Summary
O leite materno é uma fonte ideal de nutrição para os bebês – o padrão ouro, com muitos benefícios para o cérebro em desenvolvimento, o sistema imunológico e o trato digestivo...
No caso das substâncias tóxicas (se elas atingem o leite materno ou de fórmula), a questão claramente não é apenas como podemos fornecer nutrição segura para as nossas crianças. É também como podemos fornecer a elas e às gerações futuras um ambiente saudável para viver e reduzir a poluição ao longo de toda a cadeia alimentar. Uma resposta, certamente, é começar a usar menos substâncias prejudiciais em primeiro lugar.
Anna Turns* para a BBC Future
Durante todo o primeiro ano de vida dos meus 2 filhos, amamentei sem usar fórmula.
Já foi demonstrado que o leite materno é uma fonte ideal de nutrição para os bebês – o padrão ouro, com muitos benefícios para o cérebro em desenvolvimento, o sistema imunológico e o trato digestivo. Fiquei feliz por ter podido oferecer a eles esse apoio.
Mas, quando fiz um exame de sangue em busca de substâncias tóxicas persistentes durante as pesquisas para meu livro sobre poluição, descobri que existem pesticidas proibidos há mais de 40 anos que ainda estão presentes no meu corpo. E há evidências de que baixos níveis de contaminantes químicos podem ser transmitidos pela mãe para o leite materno.
Quanto ao leite de fórmula, ele também está mais sujeito à contaminação por substâncias tóxicas e bactérias potencialmente prejudiciais, o que tem causado grandes transtornos para as indústrias e recalls nos últimos anos.
Tudo isso me fez imaginar o que há de verdade nos primeiros alimentos consumidos pelas crianças — desde os ingredientes mais benéficos até as substâncias ocultas, indesejáveis ou até tóxicas. E, considerando o que sabemos sobre alguns dos riscos, o que pode ser feito para melhorar todas as opções disponíveis para os bebês?
O leite que muda todo dia
O leite materno é considerado a melhor opção para o primeiro alimento de um bebê: consiste, muito resumidamente, de água, gordura, proteínas, vitaminas, sais minerais, enzimas digestivas e hormônios. Ele é rico em anticorpos maternos e possui propriedades anti-infecciosas.
O leite materno também é um alimento dinâmico e adaptável — ele é mais gorduroso à tarde e à noite que de manhã, por exemplo, e varia durante uma mesma mamada.
Quando o bebê pega o peito, o “primeiro” leite é “ralo” e rico em lactose, o que faz com que mate a sede e seja fácil de beber. O chamado leite “posterior” que se segue é mais cremoso e gorduroso, saciando mais a fome. Esse aspecto dinâmico é um dos motivos por que é difícil reproduzir o leite materno, apesar dos avanços do leite de fórmula (à base de leite de vaca).
“O leite humano varia ao longo da lactação, ao longo do dia, entre o início e o final da mamada e, até certo ponto, devido a fatores maternos, com a alimentação da mãe”, ensina Mary Fewtrell, professora de nutrição pediátrica do University College London, que publicou um estudo científico sobre a lactação.
“Com tudo isso, fica difícil decidir qual a quantidade exata de nutrientes que devem ser incluídos em uma fórmula cuja composição não muda com a idade do bebê”, afirma ela.
Fewtrell destaca os ingredientes não nutrientes do leite materno, como hormônios, células (incluindo células-tronco) e microRNAs (pequenas fitas de material genético), que fornecem propriedades únicas.
“Nós ainda não compreendemos totalmente a função de todos esses componentes, mas… muito provavelmente, eles permitem que a mãe transmita informações para o bebê sobre suas próprias experiências e o ambiente”, explica ela. “E é por isso que a amamentação às vezes é descrita como ‘nutrição personalizada’.”
Mas, embora mais de 80% dos bebês americanos sejam amamentados no início da vida, segundo o CDC, esse percentual cai para 58% após seis meses. As autoridades de saúde vêm tentando aumentar esse percentual, oferecendo, por exemplo, mais apoio às mães para que amamentam.
Mas, enquanto isso, os pais que usam leite de fórmula talvez também queiram entender mais sobre o produto, incluindo o que pode ser feito para melhorá-lo.
“O leite materno é a norma biológica para os lactentes humanos e fornece benefícios para a mãe e para o bebê” …
“Para os recém-nascidos, a única alternativa segura se não for amamentado (ou se não for totalmente amamentado) é uma fórmula infantil projetada para atender às necessidades nutricionais dos bebês e sustentar seu crescimento e desenvolvimento normal.”
