A Revista Cult desse mês apresenta o dossiê
“Cartografias da Masculinidade”
O mito viril, os horizontes de desconstrução, as representações problemáticas da masculinidade e as novas maneiras de ser homem são abordadas. Esses temas nos interessam porque afetam as maneiras com os homens estão exercendo sua paternidade. Apresentamos abaixo, uma amostra das discussões que merecem nossa leitura.
Como desconstruir uma masculinidade aprisionada entre o mito e o fracasso?
Pedro Ambra
O que é o homem?
Alguns afirmarão sem pestanejar que homem é aquele nascido com cromossomos XY e que, em decorrência dessa condição biológica, deverá interessar-se por mulheres, futebol, armas e, no limite, nutrir uma aversão declarada pela cor rosa. Outros dirão que é uma simples construção social que nada tem de natural. Há ainda a tese de que se trata de uma autoafirmação: homem é quem se diz homem, a despeito tanto de seu fenótipo quanto das imposições da sociedade. Homem é, também, o principal beneficiário de uma cultura patriarcal que violenta e mata mulheres, além de gozar de liberdades e benefícios que vão desde o direito à cidade, ao corpo próprio, até a uma diferença salarial – presente em todos os cargos, níveis de atuação e escolaridade –, que chega, no Brasil, a 53%. Mas notemos que, ainda que sensivelmente diferentes entre si, as respostas possíveis a essa pergunta quase sempre se conjugam num imperativo determinado. Ou melhor, são escutadas e interpretadas pelos homens a partir de uma lógica de “dever ser”. Desde as mais conservadoras representações que ensinam a meninos que homem é quem bate, oprime e silencia o outro, até aquelas segundo as quais é o dever de todo homem desconstruir-se, reconhecer e abrir mão de sua miríade de privilégios, parece que estamos frente a uma pluralidade de ideais que acabam por se reduzir a uma gramática rígida de injunções. Homem é aquele que tem que ser. Mas ser o quê? Muito se fala atualmente em políticas identitárias.
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Homens e armas
Pedro Ambra
A arma é vendida, no fundo, como promessa de restituição de sentido, um retorno à virilidade perdida
Para compreender as forças em jogo na construção das masculinidades é preciso não só conhecer seus determinantes históricos e conceituais, mas verificar como elas efetivamente se aplicam e qual a extensão de seus efeitos. Tomemos como caso paradigmático o prometido decreto sobre a flexibilização na posse de armas de fogo, assinado no mês passado. A princípio, trata-se do cumprimento de uma promessa de campanha de Bolsonaro que teria como objetivo armar o dito “cidadão de bem” e, assim, diminuir a violência no país, a despeito da esmagadora maioria dos estudos que comprovam que o impacto sobre a segurança pública é negativo, ocasionando muito mais mortes por arma de fogo do que inibindo a criminalidade. Mas supor que o decreto, suas raízes e consequências se explicam apenas por uma promessa de diminuição de violência seria equivocado. Para além da pirotecnia da medida, é importante lembrar que a liberação da posse de armas tem forte e incontornável componente de gênero. Em primeiro lugar, seu público-alvo são homens. Homens violentos, homens amedrontados, homens frágeis, homens curiosos e homens que ostentam terão, agora, no fetiche da bala, uma ilusão de solução de seus problemas, reais e imaginados. Esse é o que pode ser chamado de “apelo semântico” da medida. Está em jogo fornecer uma significação, uma identidade para vivências que – tanto em decorrência das conquistas da luta feminista, quanto do real aumento da violência no Brasil e de seu alardeamento sensacionalista – se sentem fraturadas…
A normalização das homossexualidades e os destinos do masculino
Eduardo Leal Cunha
Mudaram as mulheres, e agora os homens já não sabem quem são ou o que devem fazer
A discussão sobre o masculino e suas vicissitudes não nos parece algo muito frequente, como se sobre o ser homem não pairassem dúvidas ou coubesse qualquer indagação. Nesse raciocínio, o homem e o masculino aparecem como mitos, no sentido barthesiano do termo: narrativas que, naturalizadas, convertem-se em verdades últimas, materializadas a seguir em imagens marcadas pela tautologia, como o sedutor do cinema hollywoodiano, o bom malandro ou o cowboy solitário. Imagens que mostrariam o homem como ele é, sem, contudo, nunca reduzi-lo a objeto. Imagens diante das quais, em geral, não temos muito a fazer senão aceitá-las. Por outro lado, na contracorrente da natureza mitológica do ser homem, nos acostumamos recentemente a dizer que o masculino está em crise, ou pior, falamos agora não mais do masculino, mas em masculinidades, todas elas marcadas por certa indefinição ou instabilidade. Numa leitura usual, tal crise do masculino se articula a mudanças no lugar e nos papéis ocupados pela mulher na sociedade. Mudaram as mulheres, e agora os homens já não sabem quem são ou o que devem fazer. A socióloga Eva Illouz, ao discutir o lugar privilegiado dos afetos no capitalismo contemporâneo, também nos diz que alguns fatos marcantes do século 20, como a difusão da psicanálise e das psicoterapias e a entrada dos psicólogos nas fábricas a partir dos trabalhos de Elton Mayo ainda na primeira metade do século passado, junto com o movimento feminista e, por fim, o desenvolvimento das literaturas de autoajuda contribuíram para uma espécie de feminização das relações sociais e do ambiente de trabalho, com a valorização de atributos normalmente associados ao feminino, como a empatia, a franqueza e a livre expressão e discussão dos sentimentos, os quais vieram substituir valores ditos masculinos, como a disciplina, o recolhimento afetivo e o pragmatismo.
