havia ações direcionadas à amamentação no serviço em que a mulher foi atendida:
(…) eu não sou muito chegado nesses negócios. Não fui não no pré-natal (Lucas15); Ele nem ligava. Eu ia sozinha para o pré-natal (…) ele nunca queria ir (…) dizia que tinha preguiça (Dalva15); (…) Ele nunca foi ao pré-natal não, porque ele trabalhando, não tinha como (…) (Lívia17); No pré-natal eu acho que não tinha nenhum sentido, né de ir (…) (Simão16); (…) ele ia (pré-natal), mas não perguntava (…) ficava só ouvindo (…) Não falava da amamentação que eu lembre não (Joana4).
No período gestacional, enquanto alguns pais participaram, outros encontraram dificuldades e/ou não foram estimulados a participar da assistência pré-natal, na qual deve haver ações direcionadas à amamentação e ao acolhimento ao pai28. O envolvimento dos pais com o trabalho também foi apontado, em outro estudo29, como uma das causas que podem ser um empecilho à participação do homem nas consultas pré-natais. Estes fatores impeditivos não permitiram que eles adquirissem conhecimentos sobre amamentação, ocasionando receios sobre a inserção dos mesmos na prática do amamentar, conforme a fala de um dos pais:
(…) depois que nasceu (…) fiquei (…) só olhando (…) Achava bonito ele mamando (…) tudo era novidade (…) eu tinha até receio de falar alguma coisa e de ao invés de estar beneficiando estar prejudicando (…) (Nilo12).
Neste contexto do pré-natal, apesar das recomendações dos órgãos governamentais28 e da comunidade estudada ser assistida pelo PSF, notamos que há dificuldades dos profissionais em proporcionar um ambiente favorável para acolher o pai nas questões da amamentação. Em continuidade ao ciclo grávido-puerperal, os pais deste estudo, exceto um, não participaram do nascimento do filho:
Não, não teve coragem não de participar do parto (Aline5); O parto eu não pude assistir, né? Porque eu tava com dificuldades no trabalho (…) (Luiz11); Eu fui barrado na porta (maternidade) (…) tive que ficar do lado de fora esperando a criança vir ao mundo (Raul4).
Eles podem ter perdido a oportunidade de experienciar o amamentar nas primeiras horas de vida. Isso não foi diferente para o único pai que presenciou o nascimento do filho. Ele não pôde observar ações dirigidas à amamentação, passo importante para o sucesso do aleitamento materno30:
Eu sei que deve amamentar assim já que nasce, até na hora do parto ela (companheira) pediu (…) eu reclamei com a médica dela, porque quando ele nasceu não colocou logo no peito dela (…) eu acompanhei a cirurgia (…) Depois eu perguntei e ela (médica) veio com uma desculpa que eu não entendi (…) (Rui7).
Mais uma vez, os pais, apesar de serem também protagonistas, foram excluídos das fases da saúde reprodutiva, descartando-se a possibilidade do seu envolvimento com o processo da amamentação. Esta exclusão faz parte dos princípios do patriarcado, que naturalizou, através dos tempos e da própria cultura, o que é próprio do homem e da mulher31. A inclusão do homem no pré-natal e parto poderia fazer com que houvesse ações transformadoras dirigidas ao compartilhamento do aleitar.
Diante da descontinuidade ou da inexistência de ações, no pré-natal e no parto, que fornecessem ao pai um alicerce sobre a prática do amamentar, observamos que eles apresentaram comportamentos diferentes durante a amamentação do filho, alguns dos quais estavam relacionados à participação ativa, estimuladora, entrelaçada de carinho, cuidado e acolhimento:
Ficava olhando minha filha mamando (…) eu é que colocava ela para mamar. Quando ela (companheira) tava cansada (…) eu que pegava ela (filha) e limpava a mama dela (companheira) (…) e colocava (Artur14); (…) ele sempre me acompanhou pra dar de mamar (Nara6); Ele ajudou muito dar de mamar (…) estimulava muito (…) ele fazia massagem para estimular o leite. Comprava (…) coisas para estimular (…) o leite para o bebê. Ele ficava assim, observando dando de mamar (…) Ele levava o menino até onde eu trabalhava para ele poder mamar (…) (Rosa12).
