Família brasileira
Mais tempo para ser pai
Para muitos pais separados, o fim do casamento significa uma vida longe dos filhos. Em defesa da guarda compartilhada, eles criaram associações e querem participar mais do convívio com as crianças. Em dez anos, o número de famílias sem mãe subiu 74,5%
Nehil Hamilton
Integrantes da Participais, Associação Brasiliense de Pais Separados: Contatos começaram pela Internet
O número 96 está espalhado por todos os cantos da vida de José Antônio Ferreira Filho, 46 anos. Fora do contexto, é apenas um par de dígitos que não explica coisa alguma. Mas eles significam boa parte da insistente luta desse funcionário público. Representam a quantidade de horas em que ele convive com os filhos a cada mês. As visitas quinzenais são marcadas nos fins de semana — são quatro dias, e apenas isso. Pai separado de um menino de 9 anos e uma menina de 11, ele está empenhado em reverter a situação e adicionar algarismos àquele número que tanto o perturba. Tudo o que José Antônio exige é mais tempo para ver as crianças. ‘‘Das 720 horas do mês, eu só tenho direito a 96. É muito pouco, é quase nada’’, ele vive repetindo.
A angústia não é apenas dele. Alcança muitos pais que, descontentes com decisões judiciais que os deixam sem tempo para participar da educação das crianças, travam no país uma guerra invisível para mudar as regras dos processos de guarda dos filhos. Cada vez mais, manifestam a insatisfação por meio de associações e em sugestões de projetos de lei federais. Dão voz e corpo a uma revolução na família brasileira que se revela ano após ano em estatísticas oficiais. O número de pais interessados em dividir, em pé de igualdade com as mães, as responsabilidades pelo bem-estar dos filhos aumentou. Eles querem muito mais do que apenas pagar as contas das crianças.
Dados do Censo 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dão pistas do novo pai que engatinha na sociedade brasileira. Em 1991, o país tinha aproximadamente 655 mil famílias formadas apenas por pais e filhos, sem a presença materna. Em 2000, o número saltou para perto de 1,1 milhão. Apesar de representar somente cerca de 2% dos lares, esses arranjos familiares quase duplicaram em apenas nove anos — um aumento absoluto de 74,5%.
‘‘Está se iniciando uma tendência de crescimento de famílias formadas apenas por homens que vivem sozinhos com filhos. É uma nova realidade que foi captada pelos números do IBGE’’, explica Ana Lúcia Saboia, do Departamento de População e Indicadores Sociais do IBGE.
Uma nova noção de paternidade
Para a professora Mireya Suarez, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), os números indicam uma importante ruptura no modelo tradicional da figura paterna. ‘‘Aos poucos, há uma mudança da noção de paternidade no Brasil. Até por causa do aumento do número de divórcios e de campanhas educativas feitas pelo Estado e por organizações que se preocupam com os direitos das crianças e adolescentes, o pai vem exigindo participação efetiva no cotidiano dos filhos’’, observa.
Quando a participação não é possível, por motivos de separação, a solução encontrada por um número crescente de pais é formar ou participar de associações. Em março de 1997, foi criada em Florianópolis (SC) a Associação de Pais Separados do Brasil (Apase), que hoje tem representações no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Juiz de Fora (MG). Há dois anos, nasceu a Pais para Sempre, de Belo Horizonte (MG). Este ano, Brasília ganhou sua primeira associação de pais separados: a Associação pela Participação de Pais e Mães na Vida dos Filhos (Participais).
A Pais para Sempre é um exemplo de resposta à carência que existe no país de grupos de apoio de pais que querem continuar a vida ao lado dos filhos após a separação. A idéia de sua fundação partiu do drama pessoal do jornalista Rodrigo Dias, 37 anos. Com a separação, ele ficou 45 dias sem ver o filho Lucas quando o menino tinha quatro anos e meio de idade. ‘‘Meu filho sofreu tanto quanto eu’’, conta.
Revoltado com a dificuldade de conseguir na Justiça mais tempo para se encontrar com a criança, ele abriu a associação como espaço de encontro de pais em situações parecidas com a dele. Hoje, ela tem 680 participantes e está prestes a lançar o primeiro jornal voltado para pais separados no Brasil, o Compartilhar.
Foi inspirado na proposta de Rodrigo que o engenheiro civil e analista de sistemas Alfredo Oton de Lima, 42 anos, ajudou a criar a associação brasiliense. A idéia foi propagada inicialmente pela Internet, em e-mails e listas de discussão. ‘‘Os pais se conheceram porque todos lutavam mais ou menos pela mesma coisa: ter a chance de participar da educação dos filhos junto com as mães deles, mesmo depois da separação’’, diz ele.
O drama das visitas quinzenais
A idéia parece simples, mas esbarra na Justiça. Apesar de, na prática, os juízes decidirem algumas vezes por sistemas de guarda dos filhos mais flexíveis, um grande número de pais ainda se vê preso às tradicionais visitas quinzenais.
A primeira reunião do grupo, que ainda não tinha o nome de Participais, ocorreu no final de fevereiro. Foi em um bar da cidade, numa noite de segunda-feira. ‘‘Nesse encontro, vimos que tínhamos muitas coisas em comum. Que havia dezenas de situações parecidas com as nossas’’, conta Alfredo, separado há sete anos e pai de um menino de oito. Depois, os encontros começaram a ser realizados a cada semana, na casa de um dos associados. Cerca de 30 pessoas participam das reuniões do grupo, que oferece auxílio jurídico e psicológico a quem o procura. Além disso, está de portas abertas para mães separadas, filhos de pais separados e casais que apóiem a causa.
Em poucos meses, a associação atraiu funcionários públicos, advogados, programadores de computadores, jornalistas. Pais que, de uma forma ou de outra, cobram a presença na vida dos filhos. ‘‘As visitas semanais são muito frustrantes para nós. Não temos muito tempo para transmitir valores morais a nossos filhos. Muitos pais acabam perdendo o contato com os filhos por causa da dificuldade de vê-los’’, explica Alfredo, presidente da associação.
José Antônio, o pai que tem 96 horas por mês para ver os filhos, encontrou na associação refúgio para as esperanças que tem de viver mais tempo junto dos filhos. ‘‘Eu me separei da mãe dos meus filhos, e não dos meus filhos. Tenho direito de continuar sendo pai para eles. Por que não teria?’’ Para ele e para tantos outros pais, a pergunta não cala.
Serviço
Contatos com a Participais podem ser feitos no site www.participais.com.br, pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone
242-9650.
As guardas
Guarda alternada
Cada um dos pais pode ter a guarda do filho por um período específico de tempo, que pode ser um ano, um mês, uma semana ou parte de uma semana. Durante o tempo definido, terá pleno poder paternal sobre o filho. O modelo é rejeitado por alguns psicólogos, que consideram como nocivo à continuidade do lar, que deve ser preservada pelo bem estar da criança.
Guarda dividida
Filho mora em lar fixo, determinado, e recebe a visita periódica do pai ou da mãe que não tem a guarda. É o sistema de visitas, usado na maior parte dos casos. Os críticos desse modelo observam que ele pode levar ao distanciamento gradual entre pais e filhos.
Guarda compartilhada ou conjunta
Pais e mães dividem a responsabilidade legal sobre os filhos ao mesmo tempo e compartilham as obrigações pelas decisões importantes relativas à criança. Os pais são iguais nos cuidados aos filhos. Um dos pais pode ter a guarda física do filho e o outro poderá decidir diretamente sobre educação, religião, cuidados com a saúde, lazer, estudos da criança.
Brasília, domingo, 11 de agosto de 2002