FILHOS X PAIS
O amor em julgamento
O PAI DE DANIELA PAGOU A INDENIZAÇÃO,
MAS O PROCESSO O AFASTOU MAIS DA FILHA
Eles não deram carinho, descuidaram da atenção, ficaram ausentes. Por causa disso foram parar no banco dos réus. Três ações pioneiras na Justiça brasileira anunciam um novo dilema da sociedade moderna. Agora filhos podem processar os pais por não terem recebido amor, afeto e compreensão durante as suas vidas.
HÁ 4 ANOS, ALEXANDRE LUTA PARA REAVER O CARINHO DE SEU PAI
Quando concluiu o Ensino Médio, Alexandre Fortes pediu ajuda aoavô paterno para que o convite da missa de formatura chegasse às mãos de seu pai. Até o dia da cerimônia, o garoto teve esperanças de encontrar o homem que não via há 11 anos. A missa começou, durou mais de hora e terminou, mas o pai não apareceu. À noite, em vez de sair com a turma para festejar, Alexandre ficou trancado em seu quarto. Não entendia -e ainda não entende- os motivos da rejeição.
Aquela não era a primeira vez que o filho procurava o pai. Telefonemas não atendidos e cartas não respondidas foram as tentativas de reaproximação em um relacionamento que acabou sem que Alexandre soubesse a razão. Seus pais, a advogada Valéria Fortes e o engenheiro Vicente de Paulo Ferro de Oliveira, foram casados durante sete anos. Alexandre foi um bebê desejado por mim e pelo meu ex-marido, afirma. Mas, quando o menino completou 3 anos, o casal se separou. Valéria conta que Vicente se envolveu com outra mulher e decidiu sair de casa. Ele deixou Belo Horizonte, onde Valéria ainda mora com Alexandre, e foi para Nova Lima, a 20 km da capital mineira. Por mais três anos, Vicente acompanhou a vida do filho: a cada 15 dias, aos domingos, almoçava com ele e só o devolvia para a mãe no final do dia. Alexandre ia fazer 7 anos quando Vicente ganhou uma filha de seu novo relacionamento e algo entre eles se quebrou. Desde a chegada da meia-irmã, Alexandre, hoje com 24 anos, luta para reaver o carinho do pai.
Situação desse tipo, em que pais que se separam, a mãe fica com a guarda da criança e o pai comparece só com a pensão alimentar, acontecem aos punhados pelo Brasil. Mas a história de Alexandre é diferente: ele foi aos tribunais em busca de reparação afetiva. É um dos três casos de ações na Justiça que levam o nome de abandono moral. Advogados defendem a causa desses meninos sob a alegação de que eles estão sofrendo danos morais -e aí se encaixam todas as questões que provoquem aflição, agonia, sofrimento psicológico, tristeza e um rol de atitudes que tiram ou perturbam a paz de uma pessoa. A indenização gira em torno de 200 salários mínimos -R$ 56 mil-, que devem ser pagos pelos pais condenados por negligência ao afeto, à atenção e ao amor. O problema é que os processos não dão garantia nenhuma de reaproximação entre pais e filhos.
Alexandre entrou com a ação em 2000, depois de o pai ter pedido na Justiça a redução do valor da pensão. Nesse dia, ele nem me reconheceu. Passou reto por mim no saguão do fórum e, ao encontrar a minha mãe, perguntou se eu não ia aparecer. O pior é que eu estava ali, do lado dele, conta. Esse episódio só aumentou a sensação de abandono e rejeição. Entrei com o processo para chamar a atenção, queria que o meu pai não me percebesse só como um boleto que deve ser quitado mensalmente. Esperava que me dissesse o que fiz para ele deixar de gostar de mim.
Valéria diz apoiar a decisão do filho por perceber que ele sofre com a ausência do pai. Toda essa história gera muitas dúvidas e insegurança em Alexandre. Ele é um ótimo rapaz e tem manias idênticas às do pai, como ter sempre uma caneta no bolso da camisa. Não dá para entender o que aconteceu entre eles. Ela garante que nunca pensaram no dinheiro que a ação pode render. O próprio Alexandre diz que a família é estruturada. Nunca me faltou nada e não quero dinheiro, só atenção. Ele, inclusive, se formou no ano passado em uma faculdade particular paga por Vicente.
