Leite materno no tratamento para a Covid-19, diz estudo
Amostras doadas por nutrizes que já foram contaminadas apresentaram uma bem vinda ‘resposta imunológica’ à presença do vírus
O leite humano de mulheres uma vez infectadas pela Covid-19 apresenta forte resposta imunológica ao novo coronavírus. Esta é a conclusão de um estudo feito por um grupo de pesquisa do Departamento de Infectologia da Escola de Medicina Icahn do Monte Sinai, em Nova York, e do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Merced.
O estudo ainda não passou pela revisão da comunidade científica, mas apresentou resultados animadores. Segundo a pesquisa, a presença de anticorpos para a Covid-19 no leite materno pode alçá-lo à função de terapia contra a doença.
Já se esperava que o leite produzido por mulheres infectadas apresentasse anticorpos para o novo coronavírus. Isso porque o colostro (o leite produzido no início da amamentação) contém imunoglobulinas G, o tipo de anticorpo mais abundante no organismo, responsável pela proteção contra vírus e bactérias e cuja presença no leite materno deriva, em sua maior parte, do sangue da mãe. Porém, como a imunoglobulina G representa apenas cerca de 2% dos anticorpos totais existentes na substância, ainda não se conhecia a exata quantidade de anticorpos para a Covid-19 presente no leite materno.
Para calcular esse número, os pesquisadores compararam 15 amostras de leite doado por mulheres recuperadas da Covid-19 com dez amostras de controle negativo obtidas antes de dezembro de 2019, ou seja, antes do início da pandemia. Todo o material recolhido foi exposto ao Sars-Cov-2, vírus causador da Covid-19. Das amostras doadas pelas mães infectadas, 80% apresentaram reação de Imunoglobulina A (IgA), e todas registraram resposta de anticorpo secretório. Isso sugere que a IgA detectada pertence, predominantemente, à subclasse Imunoglubina A secretora (ou sIgA, na sigla em inglês).
Segundo os especialistas, o caráter secretório do anticorpo merece destaque, pois anticorpos dessa categoria são altamente resistentes à degradação proteica no sistema digestório e respiratório. Desse modo, o leite humano (LH) poderia ser purificado e usado no tratamento da Covid-19.
Assinado por uma equipe quase toda feminina — de seis mulheres e um homem —, o estudo ressalta que os resultados reportados são preliminares. No entanto, de acordo com os pesquisadores, essas respostas são “cruciais para bebês e crianças, que tendem a não sofrer muito com Covid-19, mas provavelmente são responsáveis por uma parcela significativa da transmissão viral”.
“De modo geral, os dados indicam que há uma forte resposta imunológica protagonizada pela sIgA em leite humano após infecção na maioria dos indivíduos, e que um estudo abrangente dessa resposta é urgente”, completam os especialistas.
Pesquisadores brasileiros também estudaram os anticorpos no LH
No Brasil, um estudo parecido, conduzido por pesquisadores de diferentes instituições — Santa Casa de São Paulo, Hospital Albert Einstein e Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB/USP) —, está para começar.
Um desses pesquisadores é o infectologista Marcelo Otsuka, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Ele explica que a prevalência da IgA na resposta apresentada no leite das mães infectadas se deve a seu protagonismo no combate a doenças intestinais.
— O Sars-Cov-2 tem um tropismo (tendência a se desenvolver) muito grande por células intestinais. Por isso a diarreia é um dos sintomas da Covid-19. A IgA é especializada em defender o organismo de infecções no intestino, protegendo-o de várias doenças, até mesmo bacterianas. O corpo do bebê a produz para se defender de enfermidades que podem ser contraídas por via oral, já que a amamentação acontece pela boca — pontua o especialista.
Segundo Otsuka, a IgA tem a vantagem de se mostrar um anticorpo estável na defesa das vias aéreas e intestinais. Além disso, um possível tratamento inalatório demandaria uma quantidade muito menor de princípio ativo para alcançar os pulmões do que um tratamento intravenoso, afirma ainda o médico.
Mas alguns desafios se impõem à aprovação do tratamento. Uma terapia à base de IgA consistiria, diz Otsuka, numa técnica de imunização passiva, ou seja, que infunde no organismo os anticorpos necessários para o combate a uma doença específica. Essa técnica opera numa lógica oposta à da vacina, cuja aplicação estimula o corpo a produzir sua própria defesa contra uma enfermidade particular — imunização ativa, portanto. Segundo o infectologista, a imunização passiva pode fazer com que a resposta natural do organismo seja menor.
Além disso, como todo remédio sem eficácia comprovada, o tratamento inalatório à base de IgA ainda precisa ser testado em pesquisas amplas. E os testes podem registrar efeitos prejudiciais à saúde:
— É claro que, no caso de uma imunoglobulina, produzida pelo corpo, as chances de haver eventos adversos são bem menores. Mas podem acontecer.
Outro desafio é medir a quantidade de colostro necessária para viabilizar o tratamento. Se for muita, a autorização da terapia poderia trazer danos à saúde dos bebês.
— Quem pode doar leite está amamentando. Quanto leite é necessário para tratar a Covid-19 com IgA? Você vai tirar leite dos recém-nascidos? — questiona o infectologista. E completa: — A IgA deve ser vista com cautela. O processo tem de ser igual ao de qualquer remédio novo: muitos testes. É possível purificar o colostro e distribuí-lo, mas antes é preciso verificar sua eficácia e investigar seus efeitos no organismo.
Fonte: O Globo, 14/05/2020