Um pai que se constrói
Em seu último romance,
Cristovão Tezza
escreve sobre como aprendeu a amar o
Síndrome de Down
No mundo há sempre pessoas que estão à frente de seu tempo, para delícia de seus contemporâneos que tenham espírito suficiente para percebê-lo. No Brasil, uma dessas criaturas quase alienígenas foi Leila Diniz, a musa desbocada, livre, leve e solta de toda uma geração. Ao nascer sua filha Janaína, Leila deu entrevista à Revista Cláudia dizendo-se maravilhada por constatar que “a pessoa que mais amo no mundo pode ser também a pessoa que mais odeio”. É claro que houve protestos das mais conservadoras – imaginem só se alguma mãe de respeito pode dizer tal coisa! -, mas provocou risadas aliviadas em todas aquelas que uma vez, ou talvez mais de uma vez, tenham desejado jogar o filho chorão, teimoso, inapetente pela janela…
Hoje há pensadores defendendo que o amor materno é um amor conquistado. Não se acredita mais piamente em “instinto materno”, e para desmentir tal estereótipo basta que se olhe ao redor: há mulheres que tiveram filhos e não sabem ser mães, e há mulheres sem filhos cheias de generosidade e dedicação… Obviamente o mesmo pode ser dito a respeito dos homens, e da tal paternidade.
Cristovão Tezza é meu amigo há mais de 20 anos, e uma das inteligências mais brilhantes que conheço. Aos 28 anos (acaba de completar 55, a mesma idade de sua mulher), nasceu-lhes Felipe, o primeiro filho, com síndrome de Down, trissomia do cromossomo 21, na época chamada de mongolismo. Para qualquer pai isso seria um choque, ainda mais quando inesperado. Mas para alguém com o nível de inteligência de Tezza, com toda sua criatividade, ter um filho sem condições de aprender praticamente nada pode ser um golpe grande demais para assimilar.
Assim, em O filho eterno, Cristovão Tezza criou um romance autobiográfico, escrito com toda a sinceridade, em que a construção de si mesmo como alguém que vai, inapelavelmente, ser o eterno pai de um filho que jamais será independente é mostrada em todas as suas fases. Porque é disso que o livro trata: é um bildungromans, termo alemão que serve para designar justamente este tipo de romance, em que o protagonista consegue se construir enquanto pessoa, apesar de todas as ciladas e dissabores da vida ou do acaso.
Na primeira dessas fases, a descrença; junto com isso, o desejo de se libertar da carga, pela morte do filho (afinal, mongolóides vivem pouco…). A vergonha que sente do filho, a vontade de fugir (e sabemos que muitos pais de fato fazem isso, incapazes de administrar a situação, e abandonam mãe e filho). Sair de Curitiba e vir lecionar na UFSC proporcionou-lhe esta oportunidade. Ao mesmo tempo, ofereceu-lhe, também, a chance de perceber que não poderia jamais fazê-lo…
A inconformidade com a situação leva-o a buscar o impossível, algo que para um espírito religioso corresponderia a um milagre. Para um ateu, porém, dobrar-se aos ditames do mais puro acaso – nada mais existe, além da ciência – é muito mais doloroso do que aceitar uma interferência divina, e é completamente inaceitável. Acenam com a possibilidade de cura, numa clínica do Rio de Janeiro, e o casal vai até lá, levando a criança. A estimulação constante, várias vezes ao dia, com o auxílio de quem estiver presente, transforma a casa numa clínica e é seguida durante um ano inteirinho, metodicamente. Nenhum resultado se obtém, a não ser, talvez, transformar Felipe numa criança super ativa, por ter sido submetido a este excesso de estímulos.
São usados recursos literários simples, como atribuir nome apenas a Felipe, e as outras personagens serem designadas por sua função (a empregada, a professora, a/o médico/a) ou pelo parentesco (o pai de Felipe, a mãe, a irmã, a sogra…). Em cada parágrafo, reflexões sobre cada fato, a imensa capacidade de Tezza – seja pela leitura, seja pela escrita – de utilizar cada grama de conhecimento adquirido em tentativas de explicar a existência, de superar a adversidade, de manter o contínuo e inegável bom humor. E, como já dizia Oswald de Andrade, a alegria é a prova dos nove.
Conheço toda a obra de Tezza, desde o primeiro romance (O terrorista lírico), o infanto-juvenil (Gran-Circo das Américas), um frustrado livro de contos (A Cidade Inventada). Sei que na juventude sempre foi almejado por ele tornar-se um poeta, e acabou desistindo de fazê-lo ao constatar que a poesia não era sua linguagem.
Depois de tentar a narrativa curta, desistiu dela, também. Metódico, persistente, incansável, é um construtor de romances, e leva em média dois anos para terminar um. Já li todos, e considero Tezza um dos maiores romancistas brasileiros, sem favor algum.
Testemunhei a produção de um de seus livros, Giuliano Pavollini, que ia me contando nos cafezinhos do lendário Bar do Básico, nos tempos em que partilhávamos a mesma sala, na UFSC. Isso criou em mim uma expectativa que sofreu um tremendo impacto ao ler o livro: a obra narrada era uma, a obra realizada era outra, apesar de ambas contarem a mesma história. O meio faz toda a diferença. Ao mesmo tempo, tecia uma única crítica aos livros dele, a de serem de um cerebralismo excessivo, pouco temperado pela afetividade e pela emoção, como se temesse soltar as rédeas dos sentimentos.
Acompanhei os últimos 20 anos de vida da família Tezza, Felipe incluído, criatura fantástica que é, e a história de O filho eterno, seu enredo básico, me é por demais conhecida. Ao mesmo tempo, lê-la no livro causou-me um deslumbramento e me comoveu até quase as lágrimas. Ah, dessa vez a emoção está lá, a sinceridade que lhe é tão característica está lá, a capacidade da alegria em meio à mais completa adversidade está lá… A literatura de Tezza jamais voltará a ser a mesma, e é interessante observar a ironia da vida: o grande sucesso de crítica e público que este livro lhe está proporcionando lhe advém do filho que inicialmente não conseguia aceitar, seu filho eterno.
* Escritora, autora de O sapo azul, o sim da poesia (EdUFSC), e A sapinha meiga (Design Editora). Professora aposentada da UFSC
Trecho
“Anos depois, ele pensaria: vivemos de um modo tão profundamente abstrato, que não bastava a presença da criança, todas as suas evidências; para que ele começasse, de fato, a se tornar alguma coisa, era preciso um documento oficial, um papel, um carimbo, uma comprovação de um saber inatingível, uma fotografia ilegível, aquelas manchinhas negras dançando no caos de um fundo cinza, agora ordenadas por tamanho e tipo, uma a uma, em duas colunas, dando uma ordem científica ao caos da vida real, a determinar a natureza de uma vida. Não o cromossomo, que é irrelevante, por incompreensível; a fotografia do cromossomo, já reorganizado para que dele tenhamos um sentido e uma explicação. Três estranhos em silêncio. Não há o que abraçar”. (p. 66)
Fonte: Diário Catarinense
Florianópolis, 8 de setembro de 2007
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Prof. Marcus Renato de Carvalho
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