Outros comportamentos diziam respeito à participação dirigida pela pressão à mulher, trazendo ainda o autoritarismo e a agressividade:
De instante a instante eu digo a ela, ele (filho) tá chorando ele quer peitar, aí ela reclama, é direto é direto (…) (Davi6); (…) de instante e instante ele fazia: eu acho que ele tá com fome (…) às vezes o menino não tá nem com fome, “*** ele quer peito”, ele diz mesmo assim. Ele diz logo: “Oh, o menino quer peito, vai, vai, vai” (Lea2); (…) às vezes eu não quero dar de mamar ele diz: “você vai ter que dar de mamar até 1 ano pelo menos”, tem hora que estressa, dar de mamar de instante, instante (…) (Lívia17); Ele ficava reclamando, é pra dar o peito a ela, é pra dar leite de peito (…) mas se ela (filha) não quer, mas tem que dar (…) (Inez8).
Também observamos a participação voltada apenas para atender as necessidades do filho, excluindo as da companheira:
(…) amamentação (…) foi muito difícil (…) desde o início minha médica disse, você não tem bico. Então tem que fazer bico (…) eu queria que ele participasse nisso (…) ele tinha vergonha e dizia é só do bebê isso aí, eu não vou tocar (…) tive muita dificuldade (…) leite pedrado (…) chorei muito, tive depressão, mas tudo isso sozinha, porque meu marido sempre visando mais o menino. Então eu passei três dias sem fazer coco, quando eu estava no banheiro, no momento em que eu podia fazer, ele dizia ele tá chorando, é peito, é peito é peito (…) Tudo era peito. Eu não podia fazer xixi, eu não podia fazer coco, eu não podia fazer nada… a participação (…) do meu marido na amamentação foi infeliz. Eu fui muito infeliz (neste momento ela chorou) (…) ele fica observando dando de mamar (…) Aí ele diz, ele só gosta mesmo de peito (…) (Carla7).
A participação passiva, devido à falta de conhecimento, foi referida na fala de Raul4:
(…) ajudar não tinha muito em que, eu não sabia como tinha que orientar, né? (…) não opinava muito para não sugerir uma coisa errada (…) eu não tinha muito o que dizer, eu não tenho experiência (…).
Nas falas de um dos casais, verificamos comportamentos ambivalentes na vivência do processo da amamentação, ou seja, ora a participação estava voltada para a amamentação, ora para o desmame:
(…) ele queria que eu desse de mamar (…) mandava eu tomar muito suco, tomar coisa doce (…) estimulava (…) para ter leite (Ana13); Quando eu fui para maternidade, como eu já sabia que ela não tinha leite (…) eu levei uma mamadeira de chazinho de erva-doce (…) levei meia, entrei até com ela (mamadeira) escondida no bolso (…) aí foi que tranqüilizei ele (filho), ele tomou e ficou caladinho (…) Quando chegou em casa ela deu mingau mesmo (…) e até hoje é mingau (Tiago13).
Durante o ciclo grávido-puerperal, a maioria dos pais se envolveu com o amamentar da forma como aprendeu culturalmente. Estes comportamentos participativos continuam sendo calcados por um dos atributos herdados do patriarcado, o poder, garantindo a manutenção da linhagem paterna18-22. Neste sentido, chamamos atenção para o fato de que a participação dos pais das crianças que continuavam mamando foi movida por algum tipo de pressão sobre a sua companheira (Lea2; Rita3; Nara6; Carla7; Vânia11; Lívia17). Então, devemos refletir até quando este comportamento poderá contribuir com a duração desta prática. Como esta participação pode ter contribuído com a prática da amamentação, haja vista que apenas duas crianças tinham mamado exclusivamente por 6 meses e, após este tempo, foi mantida a amamentação mista (Tabela 1), atendendo às recomendações da OMS30?