Para isso, é preciso ter flexibilidade. Fewtrell afirma que não existe uma abordagem genérica para a nutrição infantil.
Infelizmente, o leite de fórmula pode também conter ingredientes ocultos indesejados. Da mesma forma que descobri poluentes no meu corpo, substâncias tóxicas também chegam à fórmula infantil, inclusive em maior quantidade.
Metais pesados nas fórmulas infantis
Em 2017, a organização norte-americana sem fins lucrativos Clean Label Project, que testa produtos para determinar substâncias tóxicas como pesticidas e metais pesados, concluiu que quase 80% das 86 amostras de fórmula infantil testadas tiveram resultado positivo para arsênico.
Ela também descobriu que as fórmulas à base de soja apresentaram sete vezes mais cádmio – um metal carcinogênico encontrado em baterias – que outras fórmulas.
Dois anos mais tarde, pesquisadores do Clean Label e do Departamento de Neurologia da Universidade de Miami, nos EUA, publicaram um estudo sobre o teor de metais pesados de 91 fórmulas infantis. Eles concluíram que 22% das amostras de leite de fórmula testadas ultrapassaram o limite de exposição de chumbo definido pela legislação estadual da Califórnia, enquanto 23% excederam o limite estadual para cádmio.
O estudo concluiu que “a contaminação com baixos níveis de metais pesados é generalizada” em alimentos e fórmulas infantis e que “mais pesquisas são necessárias para entender os efeitos de longo prazo à saúde dessa exposição diária crônica a baixos níveis de metais pesados em bebês”.
Outro estudo sobre alimentos para bebês conduzido na Suécia concluiu que a exposição a cádmio na fórmula infantil administrada às crianças é até 12 vezes mais alta que nas crianças que são amamentadas, embora os níveis ainda estejam dentro dos limites semanais toleráveis definidos pela OMS e pela FAO.
A bióloga ambiental Jackie Bowen, diretora-executiva do Clean Label, foi coautora do estudo. Ela defende maior transparência sobre os contaminantes ocultos que acabam nos nossos alimentos, incluindo a fórmula infantil.
Segundo Bowen, as regulamentações sobre segurança alimentar podem omitir esses contaminantes por concentrar-se principalmente em patógenos microbianos como E. coli, que causam envenenamento alimentar agudo de curto prazo.
Mas as agências reguladoras da segurança alimentar afirmam reiteradamente que estão tentando ativamente lidar com a questão dos metais pesados nos alimentos para bebês.
A FDA, por exemplo, insiste que monitora regularmente os alimentos para bebês em busca de elementos tóxicos e toma medidas se eles representarem preocupação com a saúde. A Agência afirma que trabalha com as empresas alimentícias e outros agentes, tentando reduzir ao máximo possível os níveis de metais pesados e outras substâncias tóxicas nos alimentos para bebês.
Mas um relatório recente da Comissão de Supervisão e Reforma da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos criticou a FDA e as empresas alimentícias por não fazerem o suficiente.
“Os consumidores estão cada vez mais preocupados com a forma como os alimentos que consumimos estão relacionados a doenças crônicas de longo prazo, como o câncer ou a infertilidade, que podem levar décadas para manifestar-se”, explica Bowen.
Ela acrescenta que, nos EUA, a regulamentação da segurança alimentar é “omissa” quando o assunto é a contaminação por metais pesados.
“Existe uma distância crescente entre o julgamento da lei e o julgamento da opinião pública sobre o que significa um alimento seguro.”
Metais pesados, como cádmio e chumbo, ocorrem naturalmente na crosta da Terra, de forma que é impossível eliminá-los por completo. Mas Bowen argumenta que as atividades humanas, como a mineração, a extração de petróleo por fratura hidráulica, a agricultura industrial e o uso de água residual para irrigação exacerbam a presença de metais pesados no ar, na água e no solo, na forma de poluição.
Ao contrário dos patógenos microbianos que podem ser destruídos com aquecimento do leite e outros métodos, não existe uma forma de livrar-se desses contaminantes quando eles chegam a um produto, segundo ela. Na verdade, o problema precisa ser enfrentado no início do processo, começando com solo limpo e não contaminado. Afinal, a fórmula começa na agropecuária, já que os principais ingredientes vêm de produtos agrícolas ou de animais produtores de leite.
