Encantadora polêmica
Especialistas criticam métodos de ex-babá que dá consultoria a pais de primeira viagem
Paula Autran e Reneé Rocha*
Imagem: Mãe amamenta seu bebê: ideia de dar reforço com mamadeira gera polêmica. Foto de Ulysse Lefebvre
Apresentado pelo #Colabora em reportagem de Laura Antunes, o trabalho de Lúcia Wanderley, conhecida como “encantadora de bebês”, gerou muita polêmica. A ex-babá, que tem entre seus clientes famosos o casal de atores Bruno Gagliasso e Giovana Ewbank, é procurada quando pais – principalmente os de primeira viagem – não sabem mais o que fazer diante de dificuldades na hora de amamentar, tirar a fralda ou mesmo fazer o bebê dormir sozinho no berço. Seus métodos fazem tanto sucesso que ela viaja o Brasil inteiro para atender pais à beira de um ataque de nervos. “Meu filho, até os 6 meses, não tinha horários para dormir ou mamar. E eu já estava ficando maluca porque não conseguia fazer mais nada. A Lúcia chegou e estabeleceu uma rotina. Nada mais de horários malucos. Agora, ele acorda 8h e, durante o dia, tem horários estabelecidos para alimentação e cochilos. Nossa vida é outra e voltei a ter tempo para a minha filha mais velha. Sou muito grata ao que ela fez por nós”, contou Sara Mendes da Silva, uma das mães ouvidas.
Está havendo uma terceirização da infância. Percebo que pais e mães hoje nunca ouviram o choro de um bebê, pois as famílias são muito nucleares. Com isso, todo o conhecimento que era passado de mães para filhas foi se perdendo.
Marcus Renato de Carvalho, Pediatra
Se muitos que contrataram os serviços de Lúcia, como Sara, aplaudem e respiram aliviados diante da eficácia do “encantamento”, não são poucos os que criticam os métodos da profissional. Uma das afirmações que mais geraram protestos foi em relação à amamentação. “Ela é necessária, mas não pode ser uma escravização. Muitas vezes, a mãe recorre ao pediatra dizendo que o bebê mama o tempo todo, mas não para de chorar. A orientação que ela recebe é insistir no peito. Só que o leite materno pode não ser suficiente e a criança chora, na verdade, de fome. E a mãe não sabe disso”, afirma. A leitora Viviane Wehdorn protesta: “Os ‘horários malucos’ de mamada se chamam livre demanda, que é indicada pelo Ministério da Saúde e pela maioria dos pediatras. Chorar no berço também é contraindicado pela psicologia atual. Acho que a matéria e a ‘encantadora’ vão contra a tendência da medicina moderna, que são de humanização e estreitamento da relação mãe-bebê”, protestou a leitora. “Está havendo uma terceirização da infância. Percebo que pais e mães hoje nunca ouviram o choro de um bebê, pois as famílias são muito nucleares. Com isso, todo o conhecimento que era passado de mães para filhas foi se perdendo”, reforça o pediatra Marcus Renato de Carvalho, especialista em Medicina Preventiva e Social pelo IMS/UERJ, com mestrado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz.
Também especialista em amamentação pelo International Board Certified Lactation Consultant desde 2001, Carvalho edita o portal www.aleitamento.com há 20 anos. “É claro que o dia a dia com um recém-nascido chega a ser desgastante, o que causa angústia e a busca por fórmulas externas, medicamentos… Mas chorar é o meio de comunicação do bebê. Ele não chora só porque está com fome, mas porque sente frio ou calor, está com cólica, fez xixi ou cocô…. Está incomodado, e precisa ser atendido. E é bom que não só a mãe o atenda. Tem os pais, os avós. O choro é normal”, diz o médico. “Agora tem até um ‘tradutor’ de choro, que é uma máquina. Mas quem tem que traduzir o choro da criança são os pais e avós. É preciso recuperar a cultura da amamentação, porque ela não é instintiva nos mamíferos humanos. Há uma técnica, que deveria ser passada até nas escolas, estar no cotidiano das famílias. Por isso, recomendo que os pais façam cursos para se preparar”.
Em seu cotidiano, o pediatra se depara com casais em busca de soluções mágicas. “Outro dia, um deles me procurou reclamando que seu bebê, de 2 meses, estava muito manhoso. Queriam regulamentar as mamadas. Mas procuraram a pessoa errada. Não dá para fazer uma planilha Excell das mamadas. Um neném nesta idade não está chantageando os pais. Eles são muito indefesos. Ficaram nove meses acolhidos. E a amamentação tem que ser quando o bebê pede. Costumo dizer que faço puericultura do oprimido. Eu sou um assessor técnico, mas não posso tomar o papel dos pais. Explico as razões da cólica, por exemplo, mas não dou receitas mágicas”.
