Como funciona um Banco de Leite Humano nos Estados Unidos?
Por Ana Laura Grazziotin*
O leite materno é o alimento ideal para a nutrição dos bebês humanos. Várias evidências científicas mostram a importância do leite humano para o amadurecimento do sistema digestivo, fortalecimento do sistema imune e prevenção de doenças. Recentemente, um estudo acompanhando participantes ao longo de seus primeiros 30 anos desde o nascimento, mostrou a associação positiva entre o aleitamento materno e o desempenho do indivíduo ao longo da vida.1 Devido a esses benefícios para a saúde, o leite materno é recomendado pela Organização Mundial da Saúde como dieta dos lactentes até os 2 anos ou mais, sendo exclusiva durante os 6 primeiros meses de vida.2
Entretanto, algumas mães apresentam dificuldades para amamentar seus filhos. Isso pode acontecer por razões fisiológicas da lactação (serem mães de prematuros), por motivos de doença ou retorno ao mercado de trabalho, entre outros. Em alguns casos, os bebês que nasceram prematuramente ainda não estão maduros para o movimento da sucção na mama. Quando mães e bebês hospitalizados apresentam estas dificuldades, a mãe e o bebê podem contar com o leite humano de bancos de leite para garantir o melhor alimento para o desenvolvimento da criança.
Centenas de bancos de leite estão em atividade no país. Foi em 1984 que o Brasil iniciou o processo de documentação das atividades com leite materno praticadas em bancos isoladamente. Esta iniciativa resultou na elaboração das recomendações técnicas e da primeira legislação (Portaria nº 322, de 26 de maio de 1988) regulamentando as práticas dos bancos de leite humano no Brasil.3 Desde então, todos os bancos de leite brasileiros seguem as mesmas normas técnicas padrão. Em 1998, a Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano foi estabelecida e atualmente é representada por 221 bancos de leite e 188 postos de coletas em todo o território brasileiro.4
Nos Estados Unidos, as atividades com leite humano podem ser realizadas de duas maneiras, por meio da comercialização com fins lucrativos e sem fins lucrativos.
Vendendo Leite Humano
Entre as empresas que realizam o comércio do leite humano com fins lucrativos está a Prolacta Biosciences (http://www.prolacta.com/home). A empresa recebe doações de leite humano a partir de doadoras que passaram por triagem. O leite cru é testado para a presença de drogas, nicotina, adulteração e diluição. Posteriormente, o leite é concentrado, pasteurizado e avaliado quanto a presença de microrganismos. O leite pasteurizado é então fortificado, envazado e rotulado, resultando em produtos comercializáveis como o Prolact+ H2MF®. O produto é vendido exclusivamente para UTI neonatais. Segundo o site da empresa, a Prolacta justifica seu funcionamento com fins lucrativos devido ao trabalho de pesquisa previamente realizado para a obtenção dos produtos. As empresas são fiscalizadas pelo FDA (US Food and Drug Administration) que pertence ao Departamento de Saúde dos Estados Unidos, sendo responsável pela regulamentação e fiscalização da manufatura, comercialização, marketing e distribuição de produtos biológicos (incluindo o leite humano), medicamentos, cosméticos, entre outros. Vale lembrar que a comercialização de leite humano é proibida em território brasileiro e os bancos de leite recebem o leite por meio de doações voluntárias. Da mesma forma, o leite de banco no Brasil é distribuído às famílias dos bebês hospitalizados sem qualquer custo (gratuitamente) a estas famílias.
Leite Humano gratuito
Por outro lado, similar ao sistema realizado no Brasil, vários bancos de leite humano sem fins lucrativos estão em operação nos Estados Unidos. Embora não seja obrigatório, estes bancos de leite podem buscar a certificação da Associação de Bancos de Leite Humano da América do Norte – conhecida como HMBANA (https://www.hmbana.org/).
