Gráficos de crescimento para bebês alimentados com leite materno
Growth charts for breastfed babies
J Pediatr (Rio J). 2004;80(2):85-7
Os gráficos de crescimento são itens essenciais no arsenal de ferramentas do pediatra. Eles são valiosos porque ajudam a determinar até que ponto estão sendo atendidas as necessidades fisiológicas que garantem o crescimento e o desenvolvimento durante o importante período da infância. Contudo, como bem apontam Marques e colegas, no artigo publicado no presente número do Jornal de Pediatria * (1), a interpretação da trajetória de crescimento dos bebês alimentados com leite materno, muitas vezes utilizada para avaliar até que ponto a lactação é adequada, assim como para orientar a respeito da introdução de alimentos complementares, é altamente dependente dos dados de referência utilizados. A exatidão do aconselhamento a respeito da alimentação pode ser prejudicada se os gráficos de crescimento usados como referência não representam adequadamente o padrão de crescimento fisiológico dos bebês alimentados com leite materno.
Já se admite que a referência de crescimento atualmente recomendada para uso internacional – ou seja, as curvas de crescimento do Centro Nacional para Estatísticas em Saúde dos Estados Unidos/Organização Mundial da Saúde (NCHS/WHO) – apresenta uma série de limitações relacionadas à origem e ao tipo dos dados. Tais limitações tornam essa referência inadequada para avaliar o crescimento de bebês que recebem leite materno (2). Um dos problemas mais importantes dessa referência é que foi baseada em bebês norte-americanos alimentados predominantemente com leites infantis. Os padrões de crescimento desses bebês, já se sabe, se desviam substancialmente do padrão dos bebês saudáveis alimentados com leite materno (3). A divergência entre o padrão de crescimento dos bebês saudáveis que recebem leite materno e outras referências nacionais de crescimento que, como a NCHS/WHO, são em grande parte baseadas em bebês que recebem leites infantis, foi recentemente documentada (4,5). A inconsistência entre as curvas atuais de crescimento e as diretrizes para a alimentação das crianças, que recomendam o leite materno como fonte ideal de nutrição durante a primeira infância (6,7), é motivo de grande preocupação. Existem muitas evidências que sugerem a necessidade de referências de crescimento baseadas em bebês alimentados com leite materno. Em países como o Brasil, onde as diretrizes para a alimentação de bebês recomendam a amamentação exclusiva como a fonte ideal de nutrição nos primeiros seis meses de vida, os médicos deveriam oferecer orientação antecipatória, no sentido de alertar os pais sobre as imperfeições dos padrões de crescimento que são atualmente utilizados. De outra forma, ele estarão se arriscando a passar os primeiros meses de vida tentando tranqüilizar os pais sobre o fato de que o crescimento aparentemente insuficiente de seus bebês não é motivo de preocupação (ou pior, começando uma investigação para déficit de crescimento e introduzindo mamadeira suplementar), ao invés de parabenizar os pais por terem alimentado seus bebês exclusivamente com leite materno.
Tendo reconhecido os problemas da curva de crescimento da NCHS/WHO, utilizada como referência internacional, em 1994 a OMS começou a planejar novos padrões que, diferentemente da atual referência, seriam baseados em uma amostra internacional de bebês saudáveis alimentados com leite materno, e retrataria como as crianças “deveriam” crescer em todos os países, em vez de refletir apenas como as crianças cresceram em um dado período e lugar (8). O Estudo Multicêntrico de Referência para o Crescimento, da OMS (WHO Multicentre Growth Reference Study, MGRS), realizado entre 1997 e 2003, enfocou a coleta de dados de crescimento e outros dados relacionados de aproximadamente 8.500 crianças de meios étnicos e culturais bastante diversos, inclusive um grupo de crianças brasileiras (9).
Em resumo, o delineamento do MGRS combinou um estudo longitudinal do nascimento aos 24 meses com um estudo transversal de crianças com idade entre 18 e 71 meses. As sub-populações do estudo tinham condições socioeconômicas favoráveis ao crescimento, baixa mobilidade, > 20% das mães seguindo as recomendações de alimentação e acesso a apoio para amamentação. Os critérios individuais de inclusão consistiram na ausência de restrições ambientais ou de saúde ao crescimento, adesão às recomendações de alimentação descritas no MGRS, mães não fumantes, gestação única a termo e ausência de morbidade significativa. No estudo longitudinal, as mães e os recém-nascidos foram triados e recrutados por ocasião do nascimento, tendo sido visitados em casa 21 vezes: nas semanas 1, 2, 4 e 6; mensalmente dos 2 aos 12 meses; e a cada dois meses no segundo ano de vida. Além dos dados sobre antropometria e desenvolvimento motor, foram coletadas informações sobre características socioeconômicas, demográficas e ambientais, fatores perinatais e práticas alimentares (8). No Brasil, a cidade de Pelotas funcionou como local piloto para o estudo, e teve um papel importante no estudo internacional.
Em comparação a outros estudos menores descrevendo o crescimento de bebês alimentados com leite materno, o MGRS tem a vantagem de ter começado a partir de uma base populacional bem definida e de ter trabalhado com critérios de inclusão e exclusão explícitos, com medidas altamente padronizadas e controle de qualidade, além de altos índices de seguimento (em Pelotas, por exemplo, 96% dos bebês recrutados para o estudo foram seguidos até os 6 meses de idade, 94% até 12 meses e 91% até 24 meses).
Com base nesses novos dados, diversas curvas-padrão de crescimento serão projetadas. Tais curvas terão muitas características inovadoras quando comparadas com as curvas existentes. Em primeiro lugar, o MGRS foi projetado para fornecer dados que descrevem “como as crianças deveriam crescer”, mediante a formulação de critérios de seleção que incluíram comportamentos específicos, relacionados à saúde, que são consistentes com as atuais recomendações de promoção à saúde (por exemplo, normas de amamentação, cuidado pediátrico padrão e exigências quanto a não fumar). Esse novo enfoque é fundamentalmente diferente daquele utilizado nas referências descritivas tradicionais. Ao adotar um enfoque “prescritivo”, o desenho do protocolo foi além de uma atualização de como crianças em populações presumivelmente saudáveis crescem em um momento e local específicos. Em vez disso, o protocolo reconhece explicitamente a necessidade de “padrões” (isto é, mecanismos que possibilitem julgamentos de valor pela incorporação de normas ou metas em sua construção). Provavelmente, a atual epidemia de obesidade em muitos países desenvolvidos teria sido detectada mais cedo se uma referência internacional prescritiva existisse há 20 anos.
Outra característica-chave da nova referência é que ela torna a amamentação com leite materno a “norma” biológica, e estabelece os bebês que recebem leite materno como o modelo normativo de crescimento. As políticas de saúde e o apoio público à amamentação com leite materno serão reforçados quando os bebês alimentados dessa forma se tornarem a referência para o crescimento e desenvolvimento normal.
Em terceiro lugar, a amostra conjunta dos seis países participantes (Brasil, Gana, Índia, Noruega, Omã e Estados Unidos) permitirá o desenvolvimento de uma referência verdadeiramente internacional (em comparação com a atual referência internacional, baseada em crianças de apenas um país) e a reafirmação do fato de que as populações de crianças crescem de forma semelhante nas principais regiões do mundo quando suas necessidades de saúde e cuidado são atendidas.
Em quarto lugar, a riqueza dos dados coletados permitirá a substituição das referências correntes sobre crescimento alcançado (peso para idade, comprimento/altura para idade e peso para comprimento/altura) e o desenvolvimento de novas referências para as pregas cutâneas subescapular e tricipital, perímetro braquial e cefálico e índice de massa corporal. Essas referências inovadoras são especialmente úteis para o monitoramento da epidemia crescente de obesidade infantil, que parece especialmente grave na América Latina.
Em quinto lugar, a natureza longitudinal do estudo também permitirá o desenvolvimento de padrões para velocidade de crescimento. Os pediatras não terão de esperar até que as crianças cruzem o limiar das metas de crescimento para diagnosticar sub ou supernutrição, já que as referências de velocidade de crescimento possibilitarão a identificação precoce de crianças a caminho de se tornarem sub ou supernutridas.
Em último lugar, o desenvolvimento de dados concomitantes de referência sobre desenvolvimento motor possibilitará o estabelecimento de uma relação singular entre o crescimento físico e o desenvolvimento motor. A principal desvantagem das novas curvas de crescimento, contudo, é que elas incluirão crianças apenas até a idade de 5 anos. É evidente a necessidade de expandir esta iniciativa a crianças mais velhas.
A finalização das referências de peso, comprimento e perímetro cefálico é esperada para antes do fim de 2005. As demais referências estarão prontas em 2006 (8). A transição global sem percalços para as novas referências nos países que atualmente utilizam as referências de crescimento da NCHS/WHO merece cuidado especial (8). Uma pesquisa internacional recente sobre as práticas nacionais no uso e interpretação de gráficos de crescimento indicou que o processo de substituir as atuais curvas de crescimento precisa ir além da simples mudança de gráficos, e incluir, isso sim, uma revisão das práticas de monitoramento do crescimento como um todo (10). Iniciativas de treinamento intensivo em todos os níveis serão necessárias para superar as dificuldades enfrentadas por profissionais da saúde com o uso e interpretação das curvas de crescimento e disseminar o conhecimento a respeito de intervenções efetivas para evitar ou tratar o crescimento excessivo ou inadequado, tanto em nível individual quanto populacional.
As baixas taxas de amamentação exclusiva em todo o mundo geraram dúvidas a respeito da viabilidade de se recomendar uma dieta infantil que é tão pouco praticada. Contudo, evidências recentes demonstram que o aconselhamento a respeito de amamentação com leite materno dispensado em hospitais e na comunidade é uma forma economicamente viável de aumentar as taxas de amamentação exclusiva (11-16). A experiência do MGRS confirma essa observação no cenário brasileiro (17). A maior efetividade observada em estudos sobre apoio em comunidades com níveis altos de amamentação com leite materno indica que uma cultura inicial de amamentação com leite materno interage de forma sinérgica com a oferta de apoio adicional (15). Seria de se pensar que as estratégias que lançam mão principalmente de apoio face a face seriam mais eficazes do que aquelas que se baseiam principalmente em contatos telefônicos (15). O que é claro é que o apoio às mães precisa continuar após a alta hospitalar e precisa incluir orientação a respeito de técnicas de amamentação e formas de resolver os problemas que podem vir a ocorrer (16).
Virtualmente todas as mães podem amamentar, desde que tenham informações exatas e apoio dentro de suas famílias e comunidades e por parte do sistema de saúde. O principal desafio – e a única forma de estabelecer programas bem-sucedidos de aconselhamento para amamentação – é como entender os diversos fatores que determinam a amamentação exclusiva em diferentes cenários. Tais fatores incluem: 1) políticas nacionais de amamentação com leite materno; 2) fatores socioeconômicos e culturais (atitudes médicas, publicidade, pressão familiar, exigências de trabalho materno, legislação trabalhista da mulher, crenças maternas); 3) fatores biológicos (tamanho e sexo do bebê, taxa de crescimento e desenvolvimento, interesse/desejo, apetite e capacidade de lactação materna); e 4) epidemiologia local de HIV/AIDS. A implementação de programas de aconselhamento de amamentação em larga escala exigirá recursos substanciais e comprometimento político. Idealmente, o apoio à amamentação pela mãe deveria ser oferecido como parte da rotina dos serviços de saúde. Isso implica a necessidade de treinar trabalhadores da saúde qualificados, conselheiros leigos e pares e consultores de lactação certificados que possam auxiliar na construção da confiança da mãe, melhorar técnicas de alimentação e evitar ou resolver os problemas de amamentação. De forma semelhante, as mulheres assalariadas exigirão condições mínimas para prolongar a duração da amamentação exclusiva, tais como licença-maternidade remunerada, esquemas de trabalho de meio-turno, creches no local de trabalho, instalações para tirar e estocar leite materno e intervalos para amamentação.
Mercedes de Onis – Organização Mundial da Saúde, Suíça. MD, PhD, Médica, Coordenadora de Estudos do Departamento de Nutrição.
Cesar G. Victora – Doutor. Professor titular, Universidade Federal de Pelotas – UFPEL.
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