Dandara & Zumbi:
o que isso tem a ver com Amamentação?
Fe Lopes*
Dandara foi uma mulher guerreira, líder do maior quilombo brasileiro, mais conhecido como Palmares, mas também chamado entre os pretos de Angola Janga. Lá viviam uma série de negros que conseguiram fugir dos engenhos que os escravizavam. No meio da Serra da Barriga, em Alagoas, num local de difícil acesso aos capitães do mato, eles podiam viver livres, cuidando uns dos outros num espaço que era pura resistência ao sistema escravocrata da época.
Nesse quilombo vivia um homem valente, nascido nas terras de Palmares: Zumbi. Dandara já crescida, fugida de alguma fazenda da região. Nesse encontro dos dois no quilombo, entre afeto e admiração pela bravura de ambos, surgiu uma paixão. Eles então passaram a liderar Palmares juntos, e lá tiveram três filhos.
Não muito longe dali, viviam centenas de mulheres negras escravizadas, engravidando contra suas vontades, apenas para produzirem leite e poderem amamentar os filhos dos senhores de engenho: as chamadas Amas de leite, que era separadas de seus filhos muito cedo, e forçadas a alimentar bebês que não era os seus, enquanto os seus filhos eram deixados na roda dos enjeitados.
Já essas três crianças pretinhas, nascidas do desejo desses dois grandes heróis da resistência, Zumbi e Dandara, puderam ser alimentados com leite da mãe deles. Puderam brincar na terra, cantar cantigas africanas, ter colo e peito, enquanto acompanhavam os pais construírem, ao lado de cada preto que morava no quilombo, o espaço de resistência e luta que Palmares foi.
Um lugar tão potente certamente atraia a ira dos senhores de engenho, cansados de perder escravos e apavorados com a possibilidade de um motim. Não eram poucas as investidas que Palmares recebia. E numa delas, Dandara ficou encurralada entre o penhasco e os capitães do mato. Saltou em direção ao mar, preferindo a morte a ser escravizada.
Anos depois foi a vez de Zumbi. Diferente de Dandara, que foi pega numa emboscada, Zumbi recebeu a oportunidade de fazer um acordo com os poderosos da cidade: veja só, você muda de lugar e a gente deixa vocês em paz. A proposta podia parecer boa aos olhos de alguns, porém não na ética de quem sabe que não se faz acordo com aqueles que oprimem seus irmãos, e mais do que isso, que libertar a si mesmo é pouco. Mudar Palmares para longe dificultaria o acesso de novos negros que fugissem de seus engenhos, e perderia o sentido de enfrentamento e luta que esse espaço sempre teve. Zumbi não aceitou. E no dia de hoje, 20 de Novembro, porém de 1695, Zumbi morreu lutando para defender seu povo. Palmares seguiu acolhendo cada dia mais e mais pessoas em seu solo fértil de ideais libertários, se firmando como o maior quilombo brasileiro.
O que isso tem a ver com amamentação?
É muito recente que pessoas negras tem a possibilidade de alimentar seus filhos com leite produzido em seus peitos. Cuidar dos próprios filhos durante o período de amamentação exclusiva, preconizado pela OMS, é um desafio para quem geralmente vive com muito menos garantias sociais que o restante da população. Falar de amamentação, recontar a história dos nossos heróis negros, falar do racismo estrutural que segue sendo a viga da sociedade como a gente conhece, é enfrentar um ponto central de quem está comprometido em construir avanços nos desfechos de amamentação para todos.
Vale dizer que Palmares era um terreno que tinha sua maioria composta por pessoas negras, mas abarcava indígenas e brancos também. E todos estavam comprometidos com a luta pela liberdade de todos – e não só a garantia de direitos para si mesmo. Dispostos a matar e a morrer, sem fazer acordos ou concessões, com quer que fosse. Alinhados no compromisso ético da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Por isso, nesse 20 de Novembro de 2021, quero dizer pra cada um que me lê por aqui, pra você pessoa branca que abre mão dos seus privilégios e empresta seu megafone pra mim, pra você que se no cordão de frente em defesa de negros e suas pautas, pra cada pesquisador negro que não recua diante da pressão – que eu sei, não é pouca! – pra cada cientista preto que veio antes de mim e abriu o mato a facão pra que eu pudesse estar aqui hoje, pra cada criança pretinha que pode ser cuidada por sua mãe: Zumbi e Dandara estão orgulhosos da gente, pode ter certeza!
Vejo vocês no ENAM/ENACS online, dia 4 de dezembro no
Curso “Amamentação: feminismo, negritude e pessoas LGBTQIA+”
*Fernanda Lopes Sanchez Derballe é Psicóloga clínica, psicanalista, com formação em Psicanálise da Parentalidade e da Perinatalidade, pelo Instituto Gerar, e em Psicologia e Relações Étnico Raciais no Instituto Amma Psique e Negritude. Atende em análise adultos e crianças, e dá aulas e palestras em eventos perinatalidade, psicologia, relações raciais e diversidade. É cocriadora do Curso de Introdução ao Letramento Racial, do Instituto Aripe, também do projeto Igbaya – Apoio a Amamentação Negra (@amamentacaonegra), e da Semana de Apoio a Amamentação Negra. Além disso é coautora do Psy(co), um podcast sobre psicologia e cultura pop. www.felopespsico.com.br @felopespsico