Trecho do livro MEMÓRIAS de um HOMEM de VIDRO
As horas se acumulavam, umas sobre as outras. As dores se aproximavam, quase se fundindo. O suor, o rosto contraído, a palidez. O gosto salgado na sua boca. Olhava para ela como que a pedir perdão. Uma súplica. Como posso te ajudar, se tenho as mãos atadas? Que posso fazer para minorar tua dor? Eu tenho apenas 22 anos. Como sou estudante de medicina, e apenas por isso, me permitem adentrar o espaço do centro obstétrico. É uma manhã fria de junho de 1982. Estamos no meio da Copa do Mundo. Ontem o Brasil aplicou 4 x 0 num time qualquer. Nem lembro bem qual é, mas o Zico fez um gol. A ruptura da bolsa se deu junto com o romper da aurora, e sabia que esse fato era um complicador na forma como os médicos do centro obstétrico entendiam aquele caso específico. A mim só restava esperar, e pedir aos deuses que os médicos responsáveis tivessem a sabedoria para fazer as melhores escolhas.
A participação paterna no processo de parto e nascimento é um evento raro entre os mamíferos, principalmente quando a paternidade não é uma obviedade. Entre os grupamentos em que a participação genética de determinado parceiro é assegurada, esta ligação pai-filho se dará de forma mais intensa, enquanto nos grupamentos mais promíscuos (com paternidade menos confiável) um padrão muito heterogêneo poderá ocorrer, variando do infanticídio, numa extremidade, até mesmo cuidados ativos e afetivos na outra ponta. Esta disparidade idiossincrática de atitudes nos demonstra que o estabelecimento da relação entre o pai e seu filho não seria um produto de nossa herança genética, mas ocorreria em razão de aspectos ecológicos e comportamentais, principalmente relacionados com a distribuição de comida, o que está de acordo com a atitude de todos os carnívoros sociais.
Ela a cada minuto parecia mais fraca. Dezoito horas já haviam se passado desde a ruptura das membranas e a perda do líquido amniótico. Seu humor estava abalado. Não mais suportava a conversa das auxiliares, e mesmo a minha presença era apenas tolerada. Eu caminhava ansiosamente de um lado para outro. Repetiria essa atitude ansiosa durante as centenas de partos que acompanharia nos anos que se seguiram. Mas aquele dia era o meu “batismo de fogo”. A paternidade entrava na minha vida de forma precoce e inesperada, o que me deixava ainda mais assustado e tenso. Fazia promessas. Imaginava que amanhã estaria rindo com meu filho nos braços. Pensava na magia de ser pai. Ia até o corredor do hospital e pedia colo para minha mãe, que silenciosamente aguardava para parir seu primeiro neto. Tentava criar coragem. Olhava para as residentes e aguardava delas uma palavra, um gesto, uma confirmação. Esperava que meu sofrimento fosse abreviado. Eu estava entregue. Dependia daquela mulher, e dependia daqueles médicos. A sensação de dependência, de falta de controle sobre a situação me fazia menino, pequeno, diminuto. Só o que podia fazer era ter paciência e confiar. Das residentes escutava apenas comentários que não me ajudavam. Zeza continuava intensamente absorvida pela intensidade de suas dores, mas para mim, pobre menino, nada parecia acontecer. Até que ao cair da noite, depois de um exame vaginal, eu escuto a guturalidade de um som; a expressão sonora de uma passagem. Algo ocorrera, e fixei meus olhos no residente. Este me olhou rapidamente e disse, enquanto dirigia-se à porta da zona restrita:
– A dilatação se completou, podemos ir para a sala de partos.