Para tentar entender os motivos que o separaram do pai, Alexandre fez dez anos de terapia. Há quatro, tem se virado sozinho para lidar com as emoções que sente. A terapia me ajudou, mas não fazia mais efeito. Chegou uma hora que eu precisava lidar sozinho com essa dor. A terapia não pode dar as respostas que me faltam. E o embate jurídico entre pai e filho ainda está longe de terminar. Em 2004, Alexandre ganhou a causa e poderia ter recebido R$ 52 mil de indenização. Mas Vicente entrou com recurso e o processo foi parar no Superior Tribunal de Justiça. Agora a família aguarda uma nova decisão. Procurado pela reportagem, Vicente não quis falar. Seu advogado, João Bosco Cumaira, disse que, enquanto o processo estiver em julgamento, seu cliente não vai se pronunciar. Depois de quatro anos dessa discussão, Alexandre tem dúvidas sobre a sua decisão de processar o pai. Do jeito que a coisa anda, acho que a ação me afastou ainda mais do meu pai. Não sinto raiva, só não sei se um dia vou poder contar com ele.
A questão é, no mínimo, polêmica. Para a Justiça, o pai displicente com o filho deve pagar, nem que seja em dinheiro, pelos atos cometidos. O Judiciário não pode obrigar ninguém a ser pai, mas quem escolhe o caminho da paternidade tem obrigação de proteger, estar presente, dar carinho e afeto, além de pagar pelos custos da criança. Se não exercer essas funções, corre o risco de pagar indenização, afirma o jurista Luiz Flávio Gomes.
Mas profissionais que lidam com as emoções não tratam o assunto da mesma maneira. Para a psicanalista Jussara Brauer, não existe dinheiro ou bem material que possa ocupar o lugar de um pai. É impossível pensar a afetividade como valor jurídico. O amor, o vínculo entre pais e filhos não se quantificam em indenização, seja qual for o valor dela. Por esse motivo, Jussara acredita que ações desse tipo dificilmente terão um final feliz. É uma tentativa desesperada e seu único efeito é dizer aos pais que rejeitar filhos não é uma atitude decente. Mas não recupera laços afetivos, nem familiares. Só aumenta a distância entre eles.
OPORTUNISMO
Até agora, dos três casos que correm na Justiça, apenas um está concluído. É o da menina Daniela Josefina Afonso, de 10 anos. Seu pai, Daniel Viriato Afonso, de 39 anos, advogado e secretário de finanças da Prefeitura de Araranguá (SC), foi condenado a pagar R$ 48 mil por danos morais à filha. Ele não recorreu, pagou o que foi pedido, mas não concorda com a decisão. Logo que a menina nasceu, mãe e filha mudaram de cidade. Não posso passar a minha vida seguindo os passos das duas.
Daniel diz que nunca duvidou de sua paternidade, nem criou caso com o pedido de pensão. Paguei tudo sempre, quis ficar com Daniela, criá-la, mas a mãe não deixou. Está certa. Mas me processar em dinheiro é um pouco de exagero. Acho que a atitude da mãe foi oportunista, afirma ele. O pior de tudo é que, depois da ação, Daniel perdeu completamente o contato e o interesse pela filha. Não é dessa maneira que as pessoas conseguem estreitar laços.
Segundo conta a mãe de Daniela, Rosimeri A. Josefino, de 29 anos, a história de sua vida com Daniel não foi bem do jeito que ele conta. A gravidez não estava planejada e aconteceu aos dois anos de namoro, quando Daniel se formou na faculdade de Direito. Assim que dei a notícia do bebê, nos separamos. Durante os nove meses de gestação, eles mantiveram um contato apenas cordial. Na hora do parto, foi a mãe de Rosimeri que a levou para o hospital. Ele nem foi ver a filha, garante.
Daniela foi registrada com três meses de atraso porque Daniel não comparecia ao cartório. Quando a menina estava com 9 meses, a mãe de Rosimeri mudou-se para Xangri-lá, no litoral do Rio Grande do Sul, carregando a filha e a neta. Rosimeri diz que Daniel recebeu o novo endereço da filha. Mas nunca apareceu para dar um alô ou mesmo comemorar os aniversários da menina.
Quando Daniela fez 2 anos, Rosimeri procurou um advogado para pedir a pensão alimentícia. Muitas vezes a quantia só foi paga quando eu acionava a Justiça, diz. Em 2002, ela foi convocada a comparecer ao fórum para uma reunião que pretendia rever o valor da pensão. O encontro foi solicitado por Daniel -ele queria reduzir o benefício em 50%. Rosimeri aceitou a nova quantia -dois salários mínimos por mês, desde que o pai se comprometesse a visitar a filha quinzenalmente e a acompanhasse nas férias de verão.