“Se você quiser um produto acabado de alta qualidade, é preciso ter ingredientes de alta qualidade”, explica Bowen. “Eles vêm de solo saudável e nutritivo, que vem de boas políticas ambientais que não permitam que haja aquele nível de poluição que contribuiu para o problema.”
Bowen explica que certos ingredientes da fórmula sofrem maior risco de contaminação por metais pesados. A soja, por exemplo, é um substituto vegetal comum do leite de vaca, mas tende a bio acumular metais pesados, da mesma forma que o cânhamo. Já a proteína de ervilha não apresenta essa mesma tendência.
A questão da água
Os contaminantes ocultos da fórmula infantil são apenas uma parte do problema.
O leite em pó é misturado com água da torneira para ser ofertado aos bebês, o que traz riscos à saúde em regiões onde a água é contaminada por canos velhos se descamando. Isso aconteceu, por exemplo, na cidade de Flint, no Estado americano de Michigan, em 2021.
A exposição ao chumbo também pode prejudicar as mães que amamentam. Embora as tubulações de chumbo estejam sendo gradualmente substituídas, os exames da água concentram-se tipicamente nos micróbios, e não nos altos níveis de metais pesados, segundo Bowen.
“Uma coisa é resolver o problema da fórmula infantil, mas, sem resolver a contaminação por metais pesados da água potável que você mistura com o leite em pó para dar ao bebê, você só está resolvendo a metade do problema”, afirma ela. “O que estamos fazendo para evitar essas questões, inicialmente?”
O plano de ação Closer to Zero da FDA pretende reduzir a exposição dos alimentos consumidos pelos bebês e crianças pequenas a arsênico, chumbo, cádmio e mercúrio. Ele poderá ser uma etapa rumo a alimentos mais limpos.
Ingredientes comuns da fórmula infantil, como palma e soja, já levantaram preocupações ambientais mais amplas, pois a sua produção muitas vezes envolve a destruição de habitat florestal nativo.
Para algumas pessoas, a solução é utilizar ingredientes orgânicos, adquiridos ao máximo possível de fontes locais. Na Austrália, por exemplo, o fabricante de leite de fórmula Bubs compra leite de criadores locais de cabras e vacas. Eles afirmam que essa prática os ajuda a garantir a rastreabilidade dos ingredientes utilizados.
Alimentação do microbioma do Leite Humano
Nos últimos anos, vem aumentando a consciência sobre o importante papel do microbioma humano, o ecossistema de micro-organismos existente dentro do nosso corpo e sobre a pele, incluindo nosso sistema digestivo.
Emily Bloxam, nutricionista pediátrica da City Dietitians, em Londres, especializada em Neonatologia e alergias, explica que, embora a composição nutricional da fórmula seja agora mais “próxima” do leite humano do que nunca, o leite de peito é “um estimulador fundamental” para o desenvolvimento do microbioma intestinal do bebê.
Os componentes do leite materno que possibilitam esse desenvolvimento, como os anticorpos maternos e as bactérias intestinais saudáveis, ainda não podem ser fabricados artificialmente.
“As bifidobactérias (bactérias benéficas) são um probiótico importante encontrado no leite materno. Elas colonizam o intestino dos bebês durante os primeiros mil dias de vida e favorecem a função imunológica, reduzindo o risco de asma, eczema e sintomas gastrointestinais”, explica Bloxam.
“O leite materno também contém prebióticos chamados oligossacarídeos do leite humano (HMOs, na sigla em inglês), que alimentam as bifidobactérias, permitindo seu crescimento.”
Mais de 150 tipos de HMOs já foram encontrados no leite materno humano. Na verdade, descobriu-se que o microbioma intestinal dos bebês amamentados no peito é claramente diferente dos bebês alimentados com leite de fórmula.
Algumas fórmulas infantis ditas hipoalergênicas agora incluem aditivos prebióticos e probióticos, projetados para aproximar o microbioma intestinal dos bebês alérgicos a leite ao dos bebês amamentados.
Suplementos probióticos de bifidobactérias recém-desenvolvidos podem ser misturados com leite materno ou de fórmula para bebês que nasceram de cesariana e, portanto, não foram expostos a algumas das bactérias intestinais das suas mães, como ocorre durante o parto normal. Alguns HMOs também foram elaborados quimicamente para adição à fórmula infantil.
Mas, mesmo com todos os ingredientes adicionais, o leite de fórmula ainda não tem uma característica importante do leite materno: a capacidade de mudança e adaptação constante.
Bloxam explica que o leite materno fica em um complexo estado de fluxo constante.
