Senta lá, Jamie
Amamentação como ela é
Mariana Inbar –
No finalzinho do mês passado, Jamie Oliver levou um belo fora em público de Adele, que não viu a menor graça em uma das declarações do chef inglês. Jamie, que faz uma importante campanha em prol da alimentação saudável para crianças, soltou em uma entrevista que amamentar é “fácil” e que todas as mulheres deveriam fazê-lo, anunciando que essa será sua próxima campanha. A intenção foi boa, a forma como ele disse não, e a repercussão foi bastante negativa – assim como aconteceu com Gisele Bündchen em 2010, quando ela disse que amamentar deveria ser lei. Além de Adele, que mandou Jamie se foder no palco de um de seus shows, muitas mulheres usaram as redes sociais para protestarem contra a pressão que sofrem para amamentar. Todas nós sabemos que o ato garante proteção para o bebê e para sua mãe, mas não é garantido que toda mulher pode amamentar. Nós aqui no Petiscos falamos muito sobre o assunto, e contamos até nossas experiências pessoais, mas é preciso deixar claro que amamentar não é fácil, nem é automático. Eu, que tive uma mastite seríssima tentando amamentar minha segunda filha e precisei passar por uma cirurgia de emergência para drenagem do seio, sem bem disso. Não basta querer. O corpo precisa funcionar junto com você. Por isso, também não engoli Jamie Oliver mandando sua real e fui atrás de uma opinião profissional para sanar nossas dúvidas – já que nos nossos comentários nossas leitoras também debateram avidamente o assunto.
E aí, amamentar é fácil? Quem falou com a gente foi o Dr. Marcus Renato, editor do portal Aleitamento.com e especialista em medicina preventiva e social, que faz um bonito trabalho em prol do aleitamento materno. Para ele, o leite não é produzido apenas nas mamas, mas também na cabeça da mulher, ou seja: há muitos fatores envolvidos em uma amamentação bem-sucedida, muitos psicológicos, e o ato não é instintivo na raça humana. Para ele, a amamentação é uma cultura, que precisa ser resgatada e requer muito preparo e apoio. No Brasil, a amamentação exclusiva até os cinco meses está em torno de 41%. “O ideal é que esse número fosse de 80% até o sexto mês, mas é difícil alcançar isso. A amamentação continuada, até dois anos, chega a 20% das mulheres. A ONS e o Ministério da Saúde recomendam a amamentação exclusiva até o sexto e mês e continuada até dois anos ou mais”, explica, afirmando que pesquisas internacionais reconhecem o trabalho do Brasil em prol da amamentação como extremamente eficientes.
Petiscos: Escutamos muito que toda mulher consegue amamentar. É verdade?
Dr. Marcus Renato: Não. Toda mulher potencialmente pode amamentar se ela tiver conhecimento sobre psicofisiologia e técnicas da lactação, e se ela for apoiada. Agora, infelizmente, as mulheres não estão conseguindo amamentar pois há toda uma falta de apoio dos profissionais de saúde e da sociedade. A amamentação não é automática. Ela não é inata ou instintiva nos mamíferos humanos. É instintiva no cachorro, na girafa, no golfinho, mas nós perdemos a cultura da amamentação. Essa tecnologia era passada de mãe para filha, de irmã para irmã, de comadre para comadre, de vizinha para vizinha. Mas agora o estilo de vida urbano fez com que a gente perdesse esse contato. Eu recebo mulheres que nunca viram outras amamentando. Então há uma quebra da passagem desse conhecimento. Por isso que a gente dá cursos para casais, temos o site, há aplicativos, livros. É porque tem que haver um esforço da sociedade e dos profissionais de saúde para recuperarem a cultura da amamentação. Ainda há pouco conhecimento técnico em relação à amamentação.
P: Existem fatores psicológicos que acabam fazendo com que a mulher não consiga amamentar?
Dr. MR: Infelizmente sim. Eu costumo dizer que o leite não é produzido apenas nas mamas. Ele é produzido na cabeça também. Para haver o reflexo de descida do leite, tem que haver a ativação da ocitocina. A ocitocina é o hormônio da ejeção, do orgasmo, do trabalho de parto, e que contrai as células musculares que ejetam o leite. Então da mesma maneira que numa relação sexual a mulher não atinge o orgasmo se não tiver muito à vontade ou confiante, na amamentação é a mesma coisa. Se ela estiver com dor, aflita, com baixa autoestima, sem apoio, não há liberação da ocitocina. Por isso que eu digo que a amamentação é um ato psicossomático complexo. Não é simples. O Jamie Oliver errou ao dizer que a amamentação é fácil. Se fosse fácil, não precisaria de campanha, cursos, livros. Isso é um desserviço à amamentação.
P: Em quais casos a mulher não consegue amamentar inicialmente? Você falou sobre essa pressão psicológica. Existe algum fator físico que possa bloquear esse processo?
Dr. MR: Existe, por isso que há uma série de procedimentos nas maternidades. A amamentação bem-sucedida começa com o parto humanizado. Tem que haver uma linha de cuidado muito delicada na gestante, na parturiente, na puérpera. Se o parto foi desastroso, ou foi uma cirurgia cesariana, ou houve ainda violência obstétrica, tudo isso vai afetar a descida do leite, que é apojadura. Por isso que há aquele ditado que “cesárea não dá leite”. Não é verdade, mas há uma base fisiológica nisso. É que às vezes a cesárea é pré-marcada, a mulher não entrou em trabalho de parto, então não tem ocitocina circulante. Às vezes a mulher cesareada recebe um calmante pois ficou frustrada e nervosa, e aí ela dorme 12h e não fica em contato com o bebê na sala de parto, e o bebê toma uma fórmula no berçário. A mulher cesareada pode não conseguir amamentar sozinha porque ela precisa de outra pessoa para pegar o bebê por conta de suas dores. Por isso que existe uma iniciativa internacional dos hospitais amigos da criança, que se chama Baby Friendly Hospital Iniciative, que prega por cuidados perinatais de contato na sala de parto, logo que o bebê nasce. De não dar chupeta, de diminuir o número de cesáreas e assim por diante, para que a amamentação se estabeleça ainda na maternidade.