A HMBANA, assim como a Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano – rBLH (http://rblh.fiocruz.br/pt-br/pagina-inicial-rede-blh), tem por missão promover a saúde materna e infantil por meio do apoio à amamentação e da oferta de leite pasteurizado. Para ser certificado, o banco de leite humano nos Estados Unidos precisa seguir os manuais de boas práticas elaborados pela HMBANA. Diferentemente do Brasil, que possui uma legislação própria para o correto manuseio do leite humano, os manuais propostos pela HMBANA são apenas uma recomendação de protocolo aos bancos de leite humano norte-americanos e não possuem valor de lei. A HMBANA foi estabelecida em 1985 e conta com 23 bancos de leite humano presentes em 21 estados americanos e com outros 3 bancos credenciados em território canadense.
Banco de leite universitário
Para conhecer de perto como funciona um banco de leite humano sem fins lucrativos nos Estados Unidos, eu visitei o banco de leite humano de Iowa (foto acima). O banco de leite do estado de Iowa está localizado nas dependências da Universidade de Iowa. Eu fui carinhosamente recebida pela diretora e fundadora do banco de leite, Jean Drulis, cuja simpatia fez com que eu me sentisse em casa e imagino que todas as mães/doadoras são recebidas no banco de leite da mesma forma acolhedora.
Logo na sala de recepção, fotos em tamanho real de mães amamentando seus bebês recebem os visitantes do banco de leite (foto acima) e nos lembram dos benefícios de amamentar e da importância da doação do leite excedente aos bebês que necessitam.
A história da criação do banco de leite humano de Iowa é interessante e exigiu grande dedicação por parte da Jean para ser estabelecido. Embora o banco de leite esteja dentro da universidade, os recursos financeiros para o seu funcionamento são obtidos externamente. Inicialmente, como havia pesquisa no banco de leite, a Jean pode contar com recursos de agências de fomento federais, como o NIH (National Institutes of Health) e o NSF (National Science Foundation). Posteriormente, porém, o banco de leite passou a dedicar-se exclusivamente à rotina e desse modo, não poderia mais concorrer ao apoio financeiro das agências de fomento à pesquisa. Por isso, a Jean buscou apoio a partir de várias outras fontes, como doações do setor privado e da comunidade. Atualmente, além das doações, o banco de leite se sustenta com os recursos gerados a partir da venda do leite para hospitais [esse custo é muitas vezes repassado do hospital às famílias]. O recurso obtido da venda é usado para a manutenção das atividades e assim, o banco de leite é considerado sem fins lucrativos. No Brasil, a venda de leite humano não é permitida.
O banco de leite de Iowa é credenciado a HMBANA e segue rigorosamente os protocolos estabelecidos pela associação. Além das doações de leite recebidas diretamente no próprio banco de leite, doações recebidas e armazenadas em postos de coletas de leite são transportadas ao banco de leite. Um total de 32 postos de coleta presentes no estado de Iowa e em outros quatro estados vizinhos (South Dakota, Minnesota, Wisconsin e Nebraska) abastecem o banco de leite.
As semelhanças e diferenças em relação ao sistema brasileiro começam a ser apresentadas durante nossa conversa. Para ser doadora, uma pré-triagem é realizada por meio de questionário oral, questionário escrito, por meio de contato com o profissional de saúde da doadora (health care providers) e por meio de exame de sangue da doadora para testar a presença de HIV, Treponema pallidum (sífilis) e vírus da hepatite entre outros. A doadora não pode ser fumante, não pode ter consumido álcool por um período de 12 horas antes da expressão do leite e não pode ter consumido alguns suplementos de ervas/chás, como o mother’s milk tea (um chá que é comercialmente vendido aqui segundo a propaganda de que aumentaria a produção de leite). Além disso, para ser doadora, a mãe precisa se comprometer a doar um mínimo de 200 oz (ou 5.9 L) ao longo do período de lactação. Além da doação prospectiva, leite previamente armazenado congelado em casa por um período de 8 a 10 meses também pode ser doado caso a doadora seja aprovada na triagem.
