Resolvido o enigma da “mamadeira” romana
Na cidade de Bourges, uma exposição renova o olhar sobre a infância e a maternidade na Antigüidade.
Os arqueólogos costumavam catalogar como “mamadeira”, por falta de melhor definição, um pequeno frasco simples de gargalo, com bico atrofiado, corpo largo, com a base plana e a alça estranhamente fixada como uma orelha no meio da face.
Feitas em cerâmica nos tempos mais antigos – em torno do século I A.D. – e mais tarde em vidro, no século II, essas relíquias do Alto Império continuavam misteriosas. A exposição “Maternidade e Primeira Infância na Antigüidade Romana”, que acontece no Museu de História Natural de Bourges até 28 de março, fornece a chave do enigma desses utensílios romanos.
Durante muito tempo os especialistas não prestaram grande atenção a tais objetos e não buscavam nem mesmo saber o que eles faziam dentro de algumas sepulturas de crianças. Entre brinquedos e peças de moeda – o óbolo para Caronte –, perto de uma fíbula (espécie de alfinete de segurança ou broche), de algumas pequenas contas ou às vezes de um chocalho. Sabia-se simplesmente que eram elementos inadaptados para uso culinário, não tendo nem mesmo a mínima função simbólica…
Sua forma variava, assemelhando-se por vezes à de uma lamparina a óleo, ou à de uma pipeta ou à de um barolet, utensílio de decoração utilizado pelos oleiros para colocação de relevos feitos com uma fina pasta cerâmica.
Finalmente os especialistas passam a suspeitar que esses utensílios podem ter servido como “mamadeiras”. Na memória arqueológica não existia – como não existe até hoje – uma representação de tal utensílio. Mesmo Soranos d’Ephèse, médico no tempo dos reinados de Trajano e de Adriano, autor de um tratado atestando o uso da alimentação de bebês através de uma espécie de “bico” artificial, não havia feito uma representação de tal objeto. Foram necessárias uma série de circunstâncias e de encontros para levantar uma parte do mistério. Essas “mamadeiras”, que de toda evidência não poderiam substituir o seio materno nem o da ama-de-leite, eram na verdade espécies de tira-leite.
Tudo começa com a chegada de Nadine Rouquet, especialista em cerâmica, ao serviço arqueológico de Bourges, em 1996. Nessa ocasião ela teve contato com um rico inventário dessas “mamadeiras” – cerca de 50 – coletadas ao longo de várias campanhas de escavações feitas nos anos 70 na região próxima à antiga cidade de Avaricum (Bourges no tempo de César). A arqueóloga era uma das poucas a interessar-se por esses pequenos vasos fechados até que ela teve conhecimento de que pesquisadores alemães descobriram, nas paredes internas desses objetos, depósitos ácidos oriundos exclusivamente do leite humano ou animal. Como a concepção desses recipientes lhe parecia pouco propícia à sua utilização como mamadeiras, ela iniciou uma pesquisa que permitiu contabilizar uma quantidade relativamente baixa desses objetos – 230 “em todo o território dos gauleses”.
Sua hipótese teórica do tira leite – “um instrumento médico ainda utilizado nos dias de hoje para aliviar um seio muito cheio de leite” – começava a se confirmar. Apresentada em Libourne em 2000, a idéia de uma aspiração do leite pela própria mãe é “bem recebida”. Faltava experimentar para verificar se realmente funciona. “Uma amiga acabara de ter um bebê. Eu pedi a ela para experimentar este método de auto-aspiração, e funcionou”, explica a arqueóloga.
Em torno desses tira leite “atmosféricos”, teoria que recebeu em 2003 a aceitação da Sociedade Francesa de Estudos da Cerâmica Antiga na Gália, Nadine Rouquet mobilizou cientistas de diferentes disciplinas – historiadores da medicina, médicos legistas, paleo-antropólogos, botânicos… – a fim de realizar uma exposição e a edição de um catálogo sobre a maternidade e a primeira infância na Antigüidade romana.
O assunto havia sido muito pouco explorado até há uns 20 anos. É um tema propício ao debate, reconhece Gérard Coulon, especialista desta época, que lembra que o sentimento da infância foi ignorado ou mesmo negado por certos historiadores. No entanto, se a criança não é o “reizinho” na sociedade galo-romana, ela ocupa um lugar singular na Gália, província que desenvolveu de forma particular o culto à deusa mãe. A criança é enterrada com cuidado e acompanhada de seu mobiliário para que ela não volte para assombrar os vivos. O pai eleva o pequeno defunto acima de seu bercinho como forma de reconhecimento. Ele é chorado, a julgar pelos epitáfios, o que contradiz aquilo que era mais ou menos admitido até aqui.
Por outro lado, é falso atribuir ao nome de César a cesariana. Caesarean (seção) é mais judicioso como explicação e, segundo a historiadora da medicina Danielle Gourevitch, não são conhecidos casos de cesarianas datando da época de César. Detalhes deste tipo servem de fio condutor à exposição, composta de 120 objetos, de textos e de ilustrações que oferecem ao público um universo geralmente – e parcialmente – reservado aos especialistas. Símbolo emocionante dessa viagem no tempo: a impressão da planta do pé de uma criança sobre uma telha posta para secar, perto de Vaison-la-Romaine, há cerca de dois mil anos.
Patrick Martinat
Maternidade e primeira infância na Antigüidade romana, catálogo, sob a direção de Danielle Gourevitch, Anna Moirin et Nadine Rouquet, Edições da cidade de Bourges, 230 p., 35 €.
A exposição acontece no Museu de Bourges até 28 de março, depois vai para Dijon, de 16 de abril à setembro, e para Nyon (Suíça) no outono de 2004.
Artigo publicado na edição de 20.02.04
Traduzido pela Profa. Gilza Sandre Pereira – Instituto de Nutrição da UFRJ