P: Muitas mulheres sentem muita dor ao amamentar. É normal?
Dr. MR: Não é para sentir dor, não é para sangrar, não é para causar fissura. Existe uma técnica do bebê não abocanhar só o mamilo, abocanhar toda aréola, dele ficar todo juntinho, barriga com barriga em um bom posicionamento no colo, para ele ter uma boa pega. Se tiver causando dor, pare e vamos ver o que está acontecendo. A mama pode estar muito ingurgitada, por exemplo.
P: Quando uma mulher enfrenta uma mastite, quais são os cuidados que ela tem que ter e como ela consegue superar uma mastite sem precisar chegar a uma mesa de cirurgia?
Dr. MR: A mastite é uma complicação mais rara, causada por um manejo clínico inadequado. Talvez a fissura ou a rachadura no peito sejam uma porta de entrada. Ou um duto lactífero bloqueado. Às vezes o sutiã ou uma roupa apertou demais um lado do peito e causou um bloqueio da saída do leite e ele não foi desfeito. E aí complica com a mastite. O stress também pode causar mastite, pois não há liberação de ocitocina e o leite fica preso e a mama fica empedrada. Se não houver um relaxamento e uma retirada desse leite, o empedramento pode evoluir para mastite, que é uma infecção mais grave. Mastite é um evento excepcional, significa que a amamentação não foi bem apoiada, que não houve uma boa pega, que teve fissura.
P: E como tratar a mastite?
Dr. MR: Às vezes há um duto lactífero bloqueado que é confundido com mastite. Ou seja, o peito está vermelho, mas a mulher não sente sinais gerais. A mastite é como se fosse uma gripe muito forte, a mulher toda se sente muito mal. E aí sim tem que procurar um médico que vá lhe transcrever antibióticos, antinflamatórios e esvaziar essa mama _ou com a bomba ou com a mão. A mulher decide qual é o melhor método. A gente não usa tanto compressa quente pois ela pode aumentar a vascularização, a produção de leite e também queimar a mama. O segredo da mastite é a ordenha, a expressão manual.
P: E quando há uma mastite mais grave, qual deve ser o procedimento da mãe?
Dr. MR: Ela deve procurar especialistas em amamentação. A gente tem uma rede de consultores de amamentação certificados, então vale a pena conversar com eles nessas situações mais dramáticas. Infelizmente há um desconhecimento muito grande dos profissionais em relação a amamentação.
P: A mastite precisa obrigatoriamente significar a introdução da fórmula?
Dr. MR: Algumas mastites não impedem a amamentação. Às vezes o bebê mamar é uma forma muito eficaz de esvaziar a mama. Se não há saída de pus daquela região, ele pode mamar. Mas cada caso é um caso, que deve ser examinado individualmente. A mastite geralmente não é nos dois peitos, então o bebê pode continuar nesse peito enquanto a mãe ordenha a mama e o antibiótico em 48h começa a fazer efeito e diminuir a dor. Talvez aí o bebê possa voltar a mamar naquele peito.
P: Existe algum sinal vermelho, quando você se vê obrigado a falar para a mãe que ela não vai poder mais amamentar?
Dr. MR: É muito ruim a gente dar esse prognóstico e frustrar a mãe. Talvez valha a pena dizer: “Vamos examinar daqui a uma semana? ”. Porque a gente pode tentar uma técnica de relactação – mães que pararam de amamentar podem voltar a produzir leite. A gente usa sonda, que fica do lado de fora da mama. O bebê pega a aréola e aquele tubinho ao mesmo tempo, recebendo o complemento ao mesmo tempo em que fica sugando na mama. Porque a melhor forma de produzir leite é o bebê sugar na mama. Se não tem leite no peito, o bebê para de sugar, então a gente engana ele com a sondinha. É uma forma de relactação, de fazer com que esse peito volte a produzir leite.
P: E quando uma paciente lhe diz que não quer mais amamentar?
Dr. MR: A amamentação é algo que não deve ser forçado. O profissional deve ouvir essa mulher, ela é a protagonista, ela é que está sentindo a dor, e a gente deve respeitá-la profundamente sem nenhum juízo moral. A gente deve apoiá-la nessa decisão e respeitar os limites dela. Se ela não vai amamentar, recomendamos que ela, quando está dando a mamadeira, abrace muito esse bebê, tenha muito contato pele a pele com seu filho, que o pegue no colo, que o olhe nos olhos durante esse momento.
P: E o senhor tem algum recado para as mães que não conseguiram amamentar e sentem-se culpadas?
Dr. MR: A culpa não é dessas mães. A responsabilidade é de todos nós: dos profissionais de saúde, da sociedade que não preparou essas mulheres, que permite uma publicidade de fórmulas muito grande e que permite que profissionais de Perinatologia não tenham conhecimento satisfatório e atualizado para apoiá-las. Não se sintam culpadas. É uma responsabilidade de toda a sociedade. A amamentação pode ser influenciada por histórias familiares, a relação da mãe com seu companheiro ou ainda o tipo de parto. Há uma complexidade de coisas relacionadas à amamentação, não se trata apenas de um problema da mãe.
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