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Revisitando a aquarela das masculinidades
Guilherme Almeida
As transmasculinidades se complexificaram pela entrada de novos sujeitos e pelas questões trazidas por eles
O ano era 2012. Fazia alguns anos que eu próprio me afirmara como um homem trans e, aproximadamente há três anos, tinha começado a ganhar visibilidade no país a possibilidade de uma pessoa ser assignada no nascimento como do sexo feminino e, em algum momento da vida, recusar essa assignação, afirmando-se como homem. Duas pesquisadoras fundamentais dos estudos de gênero, Berenice Bento e Larissa Pelúcio, organizavam um dossiê para a revista Estudos Feministas do IFCH/Unicamp sobre transexualidade, e me convidaram para ser um dos autores. Aceitei, e o artigo ganhou o nome de “Homens trans: novos matizes na aquarela das masculinidades?”. A construção interrogativa do título não era mera provocação. Ele retratava o contexto brumoso da própria escrita, onde cores e matizes não eram nítidos. Três anos antes, os homens trans do país estavam na casa das dezenas e, mesmo em 2012, nós ainda conhecíamos quem era quem em cada estado da federação. Se, por um lado, nos conhecíamos, por outro, desconhecíamos como seria quando a transexualidade masculina se tornasse um fenômeno de massa, o que efetivamente aconteceu, sobretudo a partir da segunda metade da década de 2010. De todas as questões que passaram pela minha cabeça ao escrever o artigo em 2012, a que mais me inquietava, epistemológica e pessoalmente, era como aqueles novos homens performariam masculinidades. As transmasculinidades seriam réplicas passivas de modelos pré-existentes? Fariam esforços extraordinários para se adequarem aos requisitos das masculinidades hegemônicas?
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O negro, o drama e as tramas da masculinidade no Brasil
Deivison Faustino
O racismo representa a negação da humanidade das pessoas negras; por isso, “o negro não é um homem”
“O homem negro não é um homem!”, afirmava-nos provocativamente o psiquiatra e ativista Frantz Fanon (1925-1961). Em seu diagnóstico da sociedade moderna – leia-se, colonial – o homem negro está imerso em uma série de contradições sociais (racializadas) que o impedem de ser plenamente reconhecido como “homem”. Em nossa sociedade, denuncia Fanon, quando se pensa “o homem” ou o “humano”, o negro não está incluído. O homem negro não é, portanto, humano… O homem negro não é um homem. Esse jogo de palavras acima apresentado nos introduz a três grandes problemas nem sempre equacionados conjuntamente:
1. o machismo;
2. o racismo;
3. o lugar dos homens negros diante de ambos.
Tendo em vista o primeiro aspecto, é válido mencionar a já extensivamente debatida sexização da linguagem nas sociedades ocidentais ao destinar à palavra “homem” o status de representante geral do gênero humano. É verdade que em sua origem indo-europeia a palavra homem poderia remeter tanto a “homo” (humano) quanto a “humus” (chão ou terra), marcando a ideia de que os “homens” (seres humanos) seriam seres terrenos, em contraposição aos deuses (celestiais). Mas esse imaginário decidiu em algum momento que o homo (o homem), em seu contraponto progressivo à “natureza original”, seria o macho e este subsumisse a si as demais expressões sexuais – mesmo que a própria Terra, fonte de todo húmus existente, tenha continuado representada como um substantivo feminino. Assim, desde então no Ocidente, não apenas “o homem” é figurado como representante (i)legítimo de toda a humanidade, como também, à própria imagem e semelhança de Deus, inviabilizando as mulheres enquanto representação do humano.
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(Foto: Rony Hernandes/Performer Paulo Henrique Rios)
Leia os textos completos na Revista Cult de fevereiro/2019: “Cartografias da Masculinidade”.