Existe, há décadas, uma luta diária contra os fabricantes de fórmula infantil em defesa da amamentação. Os estratagemas dessa indústria bilionária se transformam e nunca perdem a sua eficácia. Até quando continuaremos sendo vítimas de suas obscuras estratégias?
Gabrielle Gimenez* @gabicbs
Já dizia o sábio há mais de 3.000 anos: “não há nada de novo debaixo do sol”. E pensando sobre o marketing da indústria de substitutos do leite materno, essa antiga reflexão continua sendo atual e certeira. “Haverá algo de que se possa dizer: ‘Veja! Isto é novo!’?”, pergunta o sábio em seguida. Ao que ele mesmo responde: “Não! Já existiu há muito tempo, bem antes da nossa época”.
O início do enfrentamento
Desde que foi patenteada a primeira fórmula láctea comercial em 1865, a estratégia dos fabricantes já incluía anúncios direcionados a mães e profissionais da saúde e o recrutamento de médicos e cientistas, para gerar aval para os seus produtos.
De acordo com o segundo estudo da série sobre amamentação publicada recentemente na revista The Lancet, mesmo naquela época, os materiais de marketing lançavam dúvidas sobre a qualidade do leite materno e afirmavam fornecer a solução perfeita aprovada pela medicina: um produto “inspirado” no leite materno. Qualquer semelhança com o que acontece em 2023 não é mera coincidência!
Como se não bastasse o sucesso de vendas na Europa, a indústria seguiu expandindo seu império, abrangendo a África, o Oriente Médio, a Ásia e as Américas. De lá para cá, muitas águas já rolaram debaixo da ponte. A indústria se viu envolvida em um grande escândalo no final da década de 70, com a repercussão da reportagem investigativa, The Baby Killer, que gerou um boicote global à Nestlé e mais adiante motivou a adoção do Código Internacional de Substitutos do Leite Materno pela Assembleia Mundial de Saúde (1981), e no Brasil, a NBCAL – Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes, cuja primeira versão é de 1988.
Novos artifícios, velhas estratégias
Sem deixar a peteca cair, a indústria reagiu rapidamente, reformulando iniciativas já conhecidas e introduzindo algumas novas. Dentre as mais eficazes estão o lobby junto aos governos para obstaculizar a intensificação de políticas de controle ao comércio de fórmulas infantis e de proteção à amamentação, e a criação de diferentes linhas de produtos que permitem a promoção cruzada e, com isso, fomentar a venda de fórmula numa violação velada ao Código já existente.
A era da comunicação digital trouxe novidades na forma de segmentação do público e formato de divulgação da propaganda, nas redes sociais a estratégia básica continua sendo a mesma:
(1) confundir as famílias quanto ao valor da amamentação em relação aos produtos especiais oferecidos pela indústria,
(2) patrocinar associações profissionais de medicina, de nutrição, entre outras, fornecendo materiais informativos e cursos de capacitação,
(3) utilizar pseudociência na promoção e consolidação da imagem dos seus produtos junto aos profissionais, influenciadores e público em geral.
Nada de novo debaixo do sol
A indústria pinta e borda e sempre dá um jeito de sair impune, apoiada por um mercado em constante expansão que já supera os 290 bilhões de reais de faturamento anual.
Ao apelar à insegurança dos pais em relação ao comportamento infantil, a indústria busca aumentar as vendas e gerar fidelidade do público. Ela patologiza manifestações normais do desenvolvimento do bebê como o choro, a agitação, o refluxo fisiológico e a curta duração do sono noturno, ao mesmo tempo em que oferece suas fórmulas especiais como solução ideal para esses “problemas”.
Na medida em que patrocinam eventos e associações profissionais da área da saúde, oferecem materiais informativos, supostamente científicos, e capacitações aos profissionais, a indústria “forma” a esses profissionais com a informação que lhe serve. Por outro lado, sabemos que os currículos das faculdades de medicina, entre outras, ainda dedicam pouco tempo à preparação do profissional de modo que ele possa oferecer um apoio eficaz à amamentação depois de formado. Esse panorama gera claras incongruências profissionais e éticas na hora de acompanhar as famílias.
Por serem classificados como produtos alimentícios, os fabricantes de fórmula láctea comercial não são obrigados a fornecer evidências com o mesmo nível de certeza que os padrões internacionais para a indústria farmacêutica e intervenções médicas. Estudos patrocinados pela própria indústria, geram evidências questionáveis nas quais se baseiam seus discursos de venda. São alegações sem qualquer fundamento médico, que confundem pais e cuidadores que, no fundo, só desejam dar o melhor para os seus filhos.
A grande pergunta é: se já sabemos como ela trabalha, por que continuamos caindo nas mesmas armadilhas ano após ano?
A informação como ferramenta de contra-ataque
Se as estratégias da indústria não são novidade, a arma mais importante que dispomos para ganhar essa guerra, também não. O acesso à informação imparcial sobre alimentação e desenvolvimento infantil deveria ser um direito garantido pelo Estado a toda a população. Apenas de posse dessa informação as famílias podem fazer escolhas livres e conscientes sobre como cuidar e alimentar o seu bebê da melhor maneira, dentro da sua realidade.
No entanto, como na nossa cultura desejar amamentar não significa conseguir amamentar, para que essa escolha consciente possa ser concretizada é fundamental que cada país promulgue políticas adequadas de proteção e apoio à amamentação e à maternidade, livres da influência do interesse comercial.
Conforme ressalta o estudo, como alimentamos e cuidamos de nossos filhos tem um efeito vitalício no bem-estar individual, social e ambiental. Pela evidência científica disponível, se sabe que as fórmulas infantis não se aproximam da amamentação e do leite materno em termos de composição, propriedades imunológicas e contribuição para a saúde e desenvolvimento.
Por isso, já está mais do que na hora de que a amamentação seja uma responsabilidade coletiva, digna do compromisso político, investimento financeiro e apoio conjunto da sociedade civil, para a remoção de barreiras estruturais e capacitação e apoio pleno às mulheres que optam por amamentar.
*Gabrielle é puericultora, mãe de três, editora especial do portal aleitamento.com e autora do livro “Leite Fraco? – Guia prático para uma amamentação sem mitos”.
Fonte: Rollins N, Piwoz E, Baker P, Kingston G, Mabaso KM, McCoy D, Ribeiro Neves PA, Pérez-Escamilla R, Richter L, Russ K, Sen G, Tomori C, Victora CG, Zambrano P, Hastings G; 2023 Lancet Breastfeeding Series Group. Marketing of commercial milk formula: a system to capture parents, communities, science, and policy. Lancet. 2023 Feb 11;401(10375):486-502. doi: 10.1016/S0140-6736(22)01931-6. Epub 2023 Feb 7. PMID: 36764314.
*Clique aqui nesse link e leia a tradução em português no nosso Slide Share: Breastfeeding The Lancet 2023: artigos em português