Tema 4 – Sentimentos entrelaçados de fragilidades ao amamentar
A maioria das falas dos casais mostrou que o comportamento do companheiro diante da vivência do amamentar é emoldurado por sentimentos de felicidade, alegria, amor, afeto, carinho, prazer, emoção, orgulho, entre outros:
Ele gosta (…) ama (…) Ele sente bem, feliz (…) (Rita3); A gente sente uma emoção (…) (Artur14); Eu via nele alegria (…) (Luzia14); Sentia (…) orgulho do meu primeiro filho sendo amamentado pela própria mãe dele (André9); (…) meu marido ficava olhando (…) abestalhado (…) (Sônia9).
Também notamos uma controvérsia na expressão do sentimento entre o casal:
(…) eu acho normal, não vejo nada assim (Simão16); (…) ele tem sentimentos bom (…) beija nós dois (Júlia16).
Estes sentimentos fluíram da vivência cotidiana do homem, tendo como eixo norteador imagens reais (mãe amamentando), retratando que a mulher, através desta prática, está garantindo a sobrevivência do seu filho, mantendo viva toda a carga genética do procriador, mostrando ao mundo a prova concreta e visível da sua sexualidade e virilidade: seu filho. Desta forma, o pai comprova a “sua condição de homem, de adulto e de heterossexual”27.
Ainda observamos a existência do sentimento de exclusão do homem, como também o comportamento expresso pelo seu silêncio como uma forma de embotar as suas emoções e/ou de ficar omisso ao que está acontecendo neste mundo que pertence à mulher:
(…) eu fiquei um pouco distante, que ele chegou até a reclamar porque assim, tava só com tempo mais pra ela (filha) (…) esquecendo um pouco dele (Joana4); (…) Ele fica calado (…) (Dalva15); Não fez cara feia, (diante do desmame) nem falou, nem nada (Alice10); Acho que tava ficando de lado viu? Quando ela tá dando de mamar ao menino a gente não chega nem perto (…) Aí eu pegava e me saía (Lucas15).
Os significados permeando as falas que originaram os temas construídos deste estudo revelam comportamentos, tanto dos homens como das mulheres, que excluem o pai do processo da amamentação, podendo acarretar fragilidades no desenvolvimento desta prática. Estes comportamentos podem ser produtos do processo histórico, social e cultural da paternidade, os quais foram internalizados pela sociedade até os dias de hoje, naturalizando através dos tempos e da própria cultura o que pertence ao homem e à mulher e, desta maneira, distanciando o homem das tarefas femininas, sendo a amamentação ainda de responsabilidade apenas da mulher22,31.
Neste estudo, observamos que os conhecimentos, comportamentos, vivências e sentimentos que envolvem a participação do pai no processo da amamentação são decorrentes da socialização do homem e da mulher, centrada no corpo biológico, registrando que o amamentar pertence à mulher.
Portanto, é preciso que ações sejam implementadas por todos os segmentos da sociedade, desmistificando os atributos do homem e da mulher, construídos ao longo da história da humanidade. Assim, buscar outros eixos norteadores que possam divulgar e internalizar que a prática do amamentar deve ser centralizada na conjugalidade e completitude de todos os membros da família, envolvendo, desta forma, o homem no processo da amamentação.
Agradecimentos
Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento do Projeto “Proposta de modelo intervencionista no processo da amamentação contextualizando a participação do companheiro”, o qual originou o presente estudo (processo nº 472988/2004-2).
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Correspondência:
Cleide M. Pontes
Universidade Federal de Pernambuco
Departamento de Enfermagem
Av. Prof. Moraes Rego, s/n, Bloco A – anexo ao HC/UFPE
Cidade Universitária
CEP 50670-901 – Recife, PE
Tel.: (81) 2126.8543
Fax: (81) 2126.3932, (81) 3453.5814
Email: [email protected]
Fonte financiadora: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Estudo originado em projeto financiado intitulado “Proposta de modelo intervencionista no processo da amamentação contextualizando a participação do companheiro” (processo nº 472988/2004-2).
Artigo extraído da tese de doutorado intitulada “Proposta de incentivo à participação do homem no processo da amamentação”, escrita como parte do Programa de Pós-Graduação em Nutrição, CCS-UFPE, Recife, PE.
O trabalho recebeu prêmio no IX Encontro Nacional de Aleitamento Materno (ENAM), realizado no período de 03 a 06 de setembro de 2006, em Porto Alegre, RS.
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.