“A quantidade e a composição dessas substâncias benéficas variam entre as mulheres de acordo com uma série de fatores, como a genética, a região geográfica, estágios de lactação e a alimentação. Mesmo em um único indivíduo, a composição do leite materno é alterada diariamente para atender às necessidades do bebê.”
Leite produzido em laboratório?
Uma forma de possivelmente imitar algumas dessas propriedades pode ser o cultivo de células produtoras de leite humano em laboratório — algo que os cientistas estão começando a explorar.
A start-up BioMilq, da Carolina do Norte, nos EUA, foi fundada pela bióloga celular Leila Strickland, depois que ela enfrentou dificuldades para produzir leite materno em quantidade suficiente para seu primeiro filho.
Leia aqui no aleitamento.com sobre essa iniciativa no artigo Leite humano de laboratório?!
Outras companhias de biotecnologia também estão trabalhando em projetos de produção de leite em laboratório que poderão mudar a forma como pensamos na fórmula infantil industrializada no futuro.
Em Singapura, a empresa Turtle Tree Labs está cultivando células de diversos mamíferos diferentes, incluindo vacas, ovelhas, cabras, camelos e, agora, seres humanos, para criar componentes do leite. E, em Nova York, os pesquisadores da start-up Helaina estão usando processos de fermentação que programam células de levedura para fabricar proteínas funcionais do leite humano, que poderão um dia ser acrescentadas ao leite de fórmula e a outros produtos alimentícios para bebês.
Mas o leite materno é um fluido em constante mutação, o que o torna um alvo em movimento. Alguns de seus componentes ainda não são totalmente compreendidos, segundo a professora Mary Fewtrell.
“Podemos produzir fórmulas com bastante sucesso para fornecer nutrição segura e adequada, de forma que o bebê cresça e se desenvolva conforme o esperado”, afirma ela. “De fato, tem havido melhorias na composição das fórmulas infantis nos últimos anos, para que elas possam reproduzir com mais fidelidade os padrões de crescimento e alguns desenvolvimentos observados em bebês amamentados. Mas acho que será impossível imitar um dia os componentes ‘não nutrientes’ desse líquido complexo.”
Sobre as minhas pesquisas sobre a minha própria carga tóxica do corpo e as substâncias prejudiciais que talvez estivessem presentes no meu leite materno, a nutricionista Emily Bloxam me tranquiliza:
“eu incentivo a amamentação sempre que possível, pois os benefícios para a mãe e para o bebê superam em muito os eventuais riscos [de contaminação].”
Parece que não sou a única a se perguntar sobre os ingredientes do próprio leite. A ex-médica da família Stephanie Canale é a fundadora da empresa Lactation Lab na Califórnia (EUA), que analisa leite materno para determinar seu teor nutricional, além das substâncias tóxicas do ambiente.
As mães enviam para a empresa amostras congeladas do seu leite para verificar os níveis de diversos ingredientes, incluindo vitaminas e sais minerais. A ideia é adaptar sua alimentação de acordo com as necessidades.
Canale afirma que, quando examinamos a nutrição de um bebê, precisamos incluir tudo, desde as vitaminas da fase pré-natal até a alimentação consumida pela mãe durante a fase de amamentação e as refeições do bebê que começa a deixar de mamar. A fórmula infantil pode ser uma parte desse mosaico nas famílias que a adotarem.
“É uma abordagem holística”, afirma Canale. Ela gostaria de ver regulamentações mais rigorosas sobre o conteúdo das fórmulas infantis nos EUA.
“Sou do Canadá e ainda fico surpresa com a quantidade de xarope de milho, com alto teor de frutose, presente nos produtos norte-americanos, incluindo o leite de fórmula”, ela conta. “As mães irão orientar essa mudança, dizendo que precisam saber melhor o que está sendo incluído nesses produtos – especialmente o leite de fórmula, pois a criança está comendo a mesma coisa todos os dias, sem variações [como as naturalmente presentes no leite materno].”
No caso das substâncias tóxicas (se elas atingem o leite materno ou de fórmula), a questão claramente não é apenas como podemos fornecer nutrição segura para as nossas crianças. É também como podemos fornecer a elas e às gerações futuras um ambiente saudável para viver e reduzir a poluição ao longo de toda a cadeia alimentar. Uma resposta, certamente, é começar a usar menos substâncias prejudiciais em primeiro lugar.
*Anna Turns é jornalista ambiental e autora do livro “Livre-se dos Tóxicos: Formas Fáceis e Sustentáveis de Reduzir a Poluição Química” (em tradução livre).