O leite cru pode ser expressado em dois tipos diferentes de embalagem estéreis de 100 ml, o copo ou a sacola, ambos fornecidos às doadoras e aos postos de coleta (foto acima). Uma vez recebidas, as amostras são armazenadas em um freezer de leite cru na sala de armazenamento. Diferentemente do nosso sistema, não há etapas de inspeção de cor, odor ou acidez dornic. Segundo a Jean, a HMBANA está estudando a possibilidade de implementar mais etapas no processo de manipulação do leite.
Para o processamento, as amostras são descongeladas e reenvasadas em outro recipiente estéril de plástico VPA-free que seguirá para a pasteurização. Pode ser feito um pool de leite de várias doadoras (de 3 a 10 doadoras) nesse segundo recipiente. Este recipiente é importado da Inglaterra e custa 15 centavos cada um. Os frascos com 100 ml de leite são pasteurizados (pasteurização Holder) na sala de pasteurização e após o período estabelecido, são resfriados envolvidos em gelo dentro de uma bandeja plástica (foto). Uma amostra do leite pasteurizado é coletada para análise microbiológica (contagem em placa). Os frascos pasteurizados são selados com alumínio antes de serem fechados com a tampa plástica. Enquanto aguardam os resultados (48 horas), os frascos pasteurizados são congelados em um freezer rotulado como “aguardando resultado”. Os frascos reprovados são dispensados, enquanto os frascos aprovados são rotulados como “leite humano de doadora pasteurizado 100 ml” (foto) para serem distribuídos aos hospitais.
Em média, 1000 oz (29,57 L) de leite são pasteurizados por semana (5 dias) no banco de leite de Iowa. No último ano (2016), o banco distribuiu 187.623 oz (5.548,67 L) de leite para bebês hospitalizados ou não, presentes em 13 estados, 87 cidades e 40 hospitais.5
No dia 1o de agosto o banco de leite comemorou a semana mundial do aleitamento materno, juntamente com o seu aniversário de 15 anos de serviço à comunidade. O banco leite de Iowa foi inaugurado em agosto de 2002 durante a Semana Mundial de Aleitamento Materno. Na época, o banco distribuiu 14 frascos de leite no primeiro mês e 15 no segundo mês. Quinze anos depois, o banco tem distribuído entre 700 a 1.400 frascos por mês. Como disse a Jean “este é um trabalho tão importante para a vida desses bebês que simplesmente não tem como não se dedicar a esse serviço! ”.
Vale lembrar que bancos de leite humano em diferentes países devem estar ajustados às necessidades e realidades de cada país e por este motivo sempre haverá diferenças de protocolos entre diferentes países. Nesse sentido, é importante reforçar aos profissionais da saúde, às famílias e às doadoras brasileiras que em território brasileiro deverá ser seguida a legislação brasileira que rege os protocolos de manuseio, preparo, estocagem e distribuição do leite humano a fim de proteger a segurança alimentar dos bebês.
Referências citadas na matéria:
1. Victora CG e colaboradores, 2015. Association between breastfeeding and intelligence, educational attainment, and income at 30 years of age: a prospective birth cohort study from Brazil. Lancet Glob. Health 2015; 3: e199–205.
2. Acessado em 1 de agosto de 2017: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs342/en/
3. Maia PRS e colaboradores, 2006. Rede Nacional de Bancos de Leite Humano: gênese e evolução. Rev. Bras. Saude Mater. Infant 2006; 6: 285-292.
4. Acessado em 30 de julho de 2017: http://producao.redeblh.icict.fiocruz.br/portal_blh/blh_brasil.php
5. Acessado em 1 de agosto de 2017: https://medcom.uiowa.edu/theloop/news/mothers-milk-bank-celebrates-15-years
Fotos:
Ana Laura Grazziotin e Jean Drulis em frente ao banco de leite humano de Iowa.
Sala de recepção do banco de leite humano.
Copo estéril para armazenamento do leite cru congelado.
Frascos de leite em resfriamento após a pasteurização e frasco de leite pasteurizado, aprovado no teste microbiológico, congelado até distribuição.
*Ana Laura Grazziotin
Doutora em Biociências e Biotecnologia
Pesquisadora de pós-doutorado no Department of Biomedical Engineering – University of Iowa. Uma das autoras do Amamentação – bases científicas, 4a. edição.