O acordo foi feito e cumprido durante o primeiro ano. Depois Daniel começou a se ausentar e a comprometer a rotina da filha. Daniela até teve de mudar de escola por causa do pai. Ela vivia dizendo que ele ia aparecer para buscá-la, que ela o apresentaria a todos. Como ele nunca passou por lá, os colegas começaram a caçoar de minha filha, conta a mãe. Diante da quebra do acordo, Rosimeri procurou o advogado Domingos Sinhorelli Neto. Em maio de 2003, ele entrou com a ação, que teve sentença positiva em novembro do mesmo ano. Não sei se uma ação desse tipo serve para unir pai e filha. Mas é importante que as pessoas saibam que não se pode fazer filhos e deixá-los pelo mundo. Acredito que a indenização vai ajudar a amenizar o sofrimento de Daniela por ter tido um pai ausente, diz o advogado.
MAURICE GOSTARIA DE SER PUNIDO PELO JUIZ COM VISITAS A FILHA MELKA
O BAILE
Em São Paulo, a publicitária e estudante de psicologia Melka Madjar, de 27 anos, pensou muito antes de processar o pai, o dentista Maurice Madjar, de 57 anos. Melka sabe desde pequena que a história de amor que embalou os pais na juventude não terminou bem. Sua mãe, a psicóloga Regina Metidire, de 52 anos, que era católica, se converteu ao judaísmo aos 20 anos para poder se casar com Maurice. Mesmo depois da conversão, a família dele nunca me aceitou, diz Regina. A separação aconteceu quando Melka tinha 3 meses.
Mais tarde, Maurice se casou de novo e teve outros três filhos. Regina também se casou e teve um menino. Durante os cinco primeiros anos de vida de Melka, Regina não se preocupou em cobrar pensão alimentícia de Maurice, achava que dava conta das duas sem ele. Depois, começou a receber pensão mensal, que só foi interrompida quando Melka se formou em publicidade, aos 23 anos -a lei prevê o encerramento da pensão quando o filho chega à maioridade ou até o fim do Ensino Superior. Ele dava o dinheiro à minha mãe, mas nunca houve um telefonema no dia do meu aniversário ou um almoço no domingo, desabafa.
Nessa época, Melka (nome que, em hebraico, significa rainha) ficou sabendo que poderia processar o pai. Pensei duas vezes antes de me decidir porque a relação entre nós já estava ruim, diz. Ela conta que fez várias tentativas de reaproximação, mas sempre foi ignorada. Eu era menina, devia ter 6, 7 anos, ia ao consultório e ficava esperando horas para que ele me atendesse. Meu pai não tinha a delicadeza de parar por um segundo nem para me dar um beijo. Relembrando esses momentos, Melka decidiu resolver a questão com o pai na Justiça. Queria que ele me procurasse, mas fui ignorada de novo. Só em julho do ano passado, Melka recebeu a notícia de que tinha ganho o processo e receberia R$ 50 mil de indenização, mas Maurice recorreu. Quando soube que o meu pai tinha feito isso, pensei em barganhar com o juiz. Trocaria esse dinheiro pela valsa de minha formatura com o meu pai. Sonho em saber o que é ter um pai, diz Melka, que se forma no final do ano em psicologia.
Por outro lado, Maurice diz que sua filha nunca escutou a sua versão da história. Um dia, cheguei do consultório e encontrei uma mala na porta de casa. Insisti para ficar, mas fui expulso. Ele também faz questão de frisar que só não teve um relacionamento mais próximo com Melka porque foi impedido. Durante a infância de minha filha, a mãe dela pediu para eu me afastar. Regina achava que eu poderia atrapalhar os seus novos relacionamentos. O fato é que pai e filha acabaram virando dois estranhos.
Maurice afirma que recorreu da decisão do juiz de pagar a indenização porque não a considerou adequada. Se ele me punisse com visitas diárias, beijaria os pés dele. Mas me punir com dinheiro? Nenhuma punição desse tipo aproxima um pai de uma filha. A boa notícia dessa história é que Maurice quer dançar a valsa de formatura com Melka. [Pai e filha ainda não se encontraram. Ele ficou sabendo do desejo de Melka pela reportagem de Marie Claire].
FOTO: MARCELO TINOCO;NEIDA SERRANO/ PRODUÇÃO: VALÉRIA MASSI ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: RENATA FARIA/CABELO E MAQUIAGEM: BRUNO MIRANDA