Lúcia Wanderley também diz que não há mágica em seu trabalho. “Normalmente, chego à casa e ouço queixas de que o bebê não dorme, chora sem parar, não larga o peito, não vai para o berço… Eu sei que o problema nunca está com a criança e, sim, com os pais. Por isso, começo meu trabalho conversando com a mãe, que está muito fragilizada, porque o recém-nascido não sai da maternidade com manual”, conta na reportagem publicada ontem pelo #Colabora. Certa vez, ela foi chamada a uma casa com gêmeas, de 11 meses, que acordavam 12 vezes durante as madrugadas. A mãe entrara em desespero. “A criança, simplesmente, não tem rotina. Eu boto o neném no berço e muitas mães me dizem: ‘mas ele está chorando! ’. Ao que respondo: ‘criança chora’. Na verdade, ele tem que aprender a ter rotina e eu estou ensinando. ”
Muitas vezes, a pressão é tanta que a mães choram e desabafam com ela. “Elas dizem que, além de encantadora, sou psicóloga e pediatra. Na hora de me despedir, muitas não querem que eu vá embora, porque em uma noite eu consigo o que desejavam há tanto tempo”, brinca a ex-babá.
Os métodos de Lúcia podem ser questionáveis. Mas fato é que a “encantadora” faz muito sucesso. Tanto que vive com a agenda lotada, com lista de espera. Embora more no Rio, a maioria da clientela está em São Paulo e outras grandes cidades, como Brasília, Curitiba, Belo Horizonte e Florianópolis. Ela afirma já ter prestado consultoria para bebês inclusive em outros países, na França, nos Estados Unidos e na Inglaterra.
O desespero dos pais que recorrem aos poderes da “encantadora” é compreensível. João Aprígio, coordenador da Rede Global de Banco de Leite Humano, do Instituto Fernandes Fiqueira, lembra que a gestante e a puérpera vivem um momento de vulnerabilidade emocional. “A grávida gera o bebê na mente (sempre pensando ‘Será que ele vai ser saudável? ’, ‘De que cor serão os olhos?’, por exemplo), além de gerá-lo no útero. Aí, vem o parto, para compatibilizar o bebê imaginário e o biológico. E os estímulos podem ser positivos ou negativos no seu entorno. Então, para amamentar, ela também tem que ser ‘amamentada’, ver ‘peito aberto’ à sua volta. O choro é uma forma de expressão do bebê. E é extremamente positivo. Não pode ser visto apenas como forma de pressão”.
Marcus Renato observa que a ideia de amamentar de três em três horas, como se prega hoje, surgiu com as fórmulas industrializadas para substituir o leite materno, que formam um bolo que demora esse tempo para ser digerido pelo neném. “Mas o leite materno tem 87% de água. Imagina você se alimentando de suco de laranja. Vai ter fome a toda hora. Por isso, a frequência com que eles pedem para mamar é alta”. Ainda segundo o pediatra, deixar o bebê chorando no berço não é uma boa ideia. “Afinal, ele acaba percebendo que não adianta chamar. É como se fosse um abandono, o que não é bom nem para a vida psíquica, nem para a vida física dele. Você gostaria de chamar seu namorado e ele não atender? ”
João Aprígio conclui:
“Esta abordagem de que o peito é só fonte de alimento, que engorda e faz crescer, é um desserviço. O peito também gera nutrição afetiva, segurança. Não é à toa que a gente fala de desenvolvimento do inconsciente, da inteligência e da inteligência emocional quando o assunto é aleitamento.
A amamentação é um processo de construção de um sujeito. Ele está sendo ecologicamente inserido neste mundo. E a maneira de permitir isso é a livre demanda. Portanto, com todo respeito a quem pensa diferente, abordagens que não levem isso em consideração são parciais, incompletas e carentes de fundamentação, tanto teórica quanto prática. É até perigoso”.
*Paula Autran e Reneé Rocha se completam. No trabalho e na vida. Juntos, têm umas quatro décadas de jornalismo. Ela, no texto, trabalhou no Globo por 17 anos, depois de passar por Jornal do Brasil, O Dia e Revista Veja, sempre cobrindo a cidade do Rio. Ele, nas imagens (paradas ou em movimento), há 20 anos bate ponto no Globo. O melhor desta parceria nasceu em novembro passado. Chama-se Pedro, e veio fazer par com